sábado, 3 de outubro de 2009

Um dia para um Bergmann e coisas da velha agenda VI

Folheei a velha agenda. Acredito que hoje será a última vez que farei referências mais diretas à esse amontoado de palavras espalhadas aleatoriamente pelos dias quem nem sempre são os seus. Já comentei quase tudo da agenda, e outras coisas não precisam ser mencionadas, ou preferem as páginas guardadas como uma espécie de “ainda bem que não falei nada!”. Sabedoria ficar calado de vez em quando! O estado de libertação do ser oprimido pelo excesso de palavras, excesso de frases, excesso de informações que seriam mais adequadas nas linhas dentro de alguma agenda fechada na minha ou na sua gaveta. Na estante, na escrivaninha, dentro de alguma caixa. Cada um guarda a sua, óbvio. E falar o óbvio é uma faca de dois gumes.


Tantos dias se passaram desde que escrevi, aqui, pela última vez. Senti muita falta, mas eu não consegui ser mais forte do que os dias que se passaram; não consegui ser mais forte dos que os dias adiados; não consegui ser mais forte do que as demais coisas a serem feitas. Não temos esses dias assim? Sim, eu sei, eu sei que muitos até podem ter seus dias assim, mas que vão lá e fazem sim, arranjam um tempinho ao estender as horas mais um pouquinho e fazem a outra coisa, sim, eu sei. Mas nem sempre consigo. Paciência. Ouço demais o Lenine cantando tão bela música: “Eu finjo ter paciência”. Mas escrevi. Escrevi dois ou três prováveis contos durante o intervalo daqui, e escrevi um artigo para o XXII Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, realizado em Salvador. Um artigo sobre as Cartas da Guerra, escritas por A. L. Antunes para a sua então esposa, durante os anos em que esteve no Leste de Angola (1971-1973), na Guerra Colonial. Impecáveis! As cartas, os dados, as emoções, a saudade, os desejos, paisagens da guerra: a guerra exterior e uma guerra interior. Uma fonte de pesquisa.


Hoje já estou em Portugal. Ontem estive na Universidade de Coimbra e foi imenso prazer ouvir a professora Dra. Ana Paula Arnaut. A sua brilhante apresentação sobre a obra de A. L. Antunes. Profunda conhecedora da sua escrita, o dom da palavra, análises intensas. A sua apresentação fez mais do que valer a minha viagem de Lisboa a Coimbra, além das paisagens agradáveis pelas estradas de Portugal. Foi um degustar do saber. Um passeio pelo interior das personagens e com uma intimidade em cada personalidade criada pelo sábio e mestre Antunes. Difícil um leitor ouvir tamanha apresentação e não sair com vontade imensa de ler, por exemplo, O Esplendor de Portugal e vivenciar a história de Isilda - mãe de três filhos e expulsa da própria fazenda em África - ou ler o primeiro livro de A.L.A que aparecer na estante mais próxima e saborear a diversidade de comportamento das suas personagens vivas, ainda que mortas, nas páginas dos seus romances. Agora em Outubro, o lançamento do seu novo romance: Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar. Eu sedento. E aguardando com grande prazer, também, o novo livro de Ana Paula Arnaut, agora em outubro, sobre a obra do escritor.


Depois vim para o Porto. Estou aqui, e agora sentindo o agradável cheiro de rojões dançando na panela rodeado de azeite e vinho branco. A arte na literatura e a arte na cozinha. A arte, fundamental em cada lugar do fazer, quando o artista domina o seu espaço. Baila.


Da velha agenda, sempre bem nova em muitas das suas anotações, as Linhas de Pesquisas do meu grande orientador do mestrado, o Dr. L. Bouças Coutinho: 1. Imaginários culturais e literatura; 2. Construção crítica da modernidade; 3. Diálogos interculturais e intersemióticos. Eu, feliz quanto aos meus sábios orientadores. Agora, no Doutoramento, o Dr. António Moniz e o meu compromisso em respeitá-lo com uma tese que corresponda ao seu nível de conhecimento e empenho. Meu Deus, socorra-me!


A agenda. Mais livros anotados, bibliografia ampliada e outras anotações como: Tanto Foucault, Derrida, Freud quanto Nietzsche fazem uma releitura da sociedade ocidental, propondo uma desconstrução dos seus valores… Para Lacan, é impossível captar o real, descrever através de palavras. (hsmPaEsyNdlhSkhAMjgEjaNTOSsdh) Dito e redito: A nossa relação com o mundo é uma relação simbólica. (grifado). Espaço em branco. TODA ESCRITA FICCIONALIZA O SEU LEITOR. Lemos o mundo a partir dos saberes que são construídos culturalmente (sociedade, igreja, família…). Esse intercâmbio de saberes (Saber é uma forma de domesticar a realidade) está mediado pela linguagem. Entre o sujeito humano e o real se interpõe a linguagem que não só metaforiza o real, mas também o falseia. Mas a linguagem também organiza o real, de maneira que pensamos como “real” aquilo que o horizonte da linguagem articula como tal. Em outra página, talvez até o que eu já citei aqui: “A cultura não se herda, conquista-se”. (André Malraux, 1901-1976). É, eu sei, outros já disseram a mesma coisa em outras palavras. As coisas são ditas de outra maneira e se fazem novas, pois chegam de maneira diferente, chegam com algo novo, chegam em contextos e momentos diferentes. Frase ímpar é “E eis que tudo se fez novo!”


Pensei que não falaria mais da agenda. Pensei. A gente sempre corre o risco de pensar o que não é, ou nunca foi, ou ainda será; pensar que algo deixou de ser e nem deixou. A gente corre o risco de pensar de outra maneira que não. Ou que sim. Correr o risco não significa necessariamente estar diante do risco.


Hoje, para mim, está um bom dia para um Bergmann. E qual é o seu Bergmann de hoje?

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ismar, meu caro... com esse papo sobre os entrelaces entre o "real" e a "linguagem', meu Bergmann de hoje é o bom e velho Wittgenstein, que dizia sabiamente: "os limites da linguagem são os limites do meu mundo". Afinal, só enxergamos o mundo a partir desse universo simbólico ao qual nos entregamos, no qual "confiamos" e pelo qual eu particularmente sou uma apaixonada ad eternum.

    Parabéns pelo blog. Espero fazer muitas visitas, a despeito de todas as "anti-forças" do cotidiano... E não nos esqueçamos de que a linguagem é sempre a nossa mola propulsora, o nosso "leitmotiv" rss
    Bjs
    Jaqueline Lé

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