quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ulisses e um esquecimento

Circe!
Fecha as portas do teu castelo
Rompa as paredes até o chão
E das tuas portas faça brasas que incendeiam a tua vara de magia.

Mas antes,
Antes, Circe,
Firme a vara em tuas mãos
E que os porcos, de homens metamorfoseados,
já não permaneçam porcos:
Que os homens conscientes, porcos atolados em teus lamaçais,
Ressurjam como tais, dos chiqueiros da tua alma.

Porcos bêbados pelo encantamento da tua vara tão distante do fogo
A bebida cheia de encantos, encantamentos
(Vinho do Pramno, queijo, farinha de cevada e mel amarelo)
O néctar, a droga do esquecimento
(Lótus. Como lótus! Doce sabor, “Doce esquecimento”)
A lembrança da pátria apagada da memória.
Tão bela Circe,
As lembranças da pátria apagadas aos emissários. De Ulisses.

Mas.
Um cheiro de antídoto exala no ar desde a Ilha de Ítaca.
E vem daquela direção:
Ulisses? Ulisses a caminho
O libertar dos teus emissários de dentro dos porcos de espíritos maus
(Como a passagem no Leste do Mar da Galileia, Mateus, Marcos e Lucas?)

Hermes, mensageiro dos deuses,
Bem o preveniu sobre a força mágica e fulminante da insidiosa Circe:
E entregou-lhe o antídoto.
Ulisses! Não apenas persuadiu Circe: liberdade aos emissários!
Não apenas.
E, sem antídoto para o que não havia, tomado pelo amor entregou-se aos braços. De Circe!
Um ano. Inteiro.
E a droga do esquecimento consumindo as lembranças: apagadas
O retorno para casa: silenciado
E Penélope: esquecida.
Até que.

Porto, 23 de Dezembro de 2009.


*Nas passagens por alguns textos a respeito de memória, algumas e diversas marcas sempre permanecem intensas. Odisséia. No sétimo canto, o relato de Homero sobre o heróico Ulisses em seu retorno de Tróia foi hoje uma das marcas, que, talvez, não tenha sido a de outras leituras anteriores. Lançado num naufrágio, debilitado é encontrado pela filha do rei e recebe a grande hospitalidade no mundo de Homero. No retorno para casa, depara-se com as perturbações do esquecimento. Fiquei ali pensando um pouco mais, peguei o teclado, cheio de letras tentadoras, e realmente nem pensei muito na lógica de postá-lo ou não. tudo bem, pode ser meio devaneio ou um devaneio inteiro.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Têm dias que são assim

Tem dia que parece meio estranho, meio surdo, meio sem voz, sem um sabor a deslizar o gosto prazeroso do ser e das coisas. O cheiro abafado, o ânimo impotente diante de tudo que se torna pesado demais, quando os pés parecem atrofiados sobre o nada que se faz rocha firme se espalhando pelo solo.

Tem dia que parece calado. Ofegante. Estagnado diante das horas incessáveis que giram no relógio do Outono e giram, giram em todas as estações, alheias ao instante interior que é nada diante dos esnobes ponteiros incansáveis. As horas, os lugares e as coisas dentro dos pensamentos que gritam ou bailam. Palavras cansadas murmuram qualquer coisa e depois se aquietam e dormem, enquanto o relógio passeia por todos os lugares que se espalham lá fora e dentro de nós, no invisível de cada um.

Têm dias que são assim: brotam felizes.

Praia de Esmoriz., 19 de Dezembro de 2009.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Erpentes

