segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Entre as margens do rio

Um rio imenso e águas que parecem o infinito embora as suas margens logo ali de um lado e de outro, e nada mais é infinito se agora os pés sobre chão depois do azul das águas movimentando o reflexo dos céus, paisagens na travessia do rio ilustram pensamentos e expectativas que movimentam o corpo o peito a alma tudo sobre as águas num balançar não apenas silencioso

Não apenas.

O cais
(que na apreensão do desejo revela um caminho que parece imenso diante da travessia sobre as águas cristalinas)
é o mais belo lugar no exato instante em que tudo se faz ser alguma felicidade, e tão perto o corpo o peito e a alma ofegando a emoção quase suave

e depois a avenida iluminada pelas luzes tornando-a uma planície luminosa enquanto o corpo e o peito se misturavam em meio à emoção, e o desejo pulsando forte do lado de cá na margem do rio noturno

até que no corpo o prazer fez seu leito e então repousou-se

e até que o retorno e a travessia outra vez, quando era a noite que iluminava as águas ainda cristalinas e o corpo o peito e a alma bailavam a travessia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Qualquer coisa em que me tornei", de António Lobo Antunes: Uma leitura

Uma leitura e imagens densas captadas de uma possível apatia, involuntária a possível apatia num puro instante de alguma necessidade de solidão, e muito mais é o involuntário estado de exaustão derramado nas imagens da crónica "Qualquer coisa em que me tornei", Segundo Livro de Crónicas. É ela. A personagem central. Ela mesma a narradora. A mulher, a esposa, a mãe, a dona de casa e “uns chinelos tão sozinhos” e fortemente representativos quando os objetos parecem falar: voz calada, emudecida, e ao mesmo tempo a existência de uma voz que se revela por meio de palavras que se impõem e chegam a gritar.

Num ritmo com tons serenos e nostálgicos, a crônica é narrada enquanto a densidade de um instante marca aquilo em que uma vida se tornou. O cotidiano, a vida dentro da própria casa, todos ao redor e ao mesmo tempo a sensação de ausência consigo mesma, ninguém. Tudo num contraste com o que parece uma falta de vontade de que nada seja feito para que as coisas mudem.

O cansaço. Lugar determinante do enfado, “Há dias em que me sinto tão cansada.” Declaração ou desabafo que marca o início da crónica e abre um espaço de expectativa para o que virá em sua sequência. O cansaço que não é por causa do emprego, nem dos filhos, nem dos trabalhos de casa quando para lá ela retorna, nem “sequer” é o marido a causa. Mas é sim um cansaço que se torna perceptível diante do que pode parecer tão simples, mas que, ao seu redor, pode haver todo um significado, tantas vezes tão interiorizado, inconsciente até, e que desfaz tal simplicidade aparente das coisas: arrumar o carro na garagem, chamar o elevador, entrar em casa e o marido e os filhos desviarem o olhar da televisão e sorrirem para ela. Um sorriso que pode não apresentar sintonia algum com o seu estado de espírito. Cansaço, apesar das compras já feitas pela diarista, assim como o jantar já preparado, e nada mais do que ligar o microondas. Cansaço, e o impacto quando vê, na marquise, os chinelos da diarista que já havia cumprido o seu horário e partido, “uns chinelos tão sozinhos que quase me dão vontade de gritar. Porquê? Perguntas e perguntas” que vão ficando sem respostas, ou respostas largadas em subterrâneos. “Por amor de Deus que ninguém se interesse sobre como me ocorreu o trabalho,” por amor de Deus tantas coisas e o “sacudir em paz as migalhas da toalha na varanda dando-me a impressão de que sacudo a minha vida.”

A família parece desconectada enquanto ela clama calada por sossego, o marido ali, diante do computador, a jogar gamão, o filho mais novo que “deve” estar no sofá, o filho mais velho a se despedir usando pantufas que “são dois Ratos Mickeys numa estupidez feliz”, novamente o marido com o seu cheiro que lhe agrada mas ao mesmo tempo não, ele que quando dela se aproxima resulta num pretexto, e dele se afasta para “verificar se os olhos do mais novo continuam abertos no escuro” a censurá-los. Todos dentro da casa, todos, e todo um desejo talvez censurado por ela mesma, e transferidos para o filho mais novo, a censura de um desejo de que não fosse aquela a existência, as horas desejadas em uma casa que não fosse aquela, o cansaço capaz de recriar imagens, o enfado e uma entrega ao silêncio e a um estado de solidão, não corrosiva, mas uma solidão até que o cansaço de tudo e de todos passe, e o estado interior seja refeito, ou nunca mais se o cotidiano prossegue imutável.

Um ramo seco na jarra é muito mais que um objeto, é uma espécie de espelho que reflete a sua própria imagem: “qualquer coisa em que me tornei.” O espelho que também reflete como uma revelação sobre a aliança que brilha em seu dedo, mas que parece ofuscada pela falta de um sentido claro, sem força, sem o laço que deveria ou poderia ser, e os anos sendo consumido em cansaço: “Mesmo passados doze anos a aliança surpreende-me no espelho.”

"Qualquer coisa em que me tornei" é mais uma crónica carregada de memória, o hoje, o ontem, as conexões entre os tempos, a nostalgia, perguntas e outras perguntas enquanto as respostas se aliam ao evasivo, algumas coisas resgatadas, outras nunca mais, o eu fragmentado, outras vezes tão inteiro diante do olhar que define respostas, e ela: “Sem maquilhagem a cara esvaziou-se” e “a impressão que uma criança, usando o meu vestido, me observa com espanto.” Não é sempre a presença da mulher que circula pela casa, se quando a noite chega, por completo, ela precisa se refazer, a pintura, a maquiagem, não apenas estética, na criança na qual ela se torna: “De manhã transformo-a o mais depressa que consigo numa pessoa grande para que o meu marido não a veja, e agora estendo-me de costas para ele com medo que a encontre.”

Qualquer coisa. Qualquer coisa em que ela se tornou. As sensações indefinidas, os sentimentos que se fazem em pedaços em busca de um encontro, talvez, capaz de se ser refeito ou compreendido, absorvido. Na cama, novamente o cheiro que lhe agrada e desagrada, ali ao seu lado, próximo, e a distância. Possivelmente muito mais desagrada, e ela se levanta para beber água, depois se apoia nos azulejos da parede e outra vez olha os chinelos da diarista na maquise: “Continuam tão sozinhos como dantes mas já não me dão vontade alguma de gritar.” O grito ganha um novo sentido, talvez um desânimo, um cansaço, uma exaustão, tudo ainda maior, quando a sensação é a de que já nem mais vale a pena gritar se tudo é uma surdez ao redor; talvez o silêncio, desnecessário o grito se tudo já se refez em decisões, em calmarias para que o cansaço não mais exista, e sim o rompimento com tudo o que se faz cansaço, o dela. Os chinelos tão sozinhos, imagem tão cheia de significados, quase palavras expressas em letras imensas, imagem que ainda se expressava em destaque na casa quando tudo já era silêncio.

domingo, 28 de novembro de 2010

E quando


E quando as horas, e quando os instantes, e quando, e quando nada, e quando tantas coisas espalhadas pelos cantos depois do silêncio, e quando as imprecisões, e quando a rouquidão das palavras impactadas do outro lado, e quando as emoções do instante inesperado e forte, e nada mais do que a intensidade do convívio passageiro, marcado pelo diálogo quase sem palavras e depois muito mais que os diálogos de palavras, espalhadas pelas salas e quartos de janelas e portas fechadas lacrando o imenso frio lá fora, e quando, e quando, e quando na pele empalidecida da cabeça aos pés, avermelhada a pele, e quando, e quando todas as surpresas espalhadas por todos os lados, todos, e quando tudo se faz efêmero, e quando exclamações se o momento se torna irresistível, a entrega, e quando e quando o horizonte amplo demais, depois tão pequeno o horizonte e outra vez imenso depois de tantas coisas recolhidas, e o ar turvo, as janelas embaçadas e o tempo já não era tão frio lá fora, lá fora depois o rio imenso e as águas límpidas outra vez.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Lançamento de "Sôbolos rios que vão" de A. L. Antunes, em Tomar


Cidade onde ALA vivenciou mais uma das partes da sua memória, Tomar foi mesmo um espaço muito representativo para a realização de uma das etapas do lançamento de "Sôbolos rios que vão". Cidade revisitada e histórias rememoradas pelo escritor.

A apresentação da Professora Ana Paula Arnaut ampliou espaços, contribuindo para uma maior compreensão da obra do autor, considerada tão complexa por grande parte dos leitores, e mais íntima por outros. Questionamentos e reflexões estiveram presentes durante o lançamento. A inquietação sobre uma obra que pode parecer fragmentada, e são fragmentos sim, eles que se cruzam, desencontros de instantes, sensações de devaneios, e, entretanto, por fim, uma narrativa que se completa, fragmentos que se encontram, unem-se.

O lançamento de "Sôbolos rios que vão" em Tomar foi marcado, também, por um silêncio. Um silêncio atento às palavras da apresentadora, íntima da narrativa do autor, e que depois de ter penetrado no texto retornou de lá afirmando que "Sôbolos rios que vão" é, com efeito, um romance em que Lobo Antunes continua a reduzir a escrita ao osso. Metáfora que muito bem representa uma narrativa não apenas densa, mas intensa, profunda em seu estilo de palavras e imagens lapidadas, quando tempo e espaços são vasculhados, revisitados num fluxo que percorre o caminho da saudade e de um silêncio, enquanto a memória deixa de ser simplesmente fragmentos e se faz história revelada na arte de contar.

Em 13 de Novembro de 2010.

terça-feira, 16 de novembro de 2010


Quebraram o jarro
E aproveitaram para levar
Junto com os cacos
Todas as lembranças que causava
No tempo em que enfeitava a sala.

