terça-feira, 27 de outubro de 2009

Enquanto as Folhas São Espalhadas pelo Vento

Chegou em frente à porta com o coração batendo tão forte que imaginou cair antes de tocar a campainha. Ficou ali parado por quase dez segundos com as mãos coladas à boca. Queria chorar. Não, não queria chorar. O peito já tornara dolorido pela saudade. Queria mesmo era gritar e destravar a garganta com palavras que nunca mais foram ditas. Com as mãos trêmulas, levou o dedo à campainha e o deixou ali parado ainda sem tocá-la. Apesar de saber o que se passava lá dentro, não queria ficar imaginando certezas que lhe doíam nos lugares mais sublimes do coração.

Dali de fora, sentia o extremo silêncio que vinha de dentro da casa, guardado entre portas e janelas fechadas. Os olhos se encheram de lágrimas, ele comprimiu a respiração, e desistiu de tocar a campainha. Soltou a pequena mala no chão, voltou o olhar para a rua sem movimento, se encostou na parede e quase não suportou a imagem das flores que não mais existiam naquele pequeno jardim. Olhou para o alto, fitou bem aquele azul, o ultrapassou em seus pensamentos e, por alguns segundos, resistiu ao calor do sol dentro dos seus olhos. Em seguida, levou as mãos ao rosto, vedou os seus olhos, e respirou angustiadamente entre elas. Ainda encostado naquela parede aquecida pelo sol, friccionou o peito. Depois, friccionou a cabeça, os ombros, os braços, as mãos e, novamente, o peito. E continua sem saber se o seu desejo era de gritar ou de chorar.

Bruscamente, se voltou à porta e tocou a campainha. Sabia que não haveria ninguém, mas, por duas ou três vezes, a tocou deixando o seu dedo prolongando uma chamada que só mesmo ele ouvia. O som ecoava por toda a casa vazia, enquanto as suas recordações percorriam por cada um dos seus cômodos. Só então pegou a sua pequena penca de chaves, de onde ele nunca retirou as que abriam aquela casa. Chave da porta lateral, acesso direto à cozinha. Comprimiu-a dentro da sua mão e, com as mãos suadas, destrancou e abriu apenas o suficiente para que ele passasse. Veio ao seu encontro aquele impactante cheiro de poeira, de casa fechada, e aquele ar meio abafado por janelas que nunca mais foram abertas. E veio aquele tão forte cheiro de saudade que lhe parecia sair de todas as gavetas, de todas as frestas, de todos os objetos e cômodos. Ele parado na porta enquanto o resto da claridade da tarde iluminava a primeira imagem do interior da casa: a cozinha, que antes silenciava apenas quando todos dormiam. Era sábado, dia daquele cheiro de bolos e de pãezinhos que aromatizavam toda a casa. E eram tantas vozes, e tantas palavras, e tantos sorrisos, e a sua voz, e as suas palavras, e os seus sorrisos. E agora este cheiro de bolo e de pãezinhos misturado com o cheiro de poeira, e misturado com a saudade que nem palavras existiam para explicar. Era ela, a mãe, quem comandava toda a felicidade! Lembrava do resto da casa, e respirava fundo cavando forças perdidas pelo tempo.

Sempre em passos lentos, foi em direção à sala de jantar. O seu olhar mantendo a melancolia das recordações impregnadas na casa. Mesmo com a tarde caindo, ele insistia em não acender as luzes, aproveitando todo o restante da claridade. Avistou tantas portas fechadas. Quartos e banheiros. A garganta ainda mais seca. Apressou os passos de volta à cozinha, abriu o armário e, da torneira da pia, tomou um copo transbordando de água.

Voltou à sala e acendeu todas as suas luzes.

