terça-feira, 13 de outubro de 2009

A caixa lacrada debaixo da cama

A casa dentro do quarto
Debaixo da cama
Todos os móveis dentro da casa debaixo da cama.
Dentro da caixa na casa debaixo da cama

A caixa guardada
A vida trancada na caixa lacrada
Guardada sem graça sem nada.
A casa dentro do quarto
Debaixo da cama
Todos os móveis
Dentro da casa
Debaixo da cama

A caixa guardada
A vida trancada na caixa lacrada
Guardada sem graça sem nada
A caixa lacrada.

Hoje eu encontrei essa poesia datada em 03/08/2006. Vamos do começo: o meu primeiro livro foi exatamente de poesias. Versus (in)versus. E não vou dizer que são poesias imaturas ou que foi uma publicação precipitada. Afinal, teve o seu tempo exato, foi antes, não foi agora. E foi um prazer ter registrado em livro uma parte que eu andava a escrever desde o final da década de 70 até 1980 e mais alguns poucos anos. Foi um evento muito bom, e senti prazer com tudo aquilo. Não houve fotos. Não sei o motivo de não ter tido tal preocupação, mas tem um interessantíssimo clip com nove dos poemas, produzido por J. Melquizedeque e hoje no acervo da UESB.

Depois, entre um tempo e outro, produzi algumas outras poesias que estão, pelo menos por enquanto, guardadas em um arquivo de nome Palavras (in)visíveis. São, até aqui, 72 poesias escritas num bom exercício de brincar com as palavras. De vez em quando elas me atraem a uma nova leitura, e já mudo uma coisa e outra, substituo uma palavras por uma outra que penso ser mais confortável, excluo outras e até mesmo anulo versos completos. Escrever não é mesmo simplesmente escrever, mas é, imprescindivelmente, rever, reescrever, lapidar. É ter consciência de que muito do que foi escrito pode ter como “resultado final” a metade do que era. Ou menos até. É uma arte que exige uma bacia transbordando de paciência, percepção e critérios afins.

Ainda não acabou. Depois de tudo, quando o texto é novamente apresentado a nós mesmos, pode ser que muito do que ficou não era, não devia. Mas, é assim mesmo, ser mais criterioso na próxima escrita. Tentar. Buscar. Muitas vezes isso garante um texto agora impecável, e outras vezes é melhor dar um tempo, abrir a janela, olhar a vida lá fora, ler uma paisagem tranquila. Sabemos: tudo precisa de um tempo. Sabemos muito, mas nem sempre conseguimos absorver tudo, compreender, descansar. Fazer essa reflexão é, de certa maneira, um ato de repeti-la para mim mesmo.

Agora, para fechar um círculo, retorno à poesia que hoje reencontrei em minhas buscar permanentes de possíveis coisas guardadas. Não tem título. A poesia. Mas nem tudo precisa de um título. Precisa? Pensarei depois a respeito, pois tenho mesmo dificuldades para tal encontro que dá contentamento quando cai bem. É, sem título, o que procurar? Como procurar? O Lobo Antunes é um mestre impecável também no encontro de grandes títulos (Que farei quando tudo arde?, Não entres tão depressa nessa noite escura, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? São apenas três dos seus diversos títulos atraentes, ricos de significados. Sou mesmo um apaixonado pela suas criações).

(A poesia. Nunca mais escrevi poesias, pois o conto tem me puxa com tanta atração. Mas conforta-me a possibilidade de a poesia poder estar ali dentro. Do conto. O romance. Há sim um encontro entre os gêneros).

Não me recordo do momento que peguei a caixa, a cama, os móveis, a vida e coloquei tudo isso num espaço debaixo da cama, para construir um poema. Reli-o como um desconhecido, mas, imagens soltas chegavam enquanto isso. Às vezes, fica muita coisa guardada debaixo da cama, não apenas sapatos batidos, confortáveis ou cheios de calos, ou poeira, chocolates escondidos para a noite, urinóis noturnos de quem os usa. Outras coisas ficam guardadas por ali, ainda lacradas, quase amassadas, apertadas dentro de caixa interiores lá dentro dos sentimentos e que, tantas vezes, clamam para sair, pular pelo quarto, pela sala, a casa inteira, as janelas abertas. Coisas guardadas, desnecessariamente: papéis, roupas, sapatos apertados, embrulhos dos chocolates comidos no meio da noite, lembranças corrosivas. E, sem dúvida, as coisas sabiamente guardadas, afinal, nem tudo tem que se fazer palavras ou coisas que já não são, não devem, em vão. Essas, não devem estar mais lacradas na caixa, mas lançadas num canto que nem existe.

Sabemos muito mais do que somos ou fazemos.

4 comentários:

  1. ...e eu conheci a caixa...fiz parte dela, pulei sobre ela, ri do de dentro dela, fiz-me com ela...a caixa...e sua tampa.
    elvira, 13/10/2009.

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  2. Elvira, e claro que tive lembranças tuas quando achei essa poesia guardada tbem meio debaixo da cama. As elocubrações de diversos instantes sem hora marcada.
    Sei sim, ora se sei que vc conhece a dita caixa!

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  3. Essa mania de tratar as palavras como peças de lego, a permanência construtiva...nunca nos daremos por satisfeitos se não aprendermos a dar o ponto final!Que as mesmas palavras joguem novas relações, que as caixas sejam esvaziadas para voltar a ser enchidas...que o fluxo das emoções seja como o vento no corredor...este é hoje o meu maior desejo.

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  4. Ismar, lembrei de algo que estou estudando: a questão da autoria. O autor Ismar de 70, 80 não é mais o mesmo. O Ismar de hoje é o leitor que intervem na obra do autor e pensa em mudar, em exercitar uma nova autoria. Daí, esse remexe e mexe na caixa dos guardados...
    Eneida

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