A mesa ficou vazia
Mas o jardim cheio de flores.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Zagvel, Tustvel, Androvel

Sempre que tentava dormir sentia um amontoado de monstros em sua cabeça. Monstros atropelando monstros, e monstros docemente se envolvendo com outros monstros. Sempre que tentava dormir, monstros, e o pavor imenso querendo entender como tantos monstros poderiam caber, ao mesmo tempo, dentro da sua cabeça.
Zagvel, Tustvel, Androvel, “Véu, por que tantos nomes com véu?” Perguntava a si mesmo em seu silêncio tumultuado, aterrorizante. E então, ouvia outros nomes mais comuns, e, estes monstros de nomes mais comuns, como se conseguissem ouvir as abafadas e reprimidas palavras dos seus pensamentos, reviravam-se em sua cabeça, ocupando todos os lugares da sua mente.
A pele, crosta, pêlo, couro dos monstros, cor de ferrugem enferrujada e cor de pele de cordeiro, bronze, prata, cores estranhamente combinadas. Um cheiro acre, forte, asfixiava o seu sono profundo. Naquela madrugada, gritaram tanto do lado de dentro dos seus ouvidos, que o ensurdeceu com todos os sons penetrando abafado, bem abafado e quase silencioso pra o lado de dentro.
Todos os barulhos naturais das ruas de repente perderam os seus sons. E foram silenciadas as buzinas dos carros, e silenciados foram os gritos, os histéricos e os outros, e nem os mais estridentes conseguiam transmitir mais alguma ruído; praticamente caladas, as palavras da boca, por mais gesticuladas, articuladas, sempre caladas, agora. A tv sem notícia, o rádio sem música, todas as vozes em completo silêncio, tudo de repente. E ele ali, parado, horas parado junto da janela do quarto, olhando o mar, desde as suas margens até o infinito; as ondas, as ondas do mar sem aquele som que ele tanto gostava de ouvir dali da janela, antes do silêncio angustiante.
Enquanto olhava o mar e as ondas sem som, escureceu. Deixou a janela aberta, fechou um pouco as cortinas, as luzes apagadas, apenas a claridade proporcionada pelos limites da noite. E, ao virar-se para a cama, desejoso de dormir um pouco das horas que nunca mais havia dormido, Zagvel, Tustvel, Androvel, e outros, sem nomes pronunciados, recomeçaram o barulho de sempre. Os mesmos barulhos e outros barulhos; palavras tumultuadas, movimentos, burburinhos, e o pavor novamente se definindo, se entregando, enquanto ele, Zagvel, o mais terrível deles, e os demais, sorriam com gargalhadas inexprimíveis, lá dentro da sua cabeça, que estava sempre prestes a se explodir no silencio da noite.
Neste exato momento, a lua começou a mudar de direção, e a noite escureceu de vez. Um vento movimentando a janela, o desesperador silêncio de todos os ruídos lá fora, e os desesperadores ruídos, barulhos, zunidos, lá dentro. Os seus gritos percorrendo toda a casa, a porta trancada, sim, ele havia trancado a porta, e todos lá fora batendo exageradamente na porta, ele desesperado, e a angústia daquele silêncio de ninguém a socorrê-lo. Zagvel, Tustvel e os outros o atordoavam tanto, que ele nem mais sabia que podia abrir a porta.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

(Sem título)

O amanhã
Chegou hoje às 10:00 da manhã
Um tanto tarde
Para a ansiedade do ontem.
Olhos inchados
Coração tenso
Peito sufocado.

O amanhã chegou
Sem fome, sem sede
Garganta trancada
E um receio de pensar.
Levou as horas
Ficaram apenas os minutos
Minutos
Minutos
Minuto.

Quero voltar ao ontem.

(*Poesia 29 do livro Versus (in)versos, publicado em 1990.)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Inventando interlocutores na estação

mas ela já havia dito que nada daquilo seria o melhor, e que nada seria, e tudo permaneceria na mesma falta de sentido, e pior, como pior ficou. Ela havia dito desde quando ouviu aquelas palavras de uma convicção desperdiçada. E, mesmo quando tudo era ainda uma vaga suposição, ela insinuou que já sabia que nada daquilo daria certo, “não vai dar certo!”, insinuou como se estivesse fazendo referência a outras coisas, outras pessoas, uma verdade alheia. Ela já havia dito, mas de nada adiantou, pois, às vezes, é como se as palavras não se pareçam com nada, não se assemelham a nada, enquanto a outros chegam a provocar um ardor na garganta, um queimor no corpo, uma sensação de guerra sem motivo para batalha.

- A senhora vai descer em que estação?

A pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse, que não interrompa o seu desejo, que não comprometa a sua satisfação. Entende o que eu estou dizendo? É assim: tudo o que pode interromper um sentimento de prazer dói. Disso sabemos. Mas a dor e a angústia do que algumas dessas coisas na verdade são, sabemos! Nem mesmo sabemos se vale a pena, e foi o que aconteceu com ela.

“Próxima estação: Campo Pequeno”

Hoje está ai, e agora quem está sem querer ouvir sou eu, pois não sei o que dizer. Também não vou ficar remoendo na cabeça dos outros aquela chatice de “bem que eu avisei”, pois de nada mais adianta falar do dito e do não dito depois de tudo, depois de seja lá quem for já estiver com o coração e a cabeça sem mais lugar para lamento, e encolhido feito… feito nem sei o que dizer. Você já se sentiu assim em uma situação sem saber mais o que dizer?

- Uma mistura de irritação e de compaixão?

Uma mistura de irritação e de compaixão.

- Com licença, é a minha estação.

Eu estava conversando com uma pessoa que acabou de ficar ai no Campo Pequeno, e eu dizia que a pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse e nem interrompa […].

“Próxima estação: Entrecampos”

(Era a minha estação. Fiquei pensando a respeito daquela conversa alheia, mas tão nítida. Impossível não ouvir uma conversa alheia se as vozes se anunciam num estado de prazer, ainda que carentes algumas vozes, alheias, e eu ali pensando num texto, um filme, aquela senhora vencendo o seu dia ao lado de estranhos que nem eram estranhos: interlocutores espalhados pelas ruas e avenidas, até que a noite, outros.)

domingo, 3 de outubro de 2010

Os dois jardins

Jardins cheios de flores

Dois jardins:
cheios de flores

De todas as cores as flores dos jardins cheios de flores
amarelas alaranjadas vermelhas brancas azuis
e outras flores de todas as cores.

Dois jardins cheios de cores

Um
cheio de flores de aroma com cheiro de alento quase sem igual o perfume.
O outro
cheio de flores e cheio de cores em todas as flores um cheiro de nada a vida parada um cheiro sem graça.

sábado, 25 de setembro de 2010

Rabiscos

Velhos papéis sobre a mesa, gavetas, caderno na estante.
Anotações.
Rabiscos pelos cantos de papéis
A vida escrita em guardanapos de restaurantes.

Folhas novas suplicando palavras
Suplicando
Suplicando palavras.

Felicidades caindo sobre as páginas
Nódoas do peito se debruçando sobre o papel
A página branca
Outra página pra lá e pra cá
A nostalgia das emoções.

Um sonho anotado, riscado, anotado, riscado, anotado...
E
Pelas bordas dos papéis
Instantes guardados, rasgados, guardados,
rasgados, guardados...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"Em caso de acidente", de ALA: Uma leitura

"Em caso de acidente", publicado no Segundo Livro de Crónicas, percorre a estrada de um possível desejo de partir, ir embora, tudo tão bem articulado, planejado desde a afirmação, destacada entre parênteses, e que pontua que “as chaves estão sempre no prato da entrada”. As chaves ali, atraentes, convidativas até que deixam de ser simplesmente chaves e passam a representar uma viagem, não desejada ao acaso, e construída ao redor de recordações e possibilidades outras que deslocam o narrador do seu presente instante. Um desaparecer sem livre de marcas de quilômetros ou de cidades, o próprio nome esquecido, e esquecidos, também, os nomes da família e do livro, não um livro qualquer sobre as estantes ou abertos sobre a mesa: “do livro que não acabo de escrever e que me angustia.”

O homem, a criança e o escritor, de repente, juntos. Todos, o mesmo. Sozinho, o escritor com o desejo de ir embora, pressionado pelo livro “inacabado” e a angústia do que falta, do que resta, o fim. E é ai que a criança entra, talvez como fuga, e entra o pai, a proteção, o abrigo, e a viagem é outra, o volante é outro: e ele segurava o guiador da bicicleta enquanto o seu pai corria ao seu lado, “me ensinava a pedalar”. E o pai, agora, o possível desejo da sua presença para proteger, também, o escritor, o descanso da escrita.

Depois, o retorno ao mesmo ao mesmo lugar de onde não houve a partida, de fato. O retorno às páginas que faltam e nelas todas as palavras e a continuidade do romance, ponto essencial na crónica Em caso de acidente e que nos leva a pensar a sua escrita entre a produção de um romance e a angústia que leva o escritor a experienciar uma vontade de ir embora: “Fazer romances. Publicá-lo. Receber telefonemas do agente acerca do contrato, de traduções, de prémios. Receber as críticas da editora, longos cortejos de elogios sem nexo de quem não entendeu e louva sem haver compreendido. Ou então sou eu que não compreendo.” E é assim que a voz repete diversas vezes a sua vontade de ir embora, e, ainda que não seja a vontade, é o estado de ser capaz de ir, refazer, abandonar a presente identidade e seguir.