A mesa rodeada por tantas cadeiras e coberta por um lençol branco já empoeirado. Os sons de pratos e talheres transformados em vazios. Um cheiro de dias de aniversário tomou conta da sala. Aquele lençol branco, cobrindo a mesa e cadeiras, provocou outras lembranças e reduziu o coração. Virou-se de vez, se encaminhou a cada um dos quartos e, diante das portas, ficou observando camas, janelas, guarda-roupas, tapetes e quadros. Travesseiros e cobertores guardados. Faltava ainda mais um quarto a ser aberto, mas, deste, ele nem chegou à porta e desviou o seu olhar. Foi à sala de estar e, cautelosamente, abriu parte de uma janela. Sentou-se no sofá, deitou, e sentiu vontade de dormir por muito tempo. Olhou para fora, o sereno batia em seu rosto e, com a respiração às vezes bloqueada, fixava o olhar sobre o céu.

Ouvia vozes, ouvia sorrisos, gargalhadas espirituosamentes abertas, brincadeiras como de criança. Visualizou o seu rosto dormindo nos cochilos das tardes, o eco da sua voz, os segredos repartidos, os seus movimentos pela casa, seus carinhosos bilhetes com beijos e abraços e amor, o seu beijo, o seu abraço, o seu amor, as fotografias espalhadas e vivas na memória. Era ela!

Minutos depois, se levantou decidido a abrir a porta daquele quarto que faltava. Apesar do impulso de desistir, o abriu de imediato e logo acendeu as suas luzes. As pernas afundadas num tempo que nunca retorna, e o coração palpitando tão forte em meio à primeira imagem captada: a cama de casal. O travesseiro guardado para sempre. E, o outro travesseiro, não resistindo ao silêncio, também havia partido. “Mas não adianta! A saudade e as lembranças estão na memória. E esta nos acompanha aos lugares mais distantes!” desabafou. Ninguém resistiu, e a casa é estranhamente outra.

Todas estas cenas diante da porta. Todos os móveis ainda na mesma posição. Olhou a penteadeira, também coberta por um lençol branco, e ali estavam todos os porta-retratos da casa. Um bem junto ao outro, e cobertos. Vontade de ver aquelas fotografias! Queria desta vez ter coragem de contemplar uma a uma e, então, sem pensar muito, se encaminhou à penteadeira e levantou aquele lençol branco. Todos os porta-retratos estavam de costas para ele e, os que estavam junto ao espelho refletiam olhares em seus olhos. Um olhar, em especial, foi direto ao seu. Era ela, naquela fotografias entre preferidas. Imediatamente a tomou em suas mãos e, com a imagem acinzentada pelas lágrimas, olhou bem naqueles olhos enquanto se encaminhava em direção à cama. Ajoelhou-se com aquela fotografia em suas mãos, se inclinou sobre o colchão e se entregou a um choro compulsivo. E alto, e forte, e denso.

Ficou naquela mesma posição por quase meia hora. Depois, deitou-se no chão, abriu os braços e pensou em tantas felicidades. Levantou-se, olhou para o guarda-roupa e, certo de que não deveria abri-lo, saiu do quarto deixando a porta entreaberta. Voltou à sala, deitou-se no sofá e estendeu o porta-retrato sobre o seu peito. O olhar fixo no vazio do teto e grudado nas serenas recordações. Inclinou a cabeça para a janela aberta e, por tanto tempo, ficou olhando para o céu.

Horas mais tarde fechou os olhos, enquanto ouvia um suave ruído de folhas secas sendo espalhadas pelo vento.

In: Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento. Edições UESB, Ba, Brasil. 2002.

3 comentários:

  1. Sempre que leio este texto,viajo no tempo...e a saudade aumenta....Saudaddes,saudades e muitas saudades.........

    ResponderExcluir
  2. Entrei no texto. Caminhei pela casa. Vivi a emoçao. Sai na certeza do reencontro.

    ResponderExcluir
  3. Saudades são muitas... palavras que foram ditas, companhia compartilhada,o cafezinho da hora, tomado à tarde sempre que eu chegava e as risadas, a busca pela cumplicidade quando ela contava alguma coisa sobre o jeito de ser do filho mais velho. Ah! o privilégio de ter vivido isso tudo.Bênção! Esta é a palavra.

    ResponderExcluir