sábado, 12 de dezembro de 2009

Erpentes

Era o décimo sétimo dia do sexto mês do ano, estando Erpentes comemorando a vida entre um povo estranho, embora, até então, ele assim não o percebesse. Todas as taças de vinho já haviam sido quebradas. Exceto uma, de onde todas as bocas se valiam.
Era uma casa estranha, quartos com móveis escuros e empoeirados, umidade e rachaduras em seu assoalho, lençóis encardidos, suores envelhecidos, e os da noite anterior. A sala ampla, espelhada, móveis arrojados, quadros e peças valorosos, tudo ali aparentemente tão limpo. Um corredor enorme levava a um quarto que, quando fechado, quase ninguém sabia onde se encontrava a chave. Dele, um ar quente ora frio saía pela fresta inferior da porta causando estranheza aos novos freqüentadores que por ali passavam. E estes eram muitos, e sentiam aquele cheiro de mofo e podre e que vinha junto com aquele ar frio.
Erpentes também achou tudo aquilo estranho. Mas a sala era bonita, exalava poder, e ele foi se conformando com o que seria contrário aos seus princípios de asseio. Havia muito vinho, cristais dos mais caros, conforto, luxúria, as mais raras gravações musicais, erotismo, e ele se sentiu seduzido e incapaz de impor algum limite.
Desde que ali chegou, a sua aparência passava por transformações, e ele nem percebia. Os olhos tornaram-se avermelhados, e o seu sorriso bonito parecia doente, cínico e entregue a um prazer tão intenso que ele nem desconfiava que no fundo o torturaria.
A única taça que sobrara estava em suas mãos, e ele bebeu todo o vinho de uma só vez. Foi quando um grito forte e sensual veio de lá do fundo do corredor, do quarto que permanecia fechado. Neste momento, todos correram para aquele lugar como se fosse um grito de alerta, de liberdade, anunciando a hora mais esperada. E Erpentes seguiu-os já totalmente desinibido, e com a última taça presa em suas mãos. Sentindo um forte calor, começou a se despir como todos os outros, e um grande movimento começou. Olhares insaciáveis, perdidos entre os tantos olhares em êxtase, alheios a qualquer fidelidade. As luzes foram apagadas, e Erpentes então sentiu que estava descobrindo mais fantasias e outros novos prazeres. Tocava todos os corpos possíveis e, na sua volúpia, a taça foi esmagada entre o seu corpo e outros corpos. Pontas de cristais rasgavam o seu corpo. Foi quando gritou, mas parecia tão tarde para se libertar daquela multidão que já o sufocava.
Os olhos de Erpentes ardiam como brasas, e ele desesperava-se em dor. Deles, um fogo estranho que, em meio à escuridão, o levou a sair espremido entre a multidão e alcançar a porta. Estava trancada. E ele batia tentando abrir enquanto a multidão o impedia. Por debaixo da porta e pelo buraco da fechadura, exalava o mesmo cheiro de deteriorado do outro quarto. Sentia-se cada vez mais sufocado, até que a porta se abriu. Saiu a correr quando repentinamente a porta do outro quarto também se abriu. E foi ai que ele gritou desesperado, como nunca havia gritado em toda a sua vida. Em meio aquele cheiro insuportável, viu com os seus próprios olhos surgir do meio de um amontoado de ossos um ser que ele não sabia definir. E se encararam, e a sua respiração pressionava Erpentes contra a parede. Era um ser de mais de dois metros de altura. Tinha sete cabeças e dez chifres e, sobre os seus chifres, dez nomes que ele não conseguia pronunciar. Seis cabeças pendiam para um lado, e outras seis para o outro lado. A cabeça do meio era semelhante à do homem que a todos recepcionavam naquela casa, porém tomada de escamas e com dentes tão grandes como ele jamais havia visto. As três cabeças do lado direito eram semelhantes a animais; duas das cabeças do lado esquerdo eram semelhantes a monstros, e a terceira lembrava-lhe um rosto tão perfeito de uma noite dos seus sonhos. O corpo era como o de um leopardo, do leão ele tinha a boca, os pés tirados de um urso, e as unhas fortes como lâminas; os olhos, estes eram dissimulados. Quando aquele ser virou-se de lado, ficou ainda mais surpreso. Um enorme rabo de dragão. E as costas eram humanas e com marcas de grades, em chagas. Tentou novamente correr, mas o corredor estava fechado por tantos ossos secos. Gritava aflitamente pedindo socorro à multidão que estava no quarto, mas todos tornaram-se indiferentes. Pareciam acostumados a tudo aquilo. Erpentes então se prostrou sobre o chão e muito chorou. E veio uma nuvem escura e cobriu o seu corpo.
Erpentes dormiu muitas horas, acordando ainda nu. Sobre o seu corpo totalmente dolorido, um pó desconhecido. Olhou para a porta do quarto e estava novamente fechada, contudo o mesmo cheiro forte continuava exalando por entre as frestas. Todos haviam ido embora, e um ruido assustador rodava pela casa. Fez muito esforço para se levantar, e conseguiu libertar-se de parte do pó. Foi quando percebeu tantas marcas por todo o corpo. Diante do espelho, ficou ainda mais espantado com as marcas em suas costas. Eram iguais às das costas do ser estranho.
Procurou suas roupas, mas não as encontrou. Valeu-se de um lençol limpo jogado pelo corredor. Cobriu-se e atravessou a casa rumo à rua. Era novamente noite, e a sala já havia sido arrumada. Desconfiado, atravessou a porta quase alheio aos olhares que chegavam para a festa seguinte.
Na rua, pouco conseguia andar. Cambaleava com os pés feridos, mas precisava prosseguir para algum lugar bem longe!

In: Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento, Edições UESB, 2002.

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