"Em caso de acidente" é mais um lugar de representação da escrita, evidências e realidades que registram o quanto o árduo está paralelo ao prazer na construção das grandes obras. Aqui, lembramos o próprio Lobo Antunes: "Creio que os escritores em geral não trabalham muito os seus livros, não os corrigem. E é uma pena porque, por vezes, trata-se de uma única palavra, mas uma palavra que pode ser fundamental." (BLANCO, María Luisa. Conversas com António Lobo Antunes). É assim que o prazer devora o árduo em ALA, e o que nos chegam são textos lapidados, leituras exigentes.

domingo, 15 de agosto de 2010

Quase

Depois de um tempo em busca de um título para o romance, acredito que encontrei um que muito me agrada, por definir bem o enredo, a partir de palavras que considero essência do texto, como rio, quintal, jardim, gavetas, água, muita água em suas metáforas.
O que é e o que não é “real” num mundo construído pelo pensamento, pelo desejo, pela existência das coisas que “não são”? As verdades de cada coisa, a força da imaginação, a visibilidade das coisas, tudo construído pela palavra e pelo olhar. O olhar de cada um, e o alcance das imagens de cada um. É lá que está o horizonte.
Real, denso, bastante denso, mas há ali algo de esperança: gavetas e mais gavetas de onde cada personagem guarda ou retira os seus rios, as suas águas, os seus quintais, os seus jardins, os seus pedaços, e as suas vivências silenciosamente compartilhadas. Por mais escassos que sejam os diálogos, há ali a voz de algumas palavras, mesmo que calada. É quando surgem os murmúrios, a voz que deixa de ser quase calada, o grito, o olhar, e novamente um silêncio nem sempre denso, nem sempre distante, nem sempre ausente, mas ali, afetos compartilhados, sutilmente depois o círculo, ininterrupto.
Já revi os dois primeiros capítulos, e agora já avanço no terceiro. Ao ler o primeiro, que estava com 23 páginas, senti vontade de abandoná-lo. Começaria tudo a partir do segundo capítulo. A sensação de que eu já estava cansado demais para rever, reler, enxugar, refazer… Mas não, eu sabia que ali estava o começo, a matéria, eu tinha a matéria, faltava a paciente restauração das ideias iniciais que chegam às vezes com muita volúpia. Pronto. Agora são 20 páginas, e sei que além dos cortes feitos nos demais capítulos, outros ainda acontecerão, outras palavras serão substituídas e frases que serão reestruturadas. Mas é exatamente assim, uma busca que parece incessante.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Enfim, a conclusão do romance. Ainda sem título

Dia 4 de Agosto de 2010. Acredito que já posso dizer que conclui a escrita do romance. A história. O enredo. O texto. Duzentas páginas e mais algumas. Entretanto, há ainda um caminho a percorrer, o qual não considero tão fácil. É o lapidar de tudo, uma primeira leitura do texto completo, o reconhecimento de tudo que ficou impresso, marcado, as inquietações e os prazeres revisitados. Eu até já iniciei, hoje, mesmo quando já havia reconhecido que a mente estava cansada, o peito ofegante e ao mesmo tempo em contentamentos. Abri o arquivo com o primeiro capítulo, sete meses atrás, e nele já fiz alguns cortes, mudei de lugar algumas palavras, mas não mexi em sua ideia.
Meses acumulados, e, lembrando C. Drummond, “de tudo fica um pouco”. A escrita em Lisboa, em casa, na sala, Biblioteca Nacional, Esmoriz. E depois, o final. Foram horas em busca de encontros com as melhores sequências, os melhores diálogos, e que não são tanto, sono comprometido, os pensamentos e vozes dos personagens me levando, de vez em um quando, a novamente acender a luz, abrir o computador e transcrever as suas palavras e pensamentos antes que no amanhã tudo podia ser esquecido. É o que acontece tanto, e, nesses momentos, pode ser fundamental ouvir as vozes que insistem em serem transcritas naquele momento. Não apenas a voz dos personagens, mas a do narrador que não pára de pensar, e dita, e repete, e permanece, mesmo inconsciente, a elaborar, perceber, captar a hora certa, o lugar certo, as coisas certas, ainda que nada ainda tão definitivo.
Três dias para a conclusão do último capítulo, e eu sem conseguir interrompe-lo durante qualquer tempo do cenário final. Que jardim era aquele? Que jardim? É uma entre as interrogações que ficaram. Ou, simplesmente, lugar de todas as coisas, enfim. Alguma espécie de jardim que possa ser chamado de “paraíso”.

sábado, 31 de julho de 2010

Sobre o Capítulo 9 do romance de título provisório ("Antes que...") - X

Na quarta-feira, dia 28, conclui o Capítulo 9 do romance. Alguns momentos de interrupções, por conta de um melhor encontro com o desfecho da história, e as últimas oito páginas escritas no mesmo dia, num ritmo bem mais acelerado, considerando eu que era aquele o caminho, eram aquelas as palavras, eram aqueles os sentimentos, devaneios e certezas. Uma linha bem ténue entre o que é devaneio e o que é a certeza das coisas. Onde começa uma situação e onde termina a outra, e elas se cruzam, e se fazem, e são. É a existência das metáforas, que podem ser apenas metáforas ou de repente um salto para outra existência que percorre o real, o Ser.

Escrever é essa inquietação entre outras, assim como o prazer entre outros. Sentir que o texto toma a sua forma no decorrer da sua construção é uma sensação também estranha. O reconhecimento do estranho que pouco a pouco deixa de sê-lo, e os personagens passam a ocupar o seu lugar entre espelhos que refletem não apenas as suposições, o imaginário, a ficção, mas agora o lugar mais preciso, o acontecimento que realmente foi transcrito tal qual o é. Tudo parece se confundir, até que vem algum momento do esquecimento das velhas e prazerosas lendas, os velhos e nunca velhos contos das histórias infantis do “Era uma vez…” Não “era uma vez”, apenas, é, antes de tudo a transcrição da mais convicta história de cada personagem que estão presentes no cotidiano. Todas as narrativas podem estar por ai…

Encontrar os “ganchos” para os parágrafos ou capítulos seguintes pode ser uma tarefa muito árdua, eis a angústia e o contentamento numa espécie de jogo que não permite que as pedras não sejam encaixadas de maneira adequada, lógica. E depois a possível pergunta: e o que é a lógica na narrativa? Há respostas. Não apenas o escritor, mas o leitor também constrói as suas próprias lógicas e o texto que, de certa maneira, tem as suas aberturas para aquilo que por ele é captado, destacado. É o contexto em cada olhar.

Depois, guardei tudo. Dois dias sem escrever, mas pensando quase incessantemente no que poderia ser o melhor percurso para o capítulo seguinte. O último. Penso ser o último, e ao mesmo tempo as imagens vão sendo multiplicadas e vem a sensação de que é muito pouco apenas mais um capítulo para fechar o livro, o enredo, a história. Portanto, não posso afirmar com tanta segurança, para mim mesmo, se será mesmo apenas mais um ou se mais dois, mais três… Melhor deixar as coisas seguirem, deixar a escrita definir, dizer com as suas palavras num diálogo íntimo, aberto, barreiras rompidas. Entretanto, foram dois dias em ideias, e eu acredito que mais um apenas, mais um. Muitas vezes o delongar do texto pode chegar ao excesso, ao desnecessário, a uma espécie de que, na verdade, é uma outra história que começa, e não mais aquela, a proposta.

Ontem, na rua, ouvindo e repetindo as mesmas músicas, numa necessidades daquelas canções, fui tomado, positivamente, pela passagem que irá determinar um ponto-chave do capítulo 10. Veio junto com um alívio, e o desejo de estar com um papel, uma caneta, e ali mesmo escrever, escrever… pois as palavras e ideias que consideramos importantes ao texto podem nos abandonar, partirem, nunca mais o seu retorno, ou apenas os seus fragmentos.

domingo, 18 de julho de 2010

Um percurso em "Sábado à noite é a noite mais triste da semana", de ALA

Não é ele, é ela quem narra “Sábado à noite é a noite mais triste da semana”, do Segundo Livro de Crónicas. A voz feminina (re)construindo todo um dia de sábado. Dentro dele, um universo que deixou de ser, e o que permanece, quando resgatado pelas lembranças e elaborado por expectativas daquilo que pode vir a ser possível. É, ainda, a narrativa de uma realidade presente apenas no desejo, que seja, que fosse, que houvesse sido um dia. É assim que, em determinado momento, a falta e o estado de estar sozinha têm as suas marcas fortes não num vazio de uma ausência, mas em seu prazer, em sua liberdade, o poder em todos os espaços dentro de casa, sobre a cama, o lençol não compartilhado.

É exatamente por ser sábado que a crónica acontece. A narradora que, contrariando o título da crônica, já inicia o seu discurso com um “ Graças a Deus tenho imensos amigos que desde a separação se preocupam comigo…”, e tudo se sucede em telefonemas, convites para ir ao cinema, um jantar, concertos, e a sala cheia de sorrisos numa vida em movimentos. É depois.

Depois dos cinzeiros esvaziados, os copos levados para a cozinha, os tapetes endireitados... É depois. A luz apagada, ela “na poltrona a olhar os prédios fronteiros, de joelhos contra a boca enquanto a manhã…” Nódoas na alcatifa contrastando com “qualquer coisa” no espelho e que a narradora chama de sorriso. Qualquer coisa.

Ela, que nunca precisou de “pastilhas contra a tristeza”, tem a música e “fotografias outras para substituir a ausência, agora presente no álbum. É a ausência, novamente até que amanhã seja domingo. É o silêncio, é o prazer descoberto nas duas mesas de cabeceiras agora apenas para ela, e é, “felizmente, a companhia da porta e dois amigos” seus “e risos”, enquanto ela fuma uma “melancolia que passa depressa". E depois. Lembrar-se que amanhã é domingo, “chegar à varanda e o silêncio da rua”, os copos levados para a cozinha, e ela: “meto os joelhos à boca e fico aqui à espera que o amigo, que o telefone, que a porta […] e me sumir na esquina.” Entretanto, não parece ser esta a conclusão, não definitiva, se a narrativa é escrita numa melodia em seu processo ritmado.

