domingo, 26 de julho de 2009

Anotações aleatórias da velha agenda em uso

Diante das possibilidades de dar ou não dar certo uma escolha para um determinado momento, estive também empolgado em apresentar o meu Projeto de doutorado para a Seleção na mesma Universidade onde, com muita satisfação, cursei o Mestrado, sob a orientação do grande mestre A. B. Coutinho. Em suas linhas de pesquisa, entre outras, anotei: Imaginários culturais e literaturas, que tem como objetivo Estudo comparativo de discursos interculturais e poéticas. Na página seguinte, leio: “somos nossos impulsos e desejos inconscientes e estes desconhecem barreiras e limites para a busca das satisfações e /…/ burlam e enganam a consciência”. Falha: não anotei o seu autor. 3 e 4 de Janeiro. 2008?

Viro a página. Dia 6 de Janeiro que não foi de 2009. OSÍRIS. Pensava, possivelmente, na parte da minha pesquisa que exige uma leitura a respeito de mitologia. E por certo não deixei de trazer à memória A Flauta Mágica, de A.W. Mozart, a famosa ária A Rainha da noite, e, não menos, o impecável Matrix: "Neo, você já teve um sonho que achasse que foi real? E se você fosse incapaz de acordar desse sonho, Neo? Como saberia diferenciar o mundo do sonho do mundo real?”. Mas na agenda leio: deus da mitologia egípcia, era quem realizava o julgamento na “sala das duas verdades, a cabeça coberta por uma mitra branca, esposo de Ísis /…/.

9 de Janeiro. Foulcault, Derrida, Freud e Nietzsche realizam uma releitura da sociedade ocidental, e propõem uma descontrução dos valores ocidentais…

Lacan. É impossível captar o real, descrever através das palavras. Quando eu falo de um objeto do mundo eu recrio este objeto numa outra dimensão, que é uma dimensão simbólica, cultural, humana e social. »» vem do conhecimento cultural. # A NOSSA RELAÇÃO COM O MUNDO É UMA RELAÇÃO SIMBÓLICA.

Em 27 de Março, possivelmente alguma anotação que pretendia ser um conto, ou apenas um sentimento de um instante: Não conseguia ver nada do lado de fora. Absolutamente nada. Apenas imagens veladas, ocultas, cores opacas, invisíveis, movimentos estáticos de tantas pessoas.

A página seguinte está aparentemente em branco.

A agenda aberta aleatoriamente, uma folha e outra. Uma boa sensação remexer velhas agendas. Uma sensação estranha remexer velhas agendas. A agenda que passou, mas com coisas que ficam grudadas, enquanto outras se desgrudam tanto, que não passam de rabiscos de algo que, de alguma maneira, significou, pois está ali. O que está em algum lugar que permitimos é porque signi(ficou)(fica).

sábado, 18 de julho de 2009







Algumas palavras...

Amanheci com a certeza de que hoje falaria um pouco mais a respeito dos meus estudos sobre as narrativas de Torres e Antunes, mas vejo que adiarei. São papéis escritos, rabiscados, caderno com anotações que considero fundamentais, perguntas levantadas na expectativa de respostas, fichamentos breves e os que consomem vários dias. São leituras de romances, de entrevistas, de publicações diversas, o inquietante romance “Memória de elefante” relido mais uma vez. São riscos e anotações em tinta vermelha ou grafite, outras imagens descobertas, percebidas, e os parágrafos que exigem mais tempo e percepção, critérios para uma maior compreensão dessa narrativa que inicia o caminho dos romances do escritor Lobo Antunes. Leituras e mais anotações, receios em alguns instantes, os limites para que o texto não se atreva a ultrapassar a sua proposta de maneira a correr o risco de cair num labirinto perdido para sempre.

Adiarei comentários mais amplos a respeito dessa pesquisa, a qual, tem um longo tempo pela frente, entretanto, não penso em formalidades, mas sim no informal que pode autorizar mais livremente o criar por partes; o relatar que depende do amanhecer de cada um; o escrever, registrar, transmitir que depende do estado de espírito, do instante nosso de cada dia.

Pausa.

