domingo, 31 de janeiro de 2010

Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento II

As folhas secas harmoniosamente se espalhavam ao vento lá fora. Aquele som cortante no coração, provocado pelas bordas das folhas e pelos grãos finos da areia nas calçadas silenciosas. Ouviam-se vozes ao longe, bem ao longe, embora viessem de tão perto, dali mesmo da rua da sua casa. Vozes alheias ao seu silêncio e à saudade que lhe arranhavam a alma. A casa silenciada, totalmente silenciosa, e aquele som de folhas secas ao vento, ecos nítidos, perfeitos, misturados a outros ecos nítidos, perfeitos, de uma voz agora ausente, e percorrendo-lhe visceralmente a memória. Era assim que ele se encontrava naquele fim de tarde. Nesta mais próxima tentativa utópica de explicar imagens e sentimentos que impactavam as suas recordações. O retorno à casa naquele dia distante de quando todos se reuniam. Um retorno à casa fechada por tanto tempo e o enfrentar aquele sentimento perdido para sempre.
Ele estirado no sofá, e aquele porta-retrato estirado em seu peito, depois de retirado de debaixo do lençol empoeirado que cobria a penteadeira cheia de histórias. Um porta-retrato com aquela fotografia eternizada pela saudade. Os olhos que jamais se fecham e o poder de se manter vivo, eterno. O olhar incessante e a dizer tantas palavras imortais. Aquela fotografia deitada em seu coração e o dilatar de uma dor que pulsava, também, em seus olhos, cruzando o sereno da noite na tentativa de atingir os céus. O eco daquela voz sempre permeando a sua vida. Tudo tão reduzido a fotografias, a imagens, porta-retratos e recordações, no coração. Pouco, muito pouco, entretanto.
Por mais que abrisse portas, ligasse o som, rodasse músicas, arrastasse mesas e cadeiras; por mais que falasse ao telefone, nunca desligado, mesmo sem mais ninguém a atendê-lo; por mais que molhasse as plantas secas, gritasse a dor, e insistisse em sentir o cheiro que não mais existia; por mais, e por mais, de nada adiantaria. E isto o inquietava, travava a sua garganta ressecada pelo clamor do retorno para sempre silenciado. O olhar entre o céu e a falta de coragem de encarar aquela fotografia além de poucos segundos. A certeza definitiva de que só no coração é que os sentimentos podem não morrer para sempre.
As folhas secas, sem direção, sem rumo, desordenadas, e se distanciando dos dias das suas próprias flores, dos seus perfumes, os ventos fortes que não as abalavam. O coração, a casa, as folhas ao vento.
(De repente, a vontade impulsiva de quebrar aquele porta-retrato.)
(De repente, a sensação de um surto repentino, provocando uma perturbadora vontade de rasgar, esmiuçadamente, aquela fotografia.)
De repente, foi invadido por sensações estranhas, enquanto tomado pelo “pra que servem agora fotografias?” E, sem respostas, deu tanta vida aquela retrato emoldurado, e o abraçou tão forte, deixando as marcas da moldura em seu peito. Porém, foi tomado por um sussurro dizendo que fotografias são papéis, apenas, e se entregou a uma respiração profunda e dolorida.
A bagagem feita para tão poucos dias estava ainda intacta diante da porta do quarto que era o seu. Ele se levantou daquele sofá, sem se desgrudar do porta-retrato com aquela fotografia de anos atrás, e se encaminhou até a sua bagagem. Ajoelhou-se, respirou o mais profundo que pôde, e então decidiu não permanecer ali nem mais um minuto. Abriu a pequena mala, pegou uma camisa de muita estimação, nela envolveu cuidadosamente o porta-retrato, e o guardou em sua bagagem.
Tanto silêncio! Os passos lentos em direção à porta lateral, e depois ao portão. Lembranças guardadas atravessando-lhe o peito, um último olhar para trás, os olhos embargados, e, então, saiu e trancou a casa com um resto de coragem que lhe restava.
Com um olhar transtornado pela saudade, saiu caminhando pela sua antiga rua, pisando em tantas folhas secas que se espalhavam ao vento.

(In: O silêncio e a bagagem, 2008)

3 comentários:

  1. Que coisa bonita!, sua sensibilidade continua a mesma meu amigo, adorei,principalmente hoje, dia em que sou só saudade!!!bj

    ResponderExcluir
  2. Maestro, linhas musicais! Em tempo, é bom ver o vento ser bem tratado: Os poetas insistem em repetidas vezes em apenas usá-lo para rimar com sentimento...
    Minha reverência,

    LF

    ResponderExcluir
  3. Foi como reviver através das suas palavras a sua ,a minha e tantas outras histórias de saudades do não mais possível,e hoje , é só memória .
    Ah! o tempo... , veneno e antidoto das nossas emoções.
    Chorei com suas palavras, viu menino!

    ResponderExcluir