É assim que “Sábado à noite é a noite mais triste da semana” pode levar o leitor a se envolver numa espécie de construção circular. O último parágrafo se agarra ao primeiro, e a crónica prossegue, até quando a narradora permanecer sentada naquela poltrona, os joelhos contra a boca, o olhar sobre os prédios fronteiros, enquanto a manhã…

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sobre o Capítulo 8 do romance de título provisório ("Antes que...") - IX

Acabei de escrever o Capítulo 8, talvez o mais rápido de todos, mantendo a mesma média de páginas. Estava em Esmoriz, onde escrevi a sua metade entre uma pausa e outra, atento ao desfecho, diálogo excluído e outro substituindo, a sensação de reta final e a de um cuidado maior, uma atenção maior, o receio de que lacunas tenham ficado pelo meio do caminho, enfim, são, na verdade, as mesmas sensações sentidas desde o começo.
Senti muito prazer na escrita deste capítulo, cada capítulo com um prazer que pode ser diferente do outro, cada um com as angustias que podem ser diferentes do outro, cada um com a sua leveza, e cada um com as suas tensões. Tudo se repete em cada capítulo, embora as sensações possam ser diferentes, e parecem muito mais diferentes do que são.
É tudo muito intuitivo. O enredo vai surgindo, percorrendo em cada página como se deslizando por todas elas sem muito tempo para pensar. Palavra por palavra pulando para o papel, o papel que é também tela, a tela que é também papel, de uma forma ou de outra, é assim. As palavras jorrando, as frases jorrando, as imagens jorrando, a escrita, a criação. São sensações assim, repetidas, e repetidas neste novo capítulo, tudo como se houvesse uma nova sensação, diferente das demais. E há. E não há. Tudo é uma repetição de sentimentos, e tudo se faz novo se a repetição nunca é idêntica.
Um calor imenso em Lisboa, portas e janelas abertas, não todas, o suficiente, e um ritmo na escrita que muito me agradou, principalmente na segunda-feira, e ontem, terça-feira. Pensei conclui-lo lá pela sexta-feira, mas já aconteceu. Farei agora uma primeira revisão, uma revisitação, algumas mudanças possíveis, exclusões se necessário, e, da mesma maneira, acréscimos. Tudo, o mesmo processo.
Ao concluir cada capítulo, ou cada conto, ou cada texto, fica esta curiosidade e receio de conhecer o texto numa primeira leitura. A expectativa, a tensão de não ter feito uma produção realmente prazerosa em sua leitura, em seus efeitos diversos, as exigências que nós mesmo criamos, e que precisamos ter. Enfim, hora da revisão, amanhã, ou depois de amanhã. As horas dirão, quando o instante de ser determinar, o cuidado com os adiamentos, o mesmo com as precipitações.
E no mais, o capítulo 9 deverá ser o penúltimo do romance. Ou o último. Mais uma expectativa, e comigo a curiosidade de saber, exatamente, o final. Não sei ainda, não sei, não por completo, se nada foi esquematizado de maneira irreversível. Preferi assim, deixar o texto fluir, os personagens surgirem em seus instantes. Preferi assim, sem nada previamente definido, definitivo, embora sempre obedecendo uma ideia central, um ponto de apoio que não deveria nem ir muito pra cá e nem muito pra lá, mas percorrer a narrativa dentro de uma determinada margem, ampla, flexível, bem flexível, mas uma margem. E uma margem é uma margem.
Lisboa, 2:10 da manhã.

sábado, 26 de junho de 2010

Sobre o Capítulo Sete do romance de título ainda provisório - ("Antes que...") VIII

Ontem, sexta-feira - agora madrugada de sábado - conclui a escrita do Capítulo 7 do romance, depois de uma tensa possibilidade de ter perdido tudo o que dele já havia construído. Ao contrário do capítulo anterior, este foi num tempo mais breve, numa inquietação menos acelerada e menos angustiante. A angústia maior veio, mas de uma outra maneira, quando o capítulo chegava ao fim, início da página dezenove e, de repente, um impasse. Ou isto ou aquilo, ou por aqui ou por ali, reflexões a respeito dos acontecimentos, das palavras e dos diálogos em determinados instantes.
Foi ai que decidi parar um pouco e fazer a minha caminhada. Durante o percurso, de aproximadamente uma hora, os pensamentos se sossegavam o quanto possível e eu mais seguro de que deveria deixar as coisas fluírem em seus limites possíveis e pulassem para a tela. Entretanto, ao retornar, o que encontrei foi um nada diante dela, um vazio, a tela escura, a bateria arriada, e nada das cenas do presente capítulo em meio a tanto espaço disponível em 6 gigas. Uma inquieta tentativa de ligar o computador, e na tela apenas um tal de aviso de recuperação de documentos, tentativas em vão, uma sensação de nada, e a certeza de que não recuperaria as mesmas imagens se tivesse que reconstruí-las. Já era madrugada, e fui dormir com a certeza de que sim e talvez igualmente a de que não.
Às 5:30 da manhã acordei e foi o primeiro pensamento: perdi todo o capítulo! Reescrever? Nunca mais o mesmo, ainda que seja melhor a nova escrita, nunca mais a mesma coisa, nunca mais as mesmas palavras, e nem os significados de antes, nem os sentidos, nem o ritmo, nem, nem, nem.
A saída chegou por um tal modo de segurança, eu bem leigo em computador, e, pelo menos eu, acredito que a minha habilidade bem maior é escrever. Depois, já não era mais 5:30 da manhã, mas quase meio-dia. Foi quando o alívio de que ali escondido em algum lugar, apenas via Modo de Segurança, estava todo o texto, todas as páginas, esta coisa incrível da memória. Então repeti mais uma vez para mim mesmo: é preciso ter o backup.
Logo após, retornei aos pensamentos ocorridos durante a minha caminhada, alguns pensamentos que já nem eram aqueles por completo, eram aqueles e outras coisas diferentes, então, escrevi mais duas páginas e ponto final. Agora, uma primeira revisão do capítulo, uma aproximação para um maior reconhecimento depois de talvez pronto, e talvez ainda não. Hora para um outro contato com a criação, se primeiro a escrita, depois a leitura, envolvimentos semelhantes e tão diferentes.
Depois o comboio, direção Esmoriz, uma leitura durante o percurso e mais uma vez P. Lejeune: “ Não consigo mais escrever sem corrigir. […]. Tanto trabalho para chegar a quê? A um texto límpido, certamente, mais simplório. As correções não acrescentam nada, apenas enxugam, decantam, um primeiro jorro profuso.”

terça-feira, 22 de junho de 2010

"Há surpresas assim", de A. L. Antunes: uma reflexão sobre a escrita.

A escrita é também um lugar de possíveis surpresas. Elas podem surgir de espaços interiores ou exteriores, quando alguma imagem súbita se manifesta e interrompe uma sequência previamente elaborada. São imagens, em suas diversas origens, e todas elas com as suas possibilidades de entrarem, naquele instante, no texto em produção.

Há surpresa assim é uma crónica de A. L. Antunes e que, entre as suas leituras, proporciona uma reflexão a respeito desta arte solitária. A escrita. O ato de produzir é um ato impregnado de angústia. Igualmente, e muito mais, ou menos para alguns, é um ato impregnado de prazer. Ao ler Há surpresa assim, penso numa incógnita cheia de possíveis grandes surpresas e releio uma definição de ALA, que parece interromper uma sequência, e ao mesmo tempo não há qualquer interrupção, ao abrir mais um dos seus criteriosos parênteses: “escrever é uma actividade que raramente associo ao prazer”. Aqui, o que o escritor denomina de “raramente” é um significado íntimo, experiência pessoal de um escritor de produção extensa e que conquista ininterruptamente leitoras e investigadores que se interessam, com prazer, pela sua obra. É o resultado da sua entrega e das suas exigências que sabemos imensas, é o que chega até nós, leitores, em páginas de enredos transcritos em palavra selecionadas sem o acaso - se o acaso não estiver envolvido com algum grau de perfeição. Frase por frase lapidada com uma exigência, digamos, matemática, no sentido de melhor perfeição das suas metáforas e todos os efeitos de puro envolvimento literário: gavetas e mais gavetas, e tantas são as memórias que se adequam aos seus textos e os seus textos a ela.

“Às vezes há surpresa assim. Anda um homem às voltas com um livro, carregado de angústia e de dúvidas”. É o cenário que inicia a crónica, seguido pelos parênteses acima e à rara sensação de associar o ato de escrever ao sentimento de prazer. As mesmas angústias se repetem num novo texto: as suas crónicas, os seus romances, a repetição dos sentimentos, as sensações que podem ser incompreendidas se o livro, quando pronto nas mãos do leitor, são deliciados apenas em resultado final, impresso em belas capas e em páginas de manuseio agradável. E todo o processo de produção é o lugar desconhecido, talvez por mais que se tente transmitir tal sensação.

E outra vez livre dos parênteses, em Há surpresas assim observamos uma outra manifestação do sentimento de angústia expressa por ALA quanto ao texto, cada um deles, e a certeza de que elas o “acompanharão quando daqui a alguns meses o entregar ao agente e o agente aos editores, a suspeita de não ter sido capaz, de ter falhado, de dispersar em cinzas o material incandescente que tinha na mão”. Tudo depois das horas incessantes, 15 horas por dia, todos os dias, aflito, raivoso, com ganas de desistir, de jogar no lixo, tudo, tudo depois de dormir e acordar com as páginas escritas, a empenhar tempo e saúde, como expressos pelo autor em sua crônica aqui referenciada: o receio de tudo resultar em nada. Nada? Se um mestre assim se revela, fica uma reflexão, a qual pode ser muito inquieta para o aprendiz, aqui definindo aqueles que começam, que se empolgam, que ainda não perceberam que uma obra de arte está bem além de produzir um enredo e dele fazer páginas e páginas escritas, e muito menos sem a angústia da criação, e o prazer, ainda que raramente.