Era o décimo sétimo dia do sexto mês do ano, estando Erpentes comemorando a vida entre um povo estranho, embora, até então, ele assim não o percebesse. Todas as taças de vinho já haviam sido quebradas. Exceto uma, de onde todas as bocas se valiam.
Era uma casa estranha, quartos com móveis escuros e empoeirados, umidade e rachaduras em seu assoalho, lençóis encardidos, suores envelhecidos, e os da noite anterior. A sala ampla, espelhada, móveis arrojados, quadros e peças valorosos, tudo ali aparentemente tão limpo. Um corredor enorme levava a um quarto que, quando fechado, quase ninguém sabia onde se encontrava a chave. Dele, um ar quente ora frio saía pela fresta inferior da porta causando estranheza aos novos freqüentadores que por ali passavam. E estes eram muitos, e sentiam aquele cheiro de mofo e podre e que vinha junto com aquele ar frio.
Erpentes também achou tudo aquilo estranho. Mas a sala era bonita, exalava poder, e ele foi se conformando com o que seria contrário aos seus princípios de asseio. Havia muito vinho, cristais dos mais caros, conforto, luxúria, as mais raras gravações musicais, erotismo, e ele se sentiu seduzido e incapaz de impor algum limite.
Desde que ali chegou, a sua aparência passava por transformações, e ele nem percebia. Os olhos tornaram-se avermelhados, e o seu sorriso bonito parecia doente, cínico e entregue a um prazer tão intenso que ele nem desconfiava que no fundo o torturaria.
A única taça que sobrara estava em suas mãos, e ele bebeu todo o vinho de uma só vez. Foi quando um grito forte e sensual veio de lá do fundo do corredor, do quarto que permanecia fechado. Neste momento, todos correram para aquele lugar como se fosse um grito de alerta, de liberdade, anunciando a hora mais esperada. E Erpentes seguiu-os já totalmente desinibido, e com a última taça presa em suas mãos. Sentindo um forte calor, começou a se despir como todos os outros, e um grande movimento começou. Olhares insaciáveis, perdidos entre os tantos olhares em êxtase, alheios a qualquer fidelidade. As luzes foram apagadas, e Erpentes então sentiu que estava descobrindo mais fantasias e outros novos prazeres. Tocava todos os corpos possíveis e, na sua volúpia, a taça foi esmagada entre o seu corpo e outros corpos. Pontas de cristais rasgavam o seu corpo. Foi quando gritou, mas parecia tão tarde para se libertar daquela multidão que já o sufocava.
Os olhos de Erpentes ardiam como brasas, e ele desesperava-se em dor. Deles, um fogo estranho que, em meio à escuridão, o levou a sair espremido entre a multidão e alcançar a porta. Estava trancada. E ele batia tentando abrir enquanto a multidão o impedia. Por debaixo da porta e pelo buraco da fechadura, exalava o mesmo cheiro de deteriorado do outro quarto. Sentia-se cada vez mais sufocado, até que a porta se abriu. Saiu a correr quando repentinamente a porta do outro quarto também se abriu. E foi ai que ele gritou desesperado, como nunca havia gritado em toda a sua vida. Em meio aquele cheiro insuportável, viu com os seus próprios olhos surgir do meio de um amontoado de ossos um ser que ele não sabia definir. E se encararam, e a sua respiração pressionava Erpentes contra a parede. Era um ser de mais de dois metros de altura. Tinha sete cabeças e dez chifres e, sobre os seus chifres, dez nomes que ele não conseguia pronunciar. Seis cabeças pendiam para um lado, e outras seis para o outro lado. A cabeça do meio era semelhante à do homem que a todos recepcionavam naquela casa, porém tomada de escamas e com dentes tão grandes como ele jamais havia visto. As três cabeças do lado direito eram semelhantes a animais; duas das cabeças do lado esquerdo eram semelhantes a monstros, e a terceira lembrava-lhe um rosto tão perfeito de uma noite dos seus sonhos. O corpo era como o de um leopardo, do leão ele tinha a boca, os pés tirados de um urso, e as unhas fortes como lâminas; os olhos, estes eram dissimulados. Quando aquele ser virou-se de lado, ficou ainda mais surpreso. Um enorme rabo de dragão. E as costas eram humanas e com marcas de grades, em chagas. Tentou novamente correr, mas o corredor estava fechado por tantos ossos secos. Gritava aflitamente pedindo socorro à multidão que estava no quarto, mas todos tornaram-se indiferentes. Pareciam acostumados a tudo aquilo. Erpentes então se prostrou sobre o chão e muito chorou. E veio uma nuvem escura e cobriu o seu corpo.
Erpentes dormiu muitas horas, acordando ainda nu. Sobre o seu corpo totalmente dolorido, um pó desconhecido. Olhou para a porta do quarto e estava novamente fechada, contudo o mesmo cheiro forte continuava exalando por entre as frestas. Todos haviam ido embora, e um ruido assustador rodava pela casa. Fez muito esforço para se levantar, e conseguiu libertar-se de parte do pó. Foi quando percebeu tantas marcas por todo o corpo. Diante do espelho, ficou ainda mais espantado com as marcas em suas costas. Eram iguais às das costas do ser estranho.
Procurou suas roupas, mas não as encontrou. Valeu-se de um lençol limpo jogado pelo corredor. Cobriu-se e atravessou a casa rumo à rua. Era novamente noite, e a sala já havia sido arrumada. Desconfiado, atravessou a porta quase alheio aos olhares que chegavam para a festa seguinte.
Na rua, pouco conseguia andar. Cambaleava com os pés feridos, mas precisava prosseguir para algum lugar bem longe!

