terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Um abraço pela metade

Abriu a porta bem devagar com aquela saudade dentro do seu peito, guardada desde quando há dez anos havia partido para voltar no mês seguinte. Abriu a porta bem devagarinho, com aquele desejo guardado no coração. O desejo de fazer-lhe uma surpresa com o seu abraço e com os seus olhos cheios de emoção, e correndo para os
seus braços, sem desgrudarem os olhos um do outro, e aquele calor em seu peito, sem precisar de palavras para dizer eu te amo e eu te amo também.
Abriu a porta com aquele suspense retido no coração, uma aflição por não saber se ainda era esperado, e um impacto grudado em suas bruscas recordações: o menino correndo pra lá e pra cá, hora da merenda das três horas da tarde, café-com-leite, pão com manteiga, fatias de bolo de laranja, qualquer coisa que anunciasse que dali a pouco seria a hora do banho, a tardizinha chegando, e os seus sonhos que rompiam até mesmo a escuridão da noite. Foi bem deste jeito. Pensamentos tumultuados por acontecimentos, e não sabia mais como se controlar frente ao encantamento.
Ficaram ali abraçados sem dizer uma palavra sequer. Apenas aquele suspiro tão fundo e carregado de espanto pelo que parecia nunca mais acontecer. As pernas se batiam umas nas outras, os corações se empurravam pra lá e pra cá, e os rostos quase um queimando o outro.
Ficaram abraçados naquele estado de comoção até que ele percebeu que o abraço que lhe acolhia foi, aos poucos, bem aos poucos mesmo, se soltando dele e o coração deixando de pulsar junto do seu. Ele com tanto desejo de se manter acolhido, ao menos por mais um pouco de tempo, mas ela olhou dentro dos seus olhos, com uma dor escondida por tantos anos, e, numa atitude inesperada, olhou ainda mais fundo, deslizou os seus dedos sobre o seu peito, recuou-se, lentamente, e num gesto brusco o empurrou para trás, desfazendo de uma só vez todo o abraço guardado por dez anos.
“Desgraçado!” Ela disse, com um olhar melancólico. “Por todos estes anos, você só pensou em você mesmo, e desconheço a sua saudade. Suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo até que sumiram de vez no meio de tudo que foi sendo encontrado lá fora. E eu aqui grudada no telefone, e grudada na sirene, e grudada no correio que nunca mais chegou.”
E ele, sabe-se lá se coitado, entalado com o abraço cortado pela metade, ficou ali parado com os braços entreabertos, enquanto ela se afastava, olhando em seus olhos, e repetindo as mesmas palavras e outras palavras que ele já nem conseguia definir o que diziam. Ela continuou se afastando, até que as suas costas bateram na mesa, ela se virou de costas e arrancou as flores artificiais que havia dentro daquele jarro de vidro transparente, e as jogou em seus próprios pés. Logo sem seguida, pegou o jarro e, com veemência, o lançou com força aos pés dele, que permaneceu sem dizer uma única palavra.
A mala bem ali ao seu lado. Uma bagagem desconhecida, quem sabe um presente que demonstrasse que em algum momento ela havia sido tão lembrada naquela terra, que, para ela, era terra desgraçada, terra que encantava e roubava sentimentos alheios. Ela olhava para aquela bagagem, pequena demais para quem esteve fora desde uma década atrás, e, enquanto isso, se ajoelhou, apertou a cabeça entre os seus braços, e deu um grito tão alto que ele achou que fosse grito de doido.
“É grito de doido!” Ele pensou, apavorado pelo risco de ter trazido de lá de fora a loucura para dentro daquela casa. A boca travada, a cabeça novamente cheia de recordações: o café-com-leite derramado sobre a mesa, a orelha vermelha igual a brasa, ele injustamente levado ao castigo, e aquele choro sem fim.
O grito que ele já imaginava ser grito de doido encheu toda a casa e pulou janela afora. Ele deu um passo à frente, e parou quando ela deu um passo para trás. Foi neste momento que ela olhou bem mais dentro dos olhos dele, levou as mãos até a gola do seu vestido e o rasgou de cima a baixo, expondo toda a sua nudez guardada por tantos anos.
Ela andou direção a ele, sempre em passos lentos, abaixou-se diante dos seus pés, pegou sobre o chão um dos cacos do jarro, retornou alguns passos, ele atônito, ela controlando todos os olhares, e, de uma só vez, apertou, dentro das suas mãos, aquele caco pontiagudo. Ele, trêmulo, levou as suas mãos sobre o seu rosto, tornando turva a sua visão, enquanto ela foi em direção a porta, ainda aberta, e saiu em passos longos pela rua afora.
Mais cinco anos se passaram. Mas, ele, sempre silencioso, nunca deixou de visitá-la naquele quarto cheio de medicamentos, nem de acariciá-la quando ela permitia, e nem de levá-la para passear por aquele jardim tão arborizado, embora o ache tão sombrio.

(In: O silêncio e a bagagem. 2007.

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