Depois de tudo, inclusive da exaustão, a surpresa, que me faz pensar outra vez naquilo que pode chegar do inesperado e entrar no texto: “de surpresa, o milagre de uma carta, uma pausa de amizade, de afecto e de paz no destino de sarça ardente que sou. Vem do Porto, com o retrato…”. Um retrato surge, e invade o texto, pois se faz um elemento agora essencial. E depois da ternura, da densidade e do sublime descritos, novamente os parênteses sustentando uma reflexão crítica: “porque não escrevo assim, com esta simplicidade enxuta, esta despretensiosa ternura, esta força?” Se pudermos responder, se eu puder responder, se tantas coisas: é de uma ternura e de uma força tremenda a obra de ALA, e a inquietação é mesmo uma essência que renova e intensifica a grandeza dos seus resultados. Há surpresa assim, e que nem surpresas são, mas um prazer que nos é garantido em cada um dos seus textos.

In: ANTUNES, António Lobo. Segundo livro de crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

terça-feira, 15 de junho de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" - VII

Finalizei o sexto capítulo do romance. Um tempo maior que os demais, a necessidade de interromper durante um dias, dois, e outros dias de apenas um parágrafo, dois, e não mais. A criação de um lado, e de outro a necessidade de interromper a escrita, por um momento, e que não seja prolongado o momento de interrupção. Assim foi a minha experiência enquanto elaborava o capítulo que agora é o último, por enquanto.
Foi na sexta-feira passada. Mais um estado de alívio, de sossego, de vazio e preenchimento de espaços, inquietações e prazer. Depois, no dia seguinte, comecei uma primeira revisão como faço com cada capítulo. Mais alguns cortes, o que parecia muito bom já não parece tanto. Corte e refacções. O que não parecia tão bom pode ser descoberto como um grande momento, diálogo fundamental. A escrita é uma surpresa, uma incógnita, um impulso, uma interrupção outras vezes.
Hoje conclui a primeira revisão. Fechei o capítulo, parcialmente, se uma nova leitura pode exigir novas mudanças. Tomara que não!
Penso que mais dois capítulos podem concluir o romance. Penso, mas não há algo determinado, se os personagens podem adiar o enredo, se as coisas, se os fatos, se os acontecimentos inesperados podem surgir.
Mais um tempo. Pensei em ficar alguns poucos dias apenas atualizando algumas leituras e um artigo a escrever. Entretanto, estava eu um pouco diante da tv, deslizando o controle de um lado para o outro, mas sem conseguir me desligar do romance. De repente, retornei ao computador, no alto da página escrevi Capítulo 7, e o enredo continuou a deslizar sobre a tela. Instantes que podem ser únicos para a escrita, portanto, imperdíveis, ainda que o sono, ainda que o cansaço, ainda que a indisposição, ainda que qualquer outro fator possa se revelar como uma espécie de impedimento.

domingo, 30 de maio de 2010

A rua em "Souvenir from Lisbon", de António Lobo Antunes

São muitas as ruas em António Lobo Antunes. Um interessante trabalho de pesquisa e de exercício enquanto somos levados a percorrer calçadas e a contemplar paisagens: as ruas, apenas as ruas, e um universo possível para reflexões, conhecimento, significados e referências de lugar, lugares, memórias. Em todas as ruas de/em António Lobo Antunes há um percorrer de sentidos que não é ao acaso, se nada é por acaso em suas narrativas. O narrador retorna às suas ruas e às de personagens outros, e, ao narrar as suas paisagens e passagens, desperta no outro o conhecer, o saber, o lugar, as ruas que não são imaginárias. E são. Todas as ruas imaginárias, se não é apenas a matéria. Ali, lugar de reflexões, a memória e os sentidos em suas cores, em suas decorações, suas calçadas em movimentos de um lado para outro, idas e vindas, idas, partidas, chegadas.

Segundo livro de crónicas. Entre as tantas fotografias presentes em suas páginas, no sentido concreto e muito mais no sentido metafórico, releio Souvenir from Lisbon com a atenção inerentemente exigida pelo seu criador. A rua é a dos Baldaques, certamente escolhida de maneira criteriosa para compor a crónica que tem início com um questionamento, uma inquietação e uma resposta aberta a outros questionamentos e a outras respostas de invenções possíveis:
“O que terei perdido na Rua dos Baldaques? Mal a conheço
(passo de vez em quando, de automóvel, por ali)
E no entanto, sei lá porquê, em nenhum outro lugar me vem esta certeza de ausência, esta dúvida […]”.

O distanciamento das ruas e nas ruas, e uma presença mais forte de ausência, lugar mais forte de dúvida, de desejo, uma inquietação da qual o narrador, em primeira pessoa, não entende o que seja, “talvez não coisas”, “talvez outra coisa para além das coisas”. A crónica prossegue num enriquecimento da Rua dos Baldaques: personagens que surgem como se fossem apenas figurantes, simples, comuns, mas percebemos que todos eles estão bem além do que poderíamos chamar de quadros distribuídos ao acaso pelas ruas, o cotidiano “invisível”. Mas não. Não é simplesmente a figura de “uma senhora que pendura roupa numa corda, de mãos acima da cabeça como se amparasse uma bilha invisível”, “não é isso”, e não é apenas a figura de um velhote que “conversa no passeio com o cachorro cego”. É tudo muito além naquele apenas suposto distanciamento da rua. Eles, de longe observados, integram a crónica de maneira sublime, aproximam reflexões até que o narrador desvia o olhar, “volta à direita”, e a Rua dos Baldaques desaparece num ímpeto das recordações.

Surge, numa mudança quase imperceptível do tempo, um novo plano na rua que havia acabado de desaparecer, enquanto tudo permanecia ali, entre a presença e a ausência. O narrador é enfático: a Rua dos Baldaque desapareceu. É quando as imagens substituem outras. Quando as imagens remetem a outras imagens e a anterior, na verdade, não desaparece, se foi a origem das recordações, as lembranças representadas pelo cheiro, pela cor, pelas coisas, pelos semblantes, tudo representando o que “era” naquela rua.

A rua desapareceu e tantas coisas se parecem com o “talvez”: “e talvez fosse a senhora do segundo andar da esquina, talvez fosse o velhote, voltar atrás” É quando o tempo retorna, e a Rua dos Baldaques parece ressurgir pelo pousar de uma borboleta que “esteve três dias no espelho do toucador da minha mãe”, diz o narrador, quando o tempo voa e pousa num passado tantas vezes longínquo. A mãe. De repente, a Rua dos Baldaques ganha contornos imensos, e se faz ainda maior: lugar de reminiscências que pulam para os frascos de perfume da mãe do narrador. Imagens trabalhadas com a sensibilidade de A. L. Antunes, em sua escrita onde a cidade de Lisboa pode caber dentro de uma rua, por maior que seja, por maior que represente, por maior.

Ao concluir a leitura da crónica Souvenir from Lisbon, decidi, impulsivamente, localizar a rua em referência e, para a minha surpresa, ela está logo ali. Fui andar pela rua, olhei os prédios, as suas cores, deixei as imagens fluírem. Uma rua talvez pequena, as escadarias curvando e subindo a ladeira e se fazendo diferente de tantas outras. Foi ali o lugar de mais uma escrita. É ali o lugar de mais uma escrita. É aquele mais um dos lugares eternizados por A. L. Antunes. A senhora do segundo andar já não estava mais a estender as roupas e nem o velhote a conversar no passeio com o cachorro cego. Mas havia a sensação do “ cheiro dos frascos de perfume com suspiros de violetas […]
- Mãe”

segunda-feira, 10 de maio de 2010

"Cartas da Guerra", António Lobo Antunes: A Memória entre a Guerra e o Sublime

António Lobo Antunes é uma presença marcante no campo memorialístico da Literatura Portuguesa e Internacional, com a sua impactante obra literária, a saber, os seus romances e as suas crônicas. Por meio de uma narrativa com cenários compostos por narradores vinculados a recordações contundentes, lembranças aguçadas, densas e sublimes, o leitor é seduzido a acompanhar os seus narradores com as suas lembranças impregnadas de fantasmas, fragmentos discursivos, imagens traumáticas. Enfim, (re)construções, na memória, de um tempo passado e entrelaçadas num tempo presente.
A partir das características narrativas proporcionadas por Antunes, a proposta do nosso artigo é, considerando o percurso dos seus narradores, pela memória, realizar uma breve leitura de abordagem memorialística da sua obra, tendo em consideração seus romances e crônicas, designadamente “D`este viver aqui neste papel descripto – Cartas da guerra”. Trata-se de uma compilação das cartas escritas para a sua esposa, compiladas por suas filhas, e que compreendem o período de Janeiro de 1971 a Janeiro de 1973, quando o escritor esteve na guerra colonial em Angola. Um cenário, portanto, que percorre entre o espaço de guerra e o espaço de amor, revelando sentimentos distintos: a hostilidade e o amor, a solidão e a vida.
Para a nossa análise, tomaremos como referências principais algumas considerações de Paul Ricoeur, resultado de suas investigações sobre a memória, e apresentadas em A memória, a história, o esquecimento.

Texto completo disponível aqui.