In: Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento, Edições UESB, 2002.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Tudo se faz sombra

Deixei na última gaveta da cômoda a recordação prometida para quando este dia chegasse.
Deixei ali
entre os papéis de sentimentos descritos como nódoas grudadas para sempre
e nódoas fragilizadas
sensíveis
que se apagam
com o tempo.

E sobre o travesseiro coberto pela fronha ainda alva de ontem
Deixei o meu abraço quase apertado
quase melancólico
quase uma parte de mim.

E deixei o meu abandono que não era ao lado do teu abandono que não era
E as marcas da minha saudade misturadas nas marcas da tua saudade deixei
Um pouco de mim dentro do teu quarto
Dentro do teu cheiro
E dentro das tuas recordações que remoem as horas do passado
e o presente que nunca cessa com as fotografias que se movem apenas na memória.

Deixei.
E trouxe comigo um pouco do que lhe pertence:
Nada mais.

Silenciosamente parti.
A chave em minhas mãos
Propositalmente perdida ao andar pelas margens do rio de
águas que segredam palavras de laços rompidos.
A imensa ponte atravessa o rio
e a sua sombra se move sobre as águas.

Tudo se faz sombra
E eu ali,
Dizendo mais uma vez:
Nunca mais!

Lisboa, 08 de Dezembro de 2009.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Fotografias coloridas e mais nada

Ninguém conseguiu dizer mais nada depois que a música acabou.
Todos ficaram emudecidos com uma espécie de punhal melancólico
ardendo com as recordações que bailavam
como folhas amareladas
já enfraquecidas e arrancadas pelos ventos dos belos e nostálgicos dias de outono.

Ninguém conseguiu dizer mais nada.
E a música parecia ecoar ainda mais alta no silêncio atordoado
com a voz intensa entre graves e agudos penetrando
na alma,
os acordes pareciam ninar sem conseguir acalentar
as nostálgicas imagens das recordações gravadas em fotografias espalhadas pelas paredes,
gavetas
porta-retratos enfeitando densamente as peças com jarros e flores de brilhos empalidecidos.

Ninguém conseguiu dizer mais nada,
e sufocavam-se em suas respirações ofegantes,
abafadas,
todos sentados nos mesmos lugares,
parados,
estáticos como as fotografias coloridas
e mais nada.

Lisboa, 06 de Dezembro de 2009.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Um abraço pela metade

