quarta-feira, 15 de julho de 2009

O Silêncio e a Bagagem

E permaneceu perplexo. Sentado em sua cama e num silêncio atônito, permaneceu perplexo. As pernas trêmulas, as mãos geladas, febris, o coração se explodindo em meio a todas as imagens que se tornaram cinzas e turvas. Um branco opaco, nuvens, muitas nuvens, todas indefinidas, ásperas e grotescas, raios e trovões, metamorfose. A vida se confundindo com a ficção. A verdade, a mentira, a ilusão e o mito se confundindo, precisando se confundir para aliviar o denso fio daquele instante, único. Os espelhos, todos os espelhos, todos, todos os espelhos estilhaçados, partículas ferinas, pontiagudas, desconstruindo um universo, íntimo.

Realidade partida, repartida, dividida em mil pedaços espalhados ao vento, espalhados ao nada, o eterno retorno, aonde, onde o eterno retorno? O cheiro das horas prazerosas, aguardadas, outra vez, em cada segundo; o desejo exato sempre no coração, agora se misturando a outros papéis guardados na bolsa, outros papéis, outros papéis que não os melhores instantes anotados, que não as melhores dedicatórias enviadas ou recebidas. Agora, outros papéis misturados, paradoxalmente, com as mais guardadas e amadas fotografias. Papéis tenebrosos guardados ao lado das mais íntimas e doces confissões, sorrisos e serenidades revelados ao coração.

Pedaços, tudo aos pedaços. A mala se esvaziando, a mala se esvaziando, veementemente se esvaziando, sem nem mesmo alguma peça de roupa ter sido, pelo menos, dobrada e guardada dentro dela. A mala ainda vazia, completamente vazia, e já se esvaziando, se esvaziando, o fundo, o fundo da mala tão escuro de tamanha profundidade, e tão escancarado para o nada. Nada ali dentro da mala que seria tão pequena para o tanto a ser transportado, e o denso cheiro de vazio dentro da sua imensidão.

O perfume. Impactante. O afável cheiro do perfume exalando pela casa e percorrendo pelas suas veias, descompassadas. Os frascos, todos os frascos dos perfumes fechados, e o outro, o que exalava aquele aroma por toda a casa, aberto. O frasco, o perfume na pele, distantes, lá em outra casa, e bem ali, visceralmente, ali, enquanto os ecos da sua voz revelavam-se em um lamento jamais esquecido.

O mundo se limitando a uma dor quase desnorteada. E, de repente, a dor quase desnorteada parecia arrancar forças em outras dores que já foram irreparáveis. Já foram, já foram, e a memória reconstruindo, lá no inconsciente, a certeza e a necessidade de que a bagagem precisava mais do que nunca ser arrumada, peça por peça ser arrumada. A viagem, os quadros, as fotografias, os bilhetes, os presentes, a própria presença, criteriosamente, arrumada dentro da mala. Não era mais a mesma bagagem, a sonhada, a projetada para a repetição dos instantes inesquecíveis, a que transbordaria, para sempre, um contentamento cravado na memória. Não, não era mais a mesma bagagem, nem o mesmo encanto ou felicidade. Mas era uma bagagem maior, bem maior, e uma presença maior, bem maior, entrelaçada num misterioso pulsar, talvez jamais imaginado. Ardendo.

Enquanto idealizava a nova bagagem, abarrotada de silêncio, sentia em seu coração aqueles arranhões corroendo o que desde sempre foi amor. Permaneceu ali, perplexo, sentado em sua cama e num silêncio profundo de alma. Permaneceu perplexo. A vida se esvaziando. Aquela mala totalmente vazia, o temor provocado pela bagagem, o aconchegante cheiro daquele perfume doendo-lhe, doendo-lhe tanto no peito. O mesmo cheiro que perfumava as melhores lembranças, desde o primeiro dia. Na alegria. E na tristeza.

(Livro de contos. O Silêncio e a bagagem. I. Andrade. Lançado em agosto de 2008)

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