Passo a falar agora da minha última agenda: “velha” e atual ao mesmo tempo. Não consigo dispensá-la. Quase uma bagunça, mas, além de ainda restar algumas poucas páginas em branco, apresenta uma diversidade de anotações que considero importantes. Citações, referências bibliográficas, desabafos, endereços, números de telefones, nome de músicas, cantores, Linhas de pesquisa, escritores, romances, site, frases e números riscados, contas, senhas algumas vezes perdidas, filmes que pretendo assistir ou rever, anotações de alguma palestra que ouvi, futuros textos que, pelo menos, pretendo escrever, anotações sobre alguns trabalhos de conclusão de curso, os quais orientei, compromissos, lembretes… Tantas coisas nessa velha agenda, e que permanece desde o ano que já passou, alias, que de certa maneira já passou, pois, por outro lado, os anos passam mas deixam os seus rastros… A agenda. No decorrer dos dias posso falar também dessa agenda que começa com a seguinte anotação: “A página nunca está em branco, a tela nunca está vazia” (G. Deleuze), e o sentido, esse vem de toda parte (D. Hockney).

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Pescador de enigmas (Trecho)

"Aquela necessidade de pensar, instigar e remoer tal situação se tornava incontrolável, e ele se entregava, e pensava “antes que alguém chegue, ou o telefone toque, o interfone, alguma voz...” Medo de ser interrompido. Fantasia cruel, “mas não é fantasia o que sinto”. Os enredos e os diálogos lhe criavam sofrimentos. Fantasias que lhe provocavam um vazio corrosivo. E pensava sempre um pouco mais, beirando as margens da imaginação. Aquele controle remoto em suas mãos “repetindo, repetindo, repetindo, como num disco riscado, o velho texto batido” e “cutucando, relembrando, reabrindo”, Maria Rita e Garfunkel, intensos, viscerais, a música tocando, e ele sem nem mais saber o que era verdade e o que era mentira.
De repente, um sorriso se alargou até às gargalhadas. Novamente, um olhar quase indecifrável. Em seu colo, páginas de Artaud diziam que “em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando em sua cabeça, apavoram as pessoas.” Grifou essas palavras com um grafite quase perfurando a folha, e prosseguiu a leitura, compulsivamente."

(Trecho do conto Pescador de enigmas. In: O silêncio e a bagagem)

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A vida dentro da mala

A vida dentro de uma mala velha, fechadura enferrujada pela dor angustiante de um tempo passado. A coleção de relógios espalhada pelo chão, abandonada depois dos dias que mais nada parecia lhe interessar. A vida que se tornara mofa dentro da mala, forro em cetim que desde tempos atrás não mais resistiu às expectativas se esvaziando até tornar-se pó. Pó como a vida se torna, ferrugem como a vida se torna, quando se passa pela vida agarrados a passados que se foram, e amarrados aos dias que já excederam todos os seus limites. Abandonados. Abandonados os momentos que chegariam em êxtases. Abandonados, abandonados os instantes, os melhores instantes atravessando imperceptíveis pelas janelas, enquanto o horizonte grita quase se explodindo sobre os seus pés. Alheio aos seus olhos, o instante presente emudece; o olhar mofo, enrugado, necrose contornando as olheiras negras; e os olhos quase fechados, aconchegando-se doloridamente ao passado que nem existe mais.
A janela fechada e as portas quase lacradas para a claridade dos dias. A quase escuridão da casa em pleno sol latejando o mundo lá fora, alheio àquele universo reprimido por um ar morno, cheiro de tantas coisas guardadas, papéis e objetos plurais de sentidos, móveis que há tanto tempo fincaram as suas verdades em espaços imóveis. E ela. Ela incapaz de rever as horas, um peso em seu corpo, impedindo o movimento das paisagens encarnadas nas páginas dos livros que lhe foram os preferidos nos dias que se tornaram apenas recordações. O seu olhar turvo, cálido, nocauteando as imagens dos quadros na parede, prazerosamente adquiridos nos dias em que a vida era.
Tantos dias e tantos anos dentro de um só. Tantos dias e tantas horas em apenas um dia. Cenários mudos, o coração exausto, suportando a densidade das horas que, sem piedade, sobre ela caiam. Ela, agarrada ao silêncio e ao incessante fluxo dos seus pensamentos, nem percebeu que a casa havia escurecido de vez. Uma penumbra negra, melancólica, exasperada. Aquelas palavras lacradas e acolhidas pela sua memória, eternizada.

