domingo, 21 de fevereiro de 2010

"Antes que os morangos apodreçam"

Um dia, num ímpeto, acreditando que escreveria um romance naquela sequência de dias, escrevi nada mais que 12 páginas. Foi tudo, em quantos dias não me lembro mais. Não muitos, acredito, devido ao impulso daquele momento e a interrompida certeza de que sim, eu escreveria naquela época. Mais de cinco anos se passaram, e o arquivo do possível romance ficou rodando do velho ao novo computador, sendo renovado, adiado, na expectativa de que um dia ele aconteceria.
Pois bem. Era Janeiro de 2010 amanheci pensado naquela história, naqueles personagens, numa paisagem já descrita logo no início do que eu já chamava de romance. Senti novamente o ímpeto, a atracão, o desejo de retornar ao texto, prosseguir, cavar palavras, garimpar frases, cenários, instantes, cenas que completariam o que já havia um início. Lá estava o início de uma história, alguns detalhes que eu já não me lembrava com exatidão, embora guardados.
Ao reler aquelas páginas, logo percebi mudanças necessárias. Uma inevitável reescrita. Aquela coisa que o cansaço se mistura ao prazer. Rever um texto, reler, trabalhar melhores construções pode ser realmente bem cansativo, essa parte essencial a qualquer escrita. É a busca pelo que acreditamos ser o melhor, o mais próximo do que podemos chamar, talvez, de perfeição. Enquanto relia… foi mais de uma semana numa releitura inquieta, até que precisei afirmar, ou insinuar, para mim mesmo, que já estava bom, e que eu deveria dar continuidade a escrita. Afinal, alimentar a correção pode ser demais exaustivo, e o texto é agradavelmente vaidoso, ele quer o melhor para ele mesmo. Entretanto, chega a hora de parar. E ai, é o senso crítico que deve estar atento para analisar a qualidade do texto, se ele atingiu o seu objetivo, ou se são apenas palavras imaturas, um texto que não soube perceber a si mesmo.
(O texto precisa ser vaidoso, por mais simples que seja, ele precisa ser vaidoso, sem ser arrogante.)
Mas, retornando ao romance, daquelas doze páginas conclui o primeiro parágrafo, depois de mais algumas páginas escritas. Depois, arranquei mais um pouco de fôlego ao meu redor e dentro de mim mesmo, o óbvio, e conclui o segundo capítulo. E há três dias atrás fiquei aqui parado em busca do início do terceiro capítulo, o destino da história de cada personagem. Algumas coisas já arrumadas para o prosseguimento do romance, e outras coisas embaralhadas. Bem embaralhadas. Um início que não era início, e talvez até fosse, mas agora, já apagado. É assim mesmo. É assim que surge. Ontem consegui dois parágrafos, e hoje é um novo dia.
Como decidi acreditar que terei tempo suficiente para escrever a tese, e há uma bibliografia extensa, decidi fazer um trabalho paralelo, pois escrever é algo que me atrai com profundidade, e fica em mim como um grude. É isso. Tomara mesmo que até o final do ano eu consiga concluir a escrita do romance, de título ainda provisório, “Antes que os morangos apodreçam”.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cerimônias sem casamentos