Resumo do Artigo apresentado no XXII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. UFBA - Salvador, Bahia.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

domingo, 2 de maio de 2010

António Lobo Antunes: um contentamento na 80ª Feira do Livro de Lisboa

Ontem fui à 80ª Feira do Livro de Lisboa. Livros. Muitos livros. Páginas e páginas recheadas de obras-primas e outras nem tanto ou uma longa, muito longa distância. Todos com os seus leitores apaixonados e, possivelmente, outros menos. Mas são leitores, o que é fundamental. O poder de atracão do livro, a sua sedução que atrai o leitor para dentro das suas páginas e para o seu enredo quando tudo, absolutamente tudo se transforma em real, mesmo que seja ficção, ou assim chamado.
Fui direto para o Espaço Leya, que está ainda mais bem estruturado que o ano passado. Uma organização impecável e tantos e tantos livros em suas estantes. Levei comigo a minha edição brasileira de Memória de Elefante, cheio de grifos e anotações em vermelho e em gravite: lido e relido. Em sua página em branco faltava um autógrafo do seu autor e grande mestre da narrativa António Lobo Antunes.
Uma fila já havia sido iniciada, e sobre a pequena mesa diante dele passava os seus mais diversos títulos para mais um dos seus inúmeros autógrafos. Nas prateleiras, os seus livros, todos atraentes, convidativos. Adquiri O Fado Alexandrino e fui para o meu lugar na fila, levando comigo a paciência melhor possível. Afinal, Lobo Antunes é aquele autor que sabe compartilhar algum diálogo com os seus leitores, por mais breve que seja. Eu ali observando o seu prazer em tocar em seus livros, as suas criações tão criteriosas, as mãos se deslizando sobre as capas num sentimento de intimidade e de afeto.
Chegou a minha vez. Eu, os meus dois outros volumes dos seus romances, e um prazer repetido do ano passado. Primeiro entreguei O Fado Alexandrino e comecei a falar um pouco, bem breve, o mais breve possível, se havia uma fila e muitos outros livros para serem autografados. Falei da minha Pesquisa e entreguei o meu volume do Memória de Elefante, enquanto declarava a minha paixão por este romance. O entusiasmo inevitável e, quando percebi, já estava mostrando, ao seu autor, uma das passagens que considero das mais marcantes, e são muitas e muitas, dos seus romances: “Herdei talvez de ti o gosto do silêncio […]. O gosto do silêncio e o fitarmo-nos como estranhos separados por distância impossível de abolir, que pensarás de facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no útero para um demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na direcção do repouso que não há.”. Ele olhou o texto, muito brevemente, e exclamou com uma ternura que percorre as suas páginas:
“Minha mãe!”
Não podia me prolongar mais. Era a minha hora que se excedia, se havia uma fila, livros, outros enredos, outros leitores apaixonados pelas suas narrativas. Mais um breve encontro com o autor, bem breve, mas de prazer e resultado demais valoroso. É quando o que parece ser pouco é imenso e muito produtivo.
No final, agradeci a Lobo Antunes por ter me ofertado um volume do A Explicação dos Pássaros. Contentamento atraindo contentamento. Sai de lá com os meus três volumes e a vontade de ler, ler, ler…

quarta-feira, 28 de abril de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" . VI

Finalizei o Capítulo 5 quase agora. 21 páginas. Amanhã começo a fazer uma primeira leitura e alterações necessárias. As primeiras, depois as outras quando tudo estiver pronto. São agora 105 páginas. Cada Capítulo é esta sensação inquieta de um prazer que permanece, de um vazio que fica como se algo tenha sido esvaziado demais. A repetição das sensações. O receio de que as frases poderiam ser melhores, as metáforas mais bem trabalhadas, o caminho outro que não aquele, e a pergunta para o próximo capítulo: - E agora?

Não tenho a totalidade do enredo. Não ainda por completo. Tudo acontece a partir de um instante que resulta em outro e em outros, decisões que surgem do inesperado, o pensamento de cada personagem que pode crescer tanto e profundo até se romper e chegar a algum devaneio, ou nada disso e sempre a lógica das coisas.

Neste capítulo apaguei algumas passagens. Melhor apagar se algo inquieta demais por não convencer de que esteja bem, qualquer que seja o texto. Algo inquieta e diz, se manifesta, e na narrativa parece tomar uma forma ainda maior. O receio de que as palavras, e muito mais as frases, sejam excessos, excessivas, abusivas.

Pausa. Penso.

Nos próximos dias iniciarei o Capítulo 6. Bem nos próximos dias, não muitos. Preciso adiantar o outro lado. Algumas leituras, um outro texto. Enquanto isso, os personagens dormem, e os pensamentos ali, bem ali ao lado de cada um. Exatamente como foi concluído o capítulo de hoje.

02:20 da manhã.

terça-feira, 20 de abril de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" - V

Eis que o romance avança, toma forma, cria raízes em seus lugares, suas imagens e palavras, os diálogos verbalizados e outros em pleno silêncio no interior do ser de cada personagem. Em alguns, mais: em outros, menos; e, nos demais, também alguma coisa, sempre. O estar ali nas páginas que acontecem no decorrer das horas. O personagem e o narrador com as suas inquietações, e as deles.

Ao iniciar este capítulo, interrompi a narrativa algumas vezes e fiquei ali pensando: e agora? A minha própria busca de descoberta de como continuar. Não exatamente a minha. Percebo que, às vezes, estou invadindo o pensamento do outro, não eu, não exatamente eu, mas ele, o narrador, invadindo demais o pensamento do outro, e a brusca necessidade de interromper um pouco, refletir um pouco mais, perceber pelo eu semblante, o do personagem, quais são mesmo os seus pensamentos e as suas palavras.

O romance segue tomando a sua própria forma, algum percurso pelo fluxo de consciência que, de certa maneira, permeia a narrativa. Pensamentos tumultuados, velozes.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Atos 5

Entrar
Fechar a porta
e a janela
Apagar a luz
Sentar na cama
no chão, no tempo

Quem sabe...
encontrar palavras
que expliquem as variações do ser.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" - IV

Esmoriz.
Hoje conclui o 4º capítulo do romance. Trouxe de Lisboa sete páginas escritas e aqui dei sequência, totalizando vinte e uma páginas. Porém, ainda não direi que estão prontas. Afinal, embora aconteçam revisões durante a produção, inevitavelmente elas não param por ai. Falo da minha experiência. Não param por ai. E revisão é coisa árdua, lapidar é a outra face delicada de uma arte, qualquer que seja.
O enredo e suas complexidades. A sensação que tenho é que à medida em que tomo conhecimento e afinidade com os personagens e suas histórias mais complexo fica o desenrolar do enredo. Não é sensação, E não estou pretendendo dizer nada de novo, falando, falando, apenas. Um cansaço. Um cansaço físico e mental. Um envolvimento que se aprofunda, e muito. E envolve, e cria laços, comprometimentos. E é mesmo grande o prazer. Um estado de euforia solitária. E por ser solitária a escrita é, por si só, densa. Mais uma etapa concluída. Bálsamo.
Mas fica um vazio junto com o alívio. E fica o entusiasmo para continuar a história. E outras coisa se vão, foram, já estão no texto. Ou nunca. Fica também este fragmento sem saber exatamente o que dizer no meio de um romance, os seus conflitos, a história que precisa prosseguir.

quinta-feira, 25 de março de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" III


Comecei a escrever o Capítulo 4 do romance. Estou na sexta página, e ontem parei ao me deparar com um impasse por causa de uma chave: não me sentia seguro se “aquela” deveria ser ou não a chave de uma certa porta, em um determinado momento. Cada capítulo, embora seja a continuidade dos anteriores num entrelaçar da trama, é também uma etapa independente, a sensação de que uma nova história, que não aquela, vai acontecer. Apenas uma sensação, pois a ´nova história` é determinada pela ´velha história`.
A mudança de espaço ou mesmo a sua permanência faz com que tudo seja novo. Um objeto que cai, um inseto que surge, um pensamento no lugar da realidade, tudo, enfim, transforma o ambiente que inicia um novo capítulo, o ambiente que pode ser a mesma sala de antes, num momento imediato ao anterior.
Como comentei na postagem anterior, depois que conclui o Capítulo 3 fiquei talvez uma semana sem escrever. Intervalo. Uma necessidade de ler um romance, um texto sem vínculo direto com o que venho lendo com um propósito mais específico. A sugestão: F. Dostoiévski, “Cadernos do subterrâneo”, traduzido também como “Memórias do subsolo”, na versão brasileira. Um perfeito exemplo de fluxo de consciência, além da excelência do texto. Eu estou falando de Dostoiévski. Uma leitura que suga o fôlego no melhor sentido da palavra e do prazer. O tempo voou. Nem vi o tempo voando.

“Meus senhores, claro que estou a brincar, e eu próprio sei que ando mal ao brincar assim, que nem tudo pode ser levado na brincadeira. Talvez esteja a brincar rangendo os dentes. Senhores, estou atormentado de questões, resolvam-nas por mim.” (p. 53).

E na sequência densa do texto…

“Passou-me pela cabeça um pensamento lúgubre, percorreu-me o corpo como um arrepio de repulsa, um pouco como que se sente quando se entra numa cave húmida e bafienta.” (p.134).