(Livro de Contos O silêncio e a bagagem, 2008)

quarta-feira, 15 de julho de 2009



O Silêncio e a Bagagem

E permaneceu perplexo. Sentado em sua cama e num silêncio atônito, permaneceu perplexo. As pernas trêmulas, as mãos geladas, febris, o coração se explodindo em meio a todas as imagens que se tornaram cinzas e turvas. Um branco opaco, nuvens, muitas nuvens, todas indefinidas, ásperas e grotescas, raios e trovões, metamorfose. A vida se confundindo com a ficção. A verdade, a mentira, a ilusão e o mito se confundindo, precisando se confundir para aliviar o denso fio daquele instante, único. Os espelhos, todos os espelhos, todos, todos os espelhos estilhaçados, partículas ferinas, pontiagudas, desconstruindo um universo, íntimo.

Realidade partida, repartida, dividida em mil pedaços espalhados ao vento, espalhados ao nada, o eterno retorno, aonde, onde o eterno retorno? O cheiro das horas prazerosas, aguardadas, outra vez, em cada segundo; o desejo exato sempre no coração, agora se misturando a outros papéis guardados na bolsa, outros papéis, outros papéis que não os melhores instantes anotados, que não as melhores dedicatórias enviadas ou recebidas. Agora, outros papéis misturados, paradoxalmente, com as mais guardadas e amadas fotografias. Papéis tenebrosos guardados ao lado das mais íntimas e doces confissões, sorrisos e serenidades revelados ao coração.

Pedaços, tudo aos pedaços. A mala se esvaziando, a mala se esvaziando, veementemente se esvaziando, sem nem mesmo alguma peça de roupa ter sido, pelo menos, dobrada e guardada dentro dela. A mala ainda vazia, completamente vazia, e já se esvaziando, se esvaziando, o fundo, o fundo da mala tão escuro de tamanha profundidade, e tão escancarado para o nada. Nada ali dentro da mala que seria tão pequena para o tanto a ser transportado, e o denso cheiro de vazio dentro da sua imensidão.

O perfume. Impactante. O afável cheiro do perfume exalando pela casa e percorrendo pelas suas veias, descompassadas. Os frascos, todos os frascos dos perfumes fechados, e o outro, o que exalava aquele aroma por toda a casa, aberto. O frasco, o perfume na pele, distantes, lá em outra casa, e bem ali, visceralmente, ali, enquanto os ecos da sua voz revelavam-se em um lamento jamais esquecido.

O mundo se limitando a uma dor quase desnorteada. E, de repente, a dor quase desnorteada parecia arrancar forças em outras dores que já foram irreparáveis. Já foram, já foram, e a memória reconstruindo, lá no inconsciente, a certeza e a necessidade de que a bagagem precisava mais do que nunca ser arrumada, peça por peça ser arrumada. A viagem, os quadros, as fotografias, os bilhetes, os presentes, a própria presença, criteriosamente, arrumada dentro da mala. Não era mais a mesma bagagem, a sonhada, a projetada para a repetição dos instantes inesquecíveis, a que transbordaria, para sempre, um contentamento cravado na memória. Não, não era mais a mesma bagagem, nem o mesmo encanto ou felicidade. Mas era uma bagagem maior, bem maior, e uma presença maior, bem maior, entrelaçada num misterioso pulsar, talvez jamais imaginado. Ardendo.

Enquanto idealizava a nova bagagem, abarrotada de silêncio, sentia em seu coração aqueles arranhões corroendo o que desde sempre foi amor. Permaneceu ali, perplexo, sentado em sua cama e num silêncio profundo de alma. Permaneceu perplexo. A vida se esvaziando. Aquela mala totalmente vazia, o temor provocado pela bagagem, o aconchegante cheiro daquele perfume doendo-lhe, doendo-lhe tanto no peito. O mesmo cheiro que perfumava as melhores lembranças, desde o primeiro dia. Na alegria. E na tristeza.

(Livro de contos. O Silêncio e a bagagem. I. Andrade. Lançado em agosto de 2008)