segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A menina que era louca

Todos diziam que ela seria uma louca. Todos. A mãe, o irmão e a irmã; de vez em quando o pai; e a avó, a paterna, era pior do que os vizinhos, e insistia em dizer que a menina, coitada, era uma desajustada, “eu desconfio que tenho uma neta louca. Se ainda não é, será!” Enfática. Profética. A avó, sempre empurrando a menina para os braços da loucura, sempre foi assim, desde que a caçula nasceu. No começo, os seus comentários ainda pareciam brincadeira, até que foi contagiando a todos e os dias mais desconfiados foram gradativamente demonstrando que ela seria uma louca, de verdade. A avó sempre a perturbar a cabeça da mãe da menina que, de vez em quando, disfarçava e dizia que tudo aquilo era mesmo brincadeira de criança, e que a sua filha, ao crescer, seria uma pessoa normal. “Coisa de criança”, dizia com alguma convicção o pai, quando sentia a dor causada pelos comentários jogados sobre a sua filhinha caçula.

E a menina ouvia aqueles comentários já tão comuns, comentados como se ela não estivesse por perto, e não estivesse ouvindo nada, e nada fosse, e um futuro doido a esperasse. Ela ouvia tudo aquilo, uma dor solitária, e se encolhia dentro, bem dentro dela mesma, e, em cada dia, em todos os dias, em todas as noites ou ainda ao amanhecer, ela sentia uma necessidade, quase sagrada, de ter um tempo reservado apenas para pensar na nova cena que a louca teria que encenar. De tanto ouvir que era louca, ela foi se sentindo cúmplice, comprometida, e se envolvendo em meio a um prazer misturado com perversidade. A porta trancada, a menina lá dentro do quarto, lá dentro do banheiro, lá dentro dela mesma, a louca pensando. A louca pensando tanto, cautelosamente a louca pensando, a louca, a louca, louca, louca... Ecos enlouquecedores a lhe ensurdecerem quase de vez. E a menina ora se encolhia, ora se divertia, secretamente, com tudo aquilo que diziam a seu respeito.

Os dias se passavam e a menina silenciava-se, silenciada, conversava menos, e se recusava a brincar com o irmão, e a brincar com a irmã, e a ouvir as reclamações da mãe e da avó mandando que fosse tomar banho, e que parasse de fazer careta no espelho, e que não comesse igual a bicho, e que estava passando da hora de dormir, e tantas outras reclamações que, com o tempo, foram perdendo o sentido. A menina agora diante do espelho, sem pronunciar uma palavra sequer, a cara toda borrada de tanta pintura, e ela esfregando a cara no espelho e gritando desesperadamente para aquela outra, um ódio daquela outra, que era ela mesma, dentro do espelho.

“Pára de gritar”, gritava a mãe, desesperada. E a avó “essa menina já passou do tempo de um tratamento”. A menina, com a cara toda borrada e com o espelho em suas mãos, virou-se para a avó, olhou bem dentro daqueles olhos pioneiros em dizer que ela era louca, olhou bem fundo, aproximou-se, lentamente, e a avó se recuava, “tira ela daqui”, gritou arrogantemente para a nora que chorava lá no quarto, a menina aproximou-se, e, bem próxima, sorriu cinicamente para a avó, pegou o espelho, colocou bem de frente para aquele rosto apavorado, e fez a avó ver seu próprio rosto apavorado naquele espelho todo manchado de maquiagem. Depois, com naturalidade, a menina sentou no chão da sala e brincou com as suas bonecas, todas nuas, as bonecas. Ela sorria carinhosamente para elas, apenas para elas, as bonecas.

A avó sentada na cama ao lado da nora, as duas olhando o chão e enxergando a menina em todos os lados. Os irmãos da menina também sentados, em silêncio, em suas camas. Os adultos apreensivos com a loucura da menina, a loucura que parecia se confirmar de vez para eles. Os irmãos no quarto, diferentemente dos adultos, não estavam apreensivos, mas tristes. Nunca estiveram tão tristes como naquele dia. A irmãzinha mais nova era mesmo louca, e eles sentiam muita vontade de brincar com ela, como tão raras vezes conseguiram, e há tempos atrás. O pai que não chegava. Onde estava o pai naquele fim de tarde de domingo? Aquele domingo tão triste e a criança na sala, isolada. A louca. A doida. A maluca. A menina, quietinha em seu canto, atenta a qualquer ruído pela casa, doida pra se libertar da louca daquela noite. Ninguém sabia disso. Apenas ela. Apenas ela sabia o quanto queria agora se libertar daquela louca toda confusa dentro dela.

A menina fazia de conta que estava brincando, e olhava o tempo todo para a porta, doida pra o pai chegar logo. Com ele, não se sentia tão isolada. Foi aquele o dia que ela não mais suportou o peso da loucura que jogaram dentro da sua mente. Estava cansada, muito cansada, queria agora ser igual ao irmão, igual à irmã, igual às outras netas da sua avó. A avó. Ela não sabia o motivo de a avó nunca ter lhe dado conversa, e nunca tê-la abraçado como abraçava a todos os outros.

A bolsa da avó sobre a mesa. As suas maquiagens que ninguém deveria tocá-las, e a menina não teve dúvida: pegou a bolsa, abriu com muito prazer, retirou o estojo de batom vermelho, vermelho mais escuro, vermelho mais claro, cores sempre ativas, e olhou para o chão e para as paredes da sala. Os batons sendo transformados em palavras soltas e desenhos de rostos arrogantes e tristes no chão e nas paredes.

A sala agora colorida, a menina sozinha e sem conseguir esconder a sua tristeza. E, nesse momento, sem serem percebidos, o seu irmão e a sua irmã quase chorando a observavam, enquanto ela chorava com os braços abertos sobre um dos rostos estranhos pintados na parede. Comovidos, eles se aproximaram dela e a abraçaram como há tanto tempo sentiam vontade. Neste instante, o pai também chegou. As três crianças choravam, abraçadas; o pai parado na porta, emocionado. A sala colorida, a menina que era louca.


In: O Silêncio e a Bagagem, 2008.

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