E o tempo voou. Retornei à minha escrita, e espero que o tempo também voe, e o romance caiba dentro deste tempo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

"Antes que os morangos apodreçam" II

Acabei de escrever o terceiro capítulo do romance de título provisório “Antes que os morangos apodreçam”. Pouco antes das 9 horas da manhã, depois de muita inquietação sobre o destino da narrativa, consegui colocar um ponto final, depois de 20 páginas que, juntas com as demais, somam agora 63 páginas. O texto avança e descobertas vão acontecendo: o planejado e o imprevisível, quando a própria escrita pode surpreender o autor por caminhos inesperados.
Considerar 20 páginas é ter que escrever muito mais, considerando-se o retocar de palavras, frases e substituição do que parece ou realmente é o mais adequado, mais lógico, aquilo que se revela como a clareza e a intenção do que se pretende. Ontem, já no final da tarde, uma página pareceu pronta em poucos minutos, depois de uma outra ter exigido uma manhã quase inteira, pode haver sim uma batalha entre as palavras.
As palavras são assim. As palavras e as frases. Brigam? Afinam-se e se satisfazem com uma harmonia pretendida? Possivelmente. E depois, em outro momento, podem ainda decidir que não, que falta algo, ou há algo em excesso. A falta e o excesso podem ser um conflito no texto... É dar seguimento às ações, interlocuções, o poder das palavras.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

"Antes que os morangos apodreçam"

Um dia, num ímpeto, acreditando que escreveria um romance naquela sequência de dias, escrevi nada mais que 12 páginas. Foi tudo, em quantos dias não me lembro mais. Não muitos, acredito, devido ao impulso daquele momento e a interrompida certeza de que sim, eu escreveria naquela época. Mais de cinco anos se passaram, e o arquivo do possível romance ficou rodando do velho ao novo computador, sendo renovado, adiado, na expectativa de que um dia ele aconteceria.
Pois bem. Era Janeiro de 2010 amanheci pensado naquela história, naqueles personagens, numa paisagem já descrita logo no início do que eu já chamava de romance. Senti novamente o ímpeto, a atracão, o desejo de retornar ao texto, prosseguir, cavar palavras, garimpar frases, cenários, instantes, cenas que completariam o que já havia um início. Lá estava o início de uma história, alguns detalhes que eu já não me lembrava com exatidão, embora guardados.
Ao reler aquelas páginas, logo percebi mudanças necessárias. Uma inevitável reescrita. Aquela coisa que o cansaço se mistura ao prazer. Rever um texto, reler, trabalhar melhores construções pode ser realmente bem cansativo, essa parte essencial a qualquer escrita. É a busca pelo que acreditamos ser o melhor, o mais próximo do que podemos chamar, talvez, de perfeição. Enquanto relia… foi mais de uma semana numa releitura inquieta, até que precisei afirmar, ou insinuar, para mim mesmo, que já estava bom, e que eu deveria dar continuidade a escrita. Afinal, alimentar a correção pode ser demais exaustivo, e o texto é agradavelmente vaidoso, ele quer o melhor para ele mesmo. Entretanto, chega a hora de parar. E ai, é o senso crítico que deve estar atento para analisar a qualidade do texto, se ele atingiu o seu objetivo, ou se são apenas palavras imaturas, um texto que não soube perceber a si mesmo.
(O texto precisa ser vaidoso, por mais simples que seja, ele precisa ser vaidoso, sem ser arrogante.)
Mas, retornando ao romance, daquelas doze páginas conclui o primeiro parágrafo, depois de mais algumas páginas escritas. Depois, arranquei mais um pouco de fôlego ao meu redor e dentro de mim mesmo, o óbvio, e conclui o segundo capítulo. E há três dias atrás fiquei aqui parado em busca do início do terceiro capítulo, o destino da história de cada personagem. Algumas coisas já arrumadas para o prosseguimento do romance, e outras coisas embaralhadas. Bem embaralhadas. Um início que não era início, e talvez até fosse, mas agora, já apagado. É assim mesmo. É assim que surge. Ontem consegui dois parágrafos, e hoje é um novo dia.
Como decidi acreditar que terei tempo suficiente para escrever a tese, e há uma bibliografia extensa, decidi fazer um trabalho paralelo, pois escrever é algo que me atrai com profundidade, e fica em mim como um grude. É isso. Tomara mesmo que até o final do ano eu consiga concluir a escrita do romance, de título ainda provisório, “Antes que os morangos apodreçam”.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cerimônias sem casamentos

Quando ela percebeu que a sua dor era maior do que aparentava foi no momento em que já estava fugindo para dentro do quarto que dividia com a irmã. Ela, a irmã um ano mais nova, em meio a mais uma das suas discussões, disse, de maneira pausada, aquela frase que lhe trouxe de volta uma das lembranças mais doloridas. Justo na véspera dos seus quarenta anos, e já em meio a tantas outras lembranças: o casamento desfeito, antes da cerimônia que seria no mês dos seus vinte anos; o filho com o nome escolhido, meticulosamente, o qual, talvez, ela não mais terá; a virgindade guardada para o novo príncipe que, de tão encantado que ela idealizou, parece desaparecido por outras cavalgadas em um esbelto cavalo branco. Foi neste quadro, com outras coisas mais, que ela foi flechada por uma pontaria certeira, bem na fechadura do baú lacrado com as recordações que seriam incineradas pelo tempo.
A irmã mais nova nunca deixou de se sentir a caçula com os privilégios de quando era criança, e carregava por todos os seus anos a confortável ilusão de que a vida era construída aos seus pés, e que o mundo mimado da sua infância nunca passaria. Trazia consigo a criança idealizada, enquanto a mulher que nela havia crescido se deparava com todos os conflitos do namoro que nunca aconteceu, e do primeiro beijo que nunca passou das suas erotizadas leituras de amor da revista Sétimo Céu. Tudo tão guardado na intimidade do seu coração trancado, sonhos secretos, desejos jamais compartilhados com os amigos íntimos que nunca existiram. Como sonhos que inevitavelmente vão morrendo frente ao desgaste do tempo, as revistas de amor foram sendo abolidas, trocadas pelas revistas informativas, culturais, num esforço também de agredir a irmã que nunca conseguiu ir além de conhecimentos bem elementares, presa a informações supérfluas. Mas esta, ao contrário da outra, tinha amigos, saía de casa todos os dias para trabalhar, tinha uma razoável independência para as suas roupas de marca, um abarrotado cartão de crédito com tumultuados pagamentos mínimos de prestações de Zoomp, Forum, Carmim, Guess, e uma tão sonhada compra na Daslú.
Eram três as suas irmãs mais velhas, sendo que as duas primeiras eram casadas; uma, com um homem rico, e a outra com um homem se empurrando para estar na classe média. Ela e a irmã mais nova se espremiam na mesma situação financeira dos pais: uma casa bonitinha, um muro alteado com grades, paredes pintadas em cores modernas, um conjunto de sofá sempre reformado para manter um ar de novo, e um fogão inoxidável presenteado pela irmã que ficou rica. No mais, quase as mesmas peças e objetos de sempre, embora muito bem conservados pelo zelo da mãe, que se dividia entre os afazeres da casa, os bordados, crochês e tricôs exigidos pelo orçamento da família, incluindo as revistas e pequenas compras da filha mais nova. Quanto à terceira das irmãs, a que fazia a separação entre as duas classes de irmãs, desapareceu no mundo depois de muitos avisos de que ainda se libertaria das irmãs neuróticas, principalmente da irmã mais nova, a estranhamente neurótica.
A mãe nunca deixou de ser aliada a filha caçula, e, invariavelmente, concordava que todas as brigas entre as duas irmãs eram culpas da mais velha, que, na verdade, era a mais passiva, a relevante, a que se recolhia para não deixar explodir os tantos rancores acumulados pelos insultos e menosprezos elaborados pela irmã e confirmados pela mãe. Jogaram sobre as suas costas o peso de ter interrompido a seqüência dos casamentos, e afirmavam que ela poderia muito bem ter aceitado a proposta matrimonial do viúvo rico e amigo do seu pai. Tinha idade de ser neta dele? E daí? Foi a única proposta surgida em vinte anos de espera, estaria rica, deixaria o quarto livre e entregue ao mundo peculiar da irmã, “o príncipe, a fada, a madrinha, a princesa nunca chegam pra alguns!” Todas estas justificativas ela ouviu muitas vezes, e ainda lhe são lembradas nos dias de maiores ausências afetivas.
Ela, então, fechou a porta do quarto para fugir mais uma vez de ouvir tudo aquilo que já sabia de cor, e se trancou ali dentro, mesmo sabendo que a sua irmã mantinha em seu poder a cópia da chave. Mas, desta vez, ela ficou lá de fora, lançando as suas mais árduas palavras que entravam pela fresta inferior da porta e pelo buraco da fechadura. Aquele som ressoando pelo quarto e pelas suas recordações; aquelas palavras um dia lidas, e agora com pretensões de também serem mais cortantes do que qualquer espada de dois gumes, e penetrar até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e discernir os pensamentos e intenções do coração.
Sentada sobre a cama, ela novamente retornou a um certo dia da sua infância, e reencontrou os momentos que haviam ficado em sua vida como uma nódoa encrespada do passado. Outra vez, prometeu não chorar, e ficou em silêncio pra não dizer tantas coisas e ouvir tantas outras mais. Ouviu, então, a voz da mãe, num tom de descaso, querendo disfarçar a sua própria parcialidade: “Parem com esta briga, meninas!” E ela visualizava a expressão da mãe, pronta a defender a filha caçula se as palavras agressivas fossem revidadas.
Depois de tantas palavras expostas a feridas, ela abriu a sacola com uma compra feita naquele dia. Uma calça jeans último lançamento, etiqueta rasgada pra ocultar o preço real, e o argumento falso de que a loja estava com uma promoção de 50% em três vezes no cartão. Saiu de volta ao trabalho com aquela angustia apertada dentro dela.
A sua irmã, com o rosto bem branco e bem avermelhado pela sua tensão autoritária e perversa, entrou no quarto e trancou a porta. Pegou a chave do seu guarda-roupa, destrancou a porta, pegou uma caixa com uma coleção de convites de casamentos de parentes e amigos da família, e ficou olhando cuidadosamente um por um. Por fim, separou um deles, o que lhe parecia o mais bonito, e, mesmo tão familiarizada com cada um daqueles detalhes, o contemplou cuidadosamente e o colocou debaixo do seu travesseiro. Guardou os outros no mesmo lugar de sempre, retornou à sua cama, vestiu uma camisola de seda comprada anos atrás, e se deitou parecendo dormir um sono tão tranqüilo.
Ficou ali renovando os sonhos e acalmando as dores mais íntimas, que “só quem os sonham e as sentem os conhecem.”