Quando ela percebeu que a sua dor era maior do que aparentava foi no momento em que já estava fugindo para dentro do quarto que dividia com a irmã. Ela, a irmã um ano mais nova, em meio a mais uma das suas discussões, disse, de maneira pausada, aquela frase que lhe trouxe de volta uma das lembranças mais doloridas. Justo na véspera dos seus quarenta anos, e já em meio a tantas outras lembranças: o casamento desfeito, antes da cerimônia que seria no mês dos seus vinte anos; o filho com o nome escolhido, meticulosamente, o qual, talvez, ela não mais terá; a virgindade guardada para o novo príncipe que, de tão encantado que ela idealizou, parece desaparecido por outras cavalgadas em um esbelto cavalo branco. Foi neste quadro, com outras coisas mais, que ela foi flechada por uma pontaria certeira, bem na fechadura do baú lacrado com as recordações que seriam incineradas pelo tempo.
A irmã mais nova nunca deixou de se sentir a caçula com os privilégios de quando era criança, e carregava por todos os seus anos a confortável ilusão de que a vida era construída aos seus pés, e que o mundo mimado da sua infância nunca passaria. Trazia consigo a criança idealizada, enquanto a mulher que nela havia crescido se deparava com todos os conflitos do namoro que nunca aconteceu, e do primeiro beijo que nunca passou das suas erotizadas leituras de amor da revista Sétimo Céu. Tudo tão guardado na intimidade do seu coração trancado, sonhos secretos, desejos jamais compartilhados com os amigos íntimos que nunca existiram. Como sonhos que inevitavelmente vão morrendo frente ao desgaste do tempo, as revistas de amor foram sendo abolidas, trocadas pelas revistas informativas, culturais, num esforço também de agredir a irmã que nunca conseguiu ir além de conhecimentos bem elementares, presa a informações supérfluas. Mas esta, ao contrário da outra, tinha amigos, saía de casa todos os dias para trabalhar, tinha uma razoável independência para as suas roupas de marca, um abarrotado cartão de crédito com tumultuados pagamentos mínimos de prestações de Zoomp, Forum, Carmim, Guess, e uma tão sonhada compra na Daslú.
Eram três as suas irmãs mais velhas, sendo que as duas primeiras eram casadas; uma, com um homem rico, e a outra com um homem se empurrando para estar na classe média. Ela e a irmã mais nova se espremiam na mesma situação financeira dos pais: uma casa bonitinha, um muro alteado com grades, paredes pintadas em cores modernas, um conjunto de sofá sempre reformado para manter um ar de novo, e um fogão inoxidável presenteado pela irmã que ficou rica. No mais, quase as mesmas peças e objetos de sempre, embora muito bem conservados pelo zelo da mãe, que se dividia entre os afazeres da casa, os bordados, crochês e tricôs exigidos pelo orçamento da família, incluindo as revistas e pequenas compras da filha mais nova. Quanto à terceira das irmãs, a que fazia a separação entre as duas classes de irmãs, desapareceu no mundo depois de muitos avisos de que ainda se libertaria das irmãs neuróticas, principalmente da irmã mais nova, a estranhamente neurótica.
A mãe nunca deixou de ser aliada a filha caçula, e, invariavelmente, concordava que todas as brigas entre as duas irmãs eram culpas da mais velha, que, na verdade, era a mais passiva, a relevante, a que se recolhia para não deixar explodir os tantos rancores acumulados pelos insultos e menosprezos elaborados pela irmã e confirmados pela mãe. Jogaram sobre as suas costas o peso de ter interrompido a seqüência dos casamentos, e afirmavam que ela poderia muito bem ter aceitado a proposta matrimonial do viúvo rico e amigo do seu pai. Tinha idade de ser neta dele? E daí? Foi a única proposta surgida em vinte anos de espera, estaria rica, deixaria o quarto livre e entregue ao mundo peculiar da irmã, “o príncipe, a fada, a madrinha, a princesa nunca chegam pra alguns!” Todas estas justificativas ela ouviu muitas vezes, e ainda lhe são lembradas nos dias de maiores ausências afetivas.
Ela, então, fechou a porta do quarto para fugir mais uma vez de ouvir tudo aquilo que já sabia de cor, e se trancou ali dentro, mesmo sabendo que a sua irmã mantinha em seu poder a cópia da chave. Mas, desta vez, ela ficou lá de fora, lançando as suas mais árduas palavras que entravam pela fresta inferior da porta e pelo buraco da fechadura. Aquele som ressoando pelo quarto e pelas suas recordações; aquelas palavras um dia lidas, e agora com pretensões de também serem mais cortantes do que qualquer espada de dois gumes, e penetrar até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e discernir os pensamentos e intenções do coração.
Sentada sobre a cama, ela novamente retornou a um certo dia da sua infância, e reencontrou os momentos que haviam ficado em sua vida como uma nódoa encrespada do passado. Outra vez, prometeu não chorar, e ficou em silêncio pra não dizer tantas coisas e ouvir tantas outras mais. Ouviu, então, a voz da mãe, num tom de descaso, querendo disfarçar a sua própria parcialidade: “Parem com esta briga, meninas!” E ela visualizava a expressão da mãe, pronta a defender a filha caçula se as palavras agressivas fossem revidadas.
Depois de tantas palavras expostas a feridas, ela abriu a sacola com uma compra feita naquele dia. Uma calça jeans último lançamento, etiqueta rasgada pra ocultar o preço real, e o argumento falso de que a loja estava com uma promoção de 50% em três vezes no cartão. Saiu de volta ao trabalho com aquela angustia apertada dentro dela.
A sua irmã, com o rosto bem branco e bem avermelhado pela sua tensão autoritária e perversa, entrou no quarto e trancou a porta. Pegou a chave do seu guarda-roupa, destrancou a porta, pegou uma caixa com uma coleção de convites de casamentos de parentes e amigos da família, e ficou olhando cuidadosamente um por um. Por fim, separou um deles, o que lhe parecia o mais bonito, e, mesmo tão familiarizada com cada um daqueles detalhes, o contemplou cuidadosamente e o colocou debaixo do seu travesseiro. Guardou os outros no mesmo lugar de sempre, retornou à sua cama, vestiu uma camisola de seda comprada anos atrás, e se deitou parecendo dormir um sono tão tranqüilo.
Ficou ali renovando os sonhos e acalmando as dores mais íntimas, que “só quem os sonham e as sentem os conhecem.”

In: O silêncio e a Bagagem, 2007.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O embornal

Abriu lentamente o embornal
E lentamente retirou o pão.
O único.
Partiu o pão ao meio:
E ao primeiro deu uma parte
E ao segundo a outra parte.
Depois, olhou para o céu.