Abriu a porta bem devagar com aquela saudade dentro do seu peito, guardada desde quando há dez anos havia partido para voltar no mês seguinte. Abriu a porta bem devagarinho, com aquele desejo guardado no coração. O desejo de fazer-lhe uma surpresa com o seu abraço e com os seus olhos cheios de emoção, e correndo para os
seus braços, sem desgrudarem os olhos um do outro, e aquele calor em seu peito, sem precisar de palavras para dizer eu te amo e eu te amo também.
Abriu a porta com aquele suspense retido no coração, uma aflição por não saber se ainda era esperado, e um impacto grudado em suas bruscas recordações: o menino correndo pra lá e pra cá, hora da merenda das três horas da tarde, café-com-leite, pão com manteiga, fatias de bolo de laranja, qualquer coisa que anunciasse que dali a pouco seria a hora do banho, a tardizinha chegando, e os seus sonhos que rompiam até mesmo a escuridão da noite. Foi bem deste jeito. Pensamentos tumultuados por acontecimentos, e não sabia mais como se controlar frente ao encantamento.
Ficaram ali abraçados sem dizer uma palavra sequer. Apenas aquele suspiro tão fundo e carregado de espanto pelo que parecia nunca mais acontecer. As pernas se batiam umas nas outras, os corações se empurravam pra lá e pra cá, e os rostos quase um queimando o outro.
Ficaram abraçados naquele estado de comoção até que ele percebeu que o abraço que lhe acolhia foi, aos poucos, bem aos poucos mesmo, se soltando dele e o coração deixando de pulsar junto do seu. Ele com tanto desejo de se manter acolhido, ao menos por mais um pouco de tempo, mas ela olhou dentro dos seus olhos, com uma dor escondida por tantos anos, e, numa atitude inesperada, olhou ainda mais fundo, deslizou os seus dedos sobre o seu peito, recuou-se, lentamente, e num gesto brusco o empurrou para trás, desfazendo de uma só vez todo o abraço guardado por dez anos.
“Desgraçado!” Ela disse, com um olhar melancólico. “Por todos estes anos, você só pensou em você mesmo, e desconheço a sua saudade. Suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo até que sumiram de vez no meio de tudo que foi sendo encontrado lá fora. E eu aqui grudada no telefone, e grudada na sirene, e grudada no correio que nunca mais chegou.”
E ele, sabe-se lá se coitado, entalado com o abraço cortado pela metade, ficou ali parado com os braços entreabertos, enquanto ela se afastava, olhando em seus olhos, e repetindo as mesmas palavras e outras palavras que ele já nem conseguia definir o que diziam. Ela continuou se afastando, até que as suas costas bateram na mesa, ela se virou de costas e arrancou as flores artificiais que havia dentro daquele jarro de vidro transparente, e as jogou em seus próprios pés. Logo sem seguida, pegou o jarro e, com veemência, o lançou com força aos pés dele, que permaneceu sem dizer uma única palavra.
A mala bem ali ao seu lado. Uma bagagem desconhecida, quem sabe um presente que demonstrasse que em algum momento ela havia sido tão lembrada naquela terra, que, para ela, era terra desgraçada, terra que encantava e roubava sentimentos alheios. Ela olhava para aquela bagagem, pequena demais para quem esteve fora desde uma década atrás, e, enquanto isso, se ajoelhou, apertou a cabeça entre os seus braços, e deu um grito tão alto que ele achou que fosse grito de doido.
“É grito de doido!” Ele pensou, apavorado pelo risco de ter trazido de lá de fora a loucura para dentro daquela casa. A boca travada, a cabeça novamente cheia de recordações: o café-com-leite derramado sobre a mesa, a orelha vermelha igual a brasa, ele injustamente levado ao castigo, e aquele choro sem fim.
O grito que ele já imaginava ser grito de doido encheu toda a casa e pulou janela afora. Ele deu um passo à frente, e parou quando ela deu um passo para trás. Foi neste momento que ela olhou bem mais dentro dos olhos dele, levou as mãos até a gola do seu vestido e o rasgou de cima a baixo, expondo toda a sua nudez guardada por tantos anos.
Ela andou direção a ele, sempre em passos lentos, abaixou-se diante dos seus pés, pegou sobre o chão um dos cacos do jarro, retornou alguns passos, ele atônito, ela controlando todos os olhares, e, de uma só vez, apertou, dentro das suas mãos, aquele caco pontiagudo. Ele, trêmulo, levou as suas mãos sobre o seu rosto, tornando turva a sua visão, enquanto ela foi em direção a porta, ainda aberta, e saiu em passos longos pela rua afora.
Mais cinco anos se passaram. Mas, ele, sempre silencioso, nunca deixou de visitá-la naquele quarto cheio de medicamentos, nem de acariciá-la quando ela permitia, e nem de levá-la para passear por aquele jardim tão arborizado, embora o ache tão sombrio.

(In: O silêncio e a bagagem. 2007.