In: O silêncio e a Bagagem, 2007.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O embornal

Abriu lentamente o embornal
E lentamente retirou o pão.
O único.
Partiu o pão ao meio:
E ao primeiro deu uma parte
E ao segundo a outra parte.
Depois, olhou para o céu.

domingo, 31 de janeiro de 2010

Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento II

As folhas secas harmoniosamente se espalhavam ao vento lá fora. Aquele som cortante no coração, provocado pelas bordas das folhas e pelos grãos finos da areia nas calçadas silenciosas. Ouviam-se vozes ao longe, bem ao longe, embora viessem de tão perto, dali mesmo da rua da sua casa. Vozes alheias ao seu silêncio e à saudade que lhe arranhavam a alma. A casa silenciada, totalmente silenciosa, e aquele som de folhas secas ao vento, ecos nítidos, perfeitos, misturados a outros ecos nítidos, perfeitos, de uma voz agora ausente, e percorrendo-lhe visceralmente a memória. Era assim que ele se encontrava naquele fim de tarde. Nesta mais próxima tentativa utópica de explicar imagens e sentimentos que impactavam as suas recordações. O retorno à casa naquele dia distante de quando todos se reuniam. Um retorno à casa fechada por tanto tempo e o enfrentar aquele sentimento perdido para sempre.
Ele estirado no sofá, e aquele porta-retrato estirado em seu peito, depois de retirado de debaixo do lençol empoeirado que cobria a penteadeira cheia de histórias. Um porta-retrato com aquela fotografia eternizada pela saudade. Os olhos que jamais se fecham e o poder de se manter vivo, eterno. O olhar incessante e a dizer tantas palavras imortais. Aquela fotografia deitada em seu coração e o dilatar de uma dor que pulsava, também, em seus olhos, cruzando o sereno da noite na tentativa de atingir os céus. O eco daquela voz sempre permeando a sua vida. Tudo tão reduzido a fotografias, a imagens, porta-retratos e recordações, no coração. Pouco, muito pouco, entretanto.
Por mais que abrisse portas, ligasse o som, rodasse músicas, arrastasse mesas e cadeiras; por mais que falasse ao telefone, nunca desligado, mesmo sem mais ninguém a atendê-lo; por mais que molhasse as plantas secas, gritasse a dor, e insistisse em sentir o cheiro que não mais existia; por mais, e por mais, de nada adiantaria. E isto o inquietava, travava a sua garganta ressecada pelo clamor do retorno para sempre silenciado. O olhar entre o céu e a falta de coragem de encarar aquela fotografia além de poucos segundos. A certeza definitiva de que só no coração é que os sentimentos podem não morrer para sempre.
As folhas secas, sem direção, sem rumo, desordenadas, e se distanciando dos dias das suas próprias flores, dos seus perfumes, os ventos fortes que não as abalavam. O coração, a casa, as folhas ao vento.
(De repente, a vontade impulsiva de quebrar aquele porta-retrato.)
(De repente, a sensação de um surto repentino, provocando uma perturbadora vontade de rasgar, esmiuçadamente, aquela fotografia.)
De repente, foi invadido por sensações estranhas, enquanto tomado pelo “pra que servem agora fotografias?” E, sem respostas, deu tanta vida aquela retrato emoldurado, e o abraçou tão forte, deixando as marcas da moldura em seu peito. Porém, foi tomado por um sussurro dizendo que fotografias são papéis, apenas, e se entregou a uma respiração profunda e dolorida.
A bagagem feita para tão poucos dias estava ainda intacta diante da porta do quarto que era o seu. Ele se levantou daquele sofá, sem se desgrudar do porta-retrato com aquela fotografia de anos atrás, e se encaminhou até a sua bagagem. Ajoelhou-se, respirou o mais profundo que pôde, e então decidiu não permanecer ali nem mais um minuto. Abriu a pequena mala, pegou uma camisa de muita estimação, nela envolveu cuidadosamente o porta-retrato, e o guardou em sua bagagem.
Tanto silêncio! Os passos lentos em direção à porta lateral, e depois ao portão. Lembranças guardadas atravessando-lhe o peito, um último olhar para trás, os olhos embargados, e, então, saiu e trancou a casa com um resto de coragem que lhe restava.
Com um olhar transtornado pela saudade, saiu caminhando pela sua antiga rua, pisando em tantas folhas secas que se espalhavam ao vento.

(In: O silêncio e a bagagem, 2008)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O amanhã chegou hoje
Às 10:00 da manhã.
Um tanto tarde
Para a ansiedade do ontem.
Olhos inchados
Coração tenso
Peito sufocado.

O amanhã chegou
Sem fome, sem sede
Garganta trancada
E um receio de pensar.
Levou as horas
Ficaram apenas os minutos
Minutos
Minutos
Minuto.
Quero voltar ao ontem.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sobre a crônica "O vestuário dos pássaros" de António Lobo Antunes

Bela a crônica “O vestuário dos pássaros” de A. L. Antunes! Um texto simples sem ser simples, quando a simplicidade nos diz tantas coisas que marcam, que ficam, que faz surgir vida das coisas; e dos espelhos faz refletir uma infinidade de reflexões, movimentos pelo interior do ser e que nos levam a uma viagem que percorrem por paisagens da memória.

O homem diante do espelho: “De vez em quando olhava-me com estranheza de ser aquele e não nos falámos, claro. […] um desconhecido para mim; [...] não tínhamos nada a dizer um ao outro, de que raio de assuntos podíamos conversar?” Uma pausa diante da interrogação. Respostas pessoais, íntimas, fotografias reveladas e outras que ainda serão trabalhadas pelo fotógrafo que somos. Somos fotógrafos permanentes: fotografias que colocamos em grandes porta-retratos e fotografias outras guardadas. Rasgadas são algumas. Apenas rasgadas, e o destino dos pedaços é incerto: pedaços que se refazem e outros não.

Nos textos de Lobo Antunes há uma garantia de deleite. Assim é “O vestuário dos pássaros”, que tem o seu início em uma, aparentemente, cena simples do dia de ontem. Um “restaurantezeco” onde o nosso narrador come e restava apenas uma mesa vazia. Era o lugar da escrita: “apenas ao sentar-me dei conta que ficava diante de um espelho e portanto almocei comigo.” Dai a crônica prossegue, e em poucos instantes gavetas são abertas com coisas do passado. Do presente. Do futuro. Enquanto as coisas se movimentam numa terna ventania: “A varanda da sala onde junto estas palavras está fechada e contudo parece--me existir vento nas coisas.”

Ao concluir a minha primeira leitura da crônica, deixei ali a minha impressão:

Mas existe sim vento nas coisas, ainda que a varanda da sala esteja fechada, e tudo ao redor pareça silêncio. Existe sim o vento que surge das folhas que deixam de ser brancas ao deslizar das palavras impregnadas de sentimentos. Palavras que se encostam em outras palavras e juntas se libertam do abandono e criam imagens que fazem vento, muito vento. Uma ventania de prazer denso, intenso, vida (re)construida, vida rememorada de maneira especialmente antuniana: bela, não importa a paisagem do instante. I. L. Andrade

*Revista Visão Online, 7 de Janeiro de 2010: http://aeiou.visao.pt/o-vestuario-dos-passaros=f543409

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Uma conversa quase alheia

mas eu já havia dito antes que nada daquilo seria o melhor, e que nada seria, e tudo permaneceria na mesma falta de sentido de antes, e pior, como pior ficou. Desde quando ouvi aquelas palavras de uma convicção desperdiçada, eu disse. E mesmo quando tudo era ainda uma vaga insinuação, eu insinuei, claramente, que já sabia e que nada daquilo daria certo, “isso não vai dar certo!”, insinuei como se estivesse fazendo referência a outras coisas, outras pessoas, uma verdade alheia. Eu já havia dito e de nada adiantou, pois, às vezes, é como se as palavras não se parecessem com nada, não se assemelhassem a nada, enquanto aos ironizados “donos da verdade” chegam a provocar um ardor na garganta, um queimor no corpo, uma sensação de guerra sem motivo para batalha.

- A senhora vai descer em que estação?

A pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse, que não interrompa o seu desejo, que não apague o seu sentimento de satisfação. Entende o que eu estou dizendo? É assim: tudo o que pode interromper um sentimento de prazer dói. Disso sabemos. Mas a dor, a angústia do que algumas dessas coisas na verdade são, não sei! Não sei mesmo se vale a pena, e foi o que aconteceu com ela.

“Próxima estação: Campo Pequeno”

Hoje está ai, e agora quem está sem querer ouvir sou eu, pois não sei o que dizer. Também não vou ficar remoendo na cabeça dos outros aquela chatice de “bem que eu avisei”, pois de nada mais adianta falar do dito e do não dito depois de tudo, depois de seja lá quem for já estiver com o coração e a cabeça sem mais lugar para lamento, encolhido feito… feito nem sei o que dizer. Você já se sentiu assim em uma situação sem saber mais o que dizer?

- Uma mistura de raiva e de compaixão?

Uma mistura de raiva e de compaixão.

- Com licença, é a minha estação.


Eu estava conversando com uma pessoa que acabou de ficar ai no Campo Pequeno, e eu dizia que a pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse e nem interrompa […].

sábado, 2 de janeiro de 2010