sábado, 17 de outubro de 2009

O velório da avó


Véspera de feriado, e Márcia saindo do trabalho com os seus planos mudados para este dia. Já não viajaria, pois o feriado tornou-se um velório ao qual ela não poderia faltar. A avó de um dos seus colegas de trabalho morreria no decorrer daquela noite, e a sua presença era contada. Amiga até a morte era ela.

Esta seria a segunda vez que a velha avó morreria, e ela garantia com a pureza da sua alma de que da meia-noite não passaria nem um minuto. Apesar de a primeira ter lhe rendido quase um ano de vida, não dava para duvidar da segurança da sua voz fraquinha e nem do seu olhar quase no céu. Ela assegurou que era certo que não falharia a voz que cochichava ao seu ouvido. Um pressentimento, premonição, coisa assim. O neto, sempre atento, era quem lhe dava banho, arrumava os seus cabelos, cuidava da sua aposentadoria e guardava o dinheiro para o banquete do seu velório. As velas podiam ser de segunda, as flores de qualquer jardim, o caixão sem almofada, mas do banquete ela não abria mão e tinha que ser farto. Carne assada, carne com molho, carne de porco nem pensar, e uma farofinha de manteiga já faziam parte do seu cardápio. Cafezinho não poderia faltar nem por um momento sequer. Chá de erva-cidreira, camomila, capim-da-lapa, sabor para todos os gostos. Ela, que sempre foi atenciosa, prestativa e agradecida, não queria que as suas últimas visitas deixassem de ter o tratamento que ela lhes daria em vida. O dinheiro era sempre pouco, mas rendia pelo tamanho do seu coração.

O neto não media esforço para cuidar da avó. Acordava sempre cedo, e acordada ela quase sempre já estava. Segurava em seus braços, a levava para o seu banho e despia a velha quase como se despe uma criança. Não tinha vergonha, mas sentia para ela que também já não se importava muito. Debaixo do chuveiro, ligava o chuveirinho de plástico e deixava a água morna cair sobre aquele corpo enrugado, frágil, e lembrava dos vinte anos atrás quando ela era responsável pelo temperado cheiro que vinha da cozinha na hora do almoço. O xampu pela cabeça, a esponja pelo corpo, a água com sabão escorrendo entre os seus seios bem murchinhos. Foi dali o leite da sua mãe, do tio, das tias e agora tão longe de qualquer emoção. A água escorrendo corpo abaixo e, sem qualquer receio, se virava todos os dias pra ela “vó, lave a xoxota”, e ela “está limpa, seu moleque safado.” E ele repetiu isto tantas vezes até que ela nunca mais se esqueceu e, algumas vezes, apenas dizia “vira pra lá”, e ele com o chuveirinho que deixava bem limpinha a avó.

E amanhã ela estaria partindo para sempre! Ia fazer falta, e o trabalho que ela dava não era tão grande assim. Mas, como ele queria que ela esperasse pelo menos mais cinco dias! Era o tempo que faltava para levá-la ao banco e renovar a sua aposentadoria por mais seis meses. Precisava de uma viagem de férias, descansar dos quase três anos em que deixaram aquele compromisso com ele. Mas não, ela decidiu partir bem nas vésperas, embora ele considerasse como ingratidão. Saiu então do trabalho e foi direto ao mercado comprar todo o material necessário ao banquete. Vários frangos sem asa, sem pé ou pescoço. Carne maciça. Ensopado de frango, assado de boi, e o cheiro chegando ao olfato da avó. Tomate, cebola, alho, sal à gosto, tempero verde. A cozinheira era a sua tia mais velha, e que havia chegado para assumir a sua palavra. Ele entre a cozinha e o quarto da avó. Olhava nos olhos, na respiração, no movimento do corpo, “parece que desta vez ela teve o aviso certo!” O telefone que não pára de tocar. As mesmas perguntas. O ônibus que chegaria trazendo duas tias, um tio, a sua mãe e mais outros da família que foram um dia para São Paulo e nunca mais retornaram definitivamente. Mas agora a velha avó havia dito “se não me visitarem desta vez, eles vão ter uma surpresa!” E esta tal surpresa apavorava a todos.

Pouco mais de vinte minutos para meia-noite, os parentes da redondeza, os amigos e vizinhos avisados começavam a chegar. O neto apreensivo, saudades da avó, o ônibus atrasado, mais cinco minutos se passaram, a água fervendo para o café, três chaleiras de chá em plena ebulição, o cheiro da carne quase assada, o caldeirão de frango quase no ponto, um olhar na avó, uma caixa de vela em cima da penteadeira.

O relógio grande na parede da sala. Os ponteiros, que pareciam mais ritmados, nunca foram tão observados ao mesmo tempo. O neto já não saía de perto da avó, e, por fim, os seus olhinhos foram ficando ainda mais miúdos. Ficou emocionado quando ela balbuciou uma palavra. Duas, talvez. Aproximou bem os ouvidos à sua boca. O hálito ainda morno da avó. E bem baixinho, como junto às últimas respirações, ele escuta aquela voz fraquinha, tão sem som: “A vela!” Ele sentiu uma lágrima em cada um dos seus olhos e beijou sua face enrugada.

Pegou a vela, colocou entre as suas mãos, e com um aperto no coração a acendeu. Em silêncio ficou acompanhando a avó partir. Dois minutos para meia-noite. A vela acessa se derretendo. Uma gota, duas gotas, três gotas sendo acumuladas e escorrendo vela abaixo até atingir a sua pele tão sensível. Foi ai que o inesperado aconteceu. A avó sentiu dor, abriu os olhos e reagiu jogando a vela sobre a cama: “Me queimou seu moleque!”

Os parentes de São Paulo foram chegando e grande foi a surpresa. “Mas esta velha deu todo este trabalhão pra gente!”, reclamaram em meio ao cansaço. O jantar foi servido quase uma hora da madrugada. Um banquete como tanto recomendou.

No dia seguinte, o banho e o chuveirinho com a água morna: “Vó, lava a xoxota”, “Está limpa, seu moleque safado.”


ANDRADE. I. Luiz. In: Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento. Edições UESB. 2002.

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