quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Como um liquido oleoso deslizando sobre a pele

Era para ter ido hoje. Não fui. De repente uma falta de disposição de levantar-me desta cadeira, descer as escadas, e, antes de descer as diversas escadas, ainda ter que cumprir cada uma das etapas que me deixariam pronto. Para sair. Era para ter ido, mas o meu estado de comodidade por conta do olhar dividido entre o livro aberto com todas as suas folhas expostas diante de mim e o  texto lido  com o seu conteúdo em alto-relevo foi mais forte: devorou parte do prometido para o dia de hoje. Sabe aquelas leituras que deixam a gente impactado, envolvido, invadido pelo poder das palavras, as frases e todas as coisas que daí surgem e se espalham pelo corpo e sentimentos como um liquido oleoso deslizando sobre a pele? Sabe aquela frase, pequena até, mas que funciona, como um vulcão pelo nosso interior, e percorre as entranhas em pleno gozo, orgasmo, dor ou melancolia? Sabe aquele livro, aquele filme, aquela música, aquele velho papel ou cartão criteriosamente guardado por um motivo do qual apenas cada um de nós conhecemos? Sabe?

(Era para ter ido Era. Mas não fui.). E não foi a primeira vez que uma promessa foi rompida. Falo até mesmo de promessas banais, força da palavra. A lata de leite condensado que eu nunca mais tomaria quase toda de uma só vez é um exemplo do qual não esqueço. Digo de coisas “simples” assim, o tablete inteiro de chocolate que várias vezes eu jamais, jamais comeria como se estivesse almoçando. E outras promessas que estão fora de caixas e latas. Amanhã, amanhã… tantas coisas são empurradas para o amanhã, amanhã que nem sempre é o dia imediatamente seguinte, mas outros.

Lembro-me de uma poesia que eu, um dia, prazerosamente, tive que decorar, na época da minha graduação, para apresentar em uma atividade. Fernando Pessoa. Álvaro de Campos. Adiamento, foi a poesia: Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... / Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,/ E assim será possível; mas hoje não.../ Não, hoje nada; hoje não posso.

Têm dias que não dá mesmo! É dia de ficar “debaixo do cobertor”, expressão que pode significar uma infinidade de coisas, como para mim, ontem, significou: a) reler O Estranho, texto onde Freud apresenta, entre os demais tópicos, o estranho e o familiar, o escritor imaginativo e o escritor criativo; b) ficar ali pensando, pensando, pensando até me fartar e depois pensar um pouco mais; c) rabiscar algumas coisas; d) andar um pouco pela internet; rever passagens de textos de escitores que tanto gosto, mistura de prazer e, digamos, necessidade; e) a geladeira, o biscoito, o pedaço de bolo, o queijo com geleia de pimenta que eu trouxe do Brasil, e mais pensamentos com o teto branco diante dos meus olhos.

Abro a janela e olho lá fora, enquanto imagens se repetem e se fazem novas. Milhares de pedras fazem ruas e calçadas da bela Lisboa.

5 comentários:

  1. Nossa! acabei de me ver nesse texto. Rsrsrs
    Maravilhoso, como tudo que vc escreve Maço. Vc nos faz relaxar, viajar rir, chorar e reviver muitas emoções do que vivemos e já vivemos.
    Voce nos faz feliz.
    Obrigada por sua existência em minha vida
    Te amo primo
    Du

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  2. Simplesmente demais, muito eu, muito você!!!..."o tablete inteiro de chocolate que várias vezes eu jamais, jamais comeria como se estivesse almoçando. E outras promessas que estão fora de caixas e latas. Amanhã, amanhã… tantas coisas são empurradas para o amanhã, amanhã que nem sempre é o dia imediatamente seguinte, mas outros."
    Beijos e saudades! D.

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  3. Querido Ismahelson!Que bom ler coisas belas em tempo de escassez de beleza. Os seus textos são como um oásis, onde bebemos palavras que nos encantam e nos enchem de poesia.
    Um grande abraço,
    Aziel.

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  4. È maravilhoso descobrir e descontrair ouvindo e sentindo palavras que só vc sabe escrever.
    Mt sucesso pra vc.
    Sua prima Keila

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  5. Lindo texto. Devorei-o várias vezes, pensando nas promessas que fiz e que estão fora das caixas, muitas, quase infinitas. O seu texto soa com música, desliza, flutua, invadindo o tudo... Origado.

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