domingo, 30 de maio de 2010

A rua em "Souvenir from Lisbon", de António Lobo Antunes

São muitas as ruas em António Lobo Antunes. Um interessante trabalho de pesquisa e de exercício enquanto somos levados a percorrer calçadas e a contemplar paisagens: as ruas, apenas as ruas, e um universo possível para reflexões, conhecimento, significados e referências de lugar, lugares, memórias. Em todas as ruas de/em António Lobo Antunes há um percorrer de sentidos que não é ao acaso, se nada é por acaso em suas narrativas. O narrador retorna às suas ruas e às de personagens outros, e, ao narrar as suas paisagens e passagens, desperta no outro o conhecer, o saber, o lugar, as ruas que não são imaginárias. E são. Todas as ruas imaginárias, se não é apenas a matéria. Ali, lugar de reflexões, a memória e os sentidos em suas cores, em suas decorações, suas calçadas em movimentos de um lado para outro, idas e vindas, idas, partidas, chegadas.

Segundo livro de crónicas. Entre as tantas fotografias presentes em suas páginas, no sentido concreto e muito mais no sentido metafórico, releio Souvenir from Lisbon com a atenção inerentemente exigida pelo seu criador. A rua é a dos Baldaques, certamente escolhida de maneira criteriosa para compor a crónica que tem início com um questionamento, uma inquietação e uma resposta aberta a outros questionamentos e a outras respostas de invenções possíveis:
“O que terei perdido na Rua dos Baldaques? Mal a conheço
(passo de vez em quando, de automóvel, por ali)
E no entanto, sei lá porquê, em nenhum outro lugar me vem esta certeza de ausência, esta dúvida […]”.

O distanciamento das ruas e nas ruas, e uma presença mais forte de ausência, lugar mais forte de dúvida, de desejo, uma inquietação da qual o narrador, em primeira pessoa, não entende o que seja, “talvez não coisas”, “talvez outra coisa para além das coisas”. A crónica prossegue num enriquecimento da Rua dos Baldaques: personagens que surgem como se fossem apenas figurantes, simples, comuns, mas percebemos que todos eles estão bem além do que poderíamos chamar de quadros distribuídos ao acaso pelas ruas, o cotidiano “invisível”. Mas não. Não é simplesmente a figura de “uma senhora que pendura roupa numa corda, de mãos acima da cabeça como se amparasse uma bilha invisível”, “não é isso”, e não é apenas a figura de um velhote que “conversa no passeio com o cachorro cego”. É tudo muito além naquele apenas suposto distanciamento da rua. Eles, de longe observados, integram a crónica de maneira sublime, aproximam reflexões até que o narrador desvia o olhar, “volta à direita”, e a Rua dos Baldaques desaparece num ímpeto das recordações.

Surge, numa mudança quase imperceptível do tempo, um novo plano na rua que havia acabado de desaparecer, enquanto tudo permanecia ali, entre a presença e a ausência. O narrador é enfático: a Rua dos Baldaque desapareceu. É quando as imagens substituem outras. Quando as imagens remetem a outras imagens e a anterior, na verdade, não desaparece, se foi a origem das recordações, as lembranças representadas pelo cheiro, pela cor, pelas coisas, pelos semblantes, tudo representando o que “era” naquela rua.

A rua desapareceu e tantas coisas se parecem com o “talvez”: “e talvez fosse a senhora do segundo andar da esquina, talvez fosse o velhote, voltar atrás” É quando o tempo retorna, e a Rua dos Baldaques parece ressurgir pelo pousar de uma borboleta que “esteve três dias no espelho do toucador da minha mãe”, diz o narrador, quando o tempo voa e pousa num passado tantas vezes longínquo. A mãe. De repente, a Rua dos Baldaques ganha contornos imensos, e se faz ainda maior: lugar de reminiscências que pulam para os frascos de perfume da mãe do narrador. Imagens trabalhadas com a sensibilidade de A. L. Antunes, em sua escrita onde a cidade de Lisboa pode caber dentro de uma rua, por maior que seja, por maior que represente, por maior.

Ao concluir a leitura da crónica Souvenir from Lisbon, decidi, impulsivamente, localizar a rua em referência e, para a minha surpresa, ela está logo ali. Fui andar pela rua, olhei os prédios, as suas cores, deixei as imagens fluírem. Uma rua talvez pequena, as escadarias curvando e subindo a ladeira e se fazendo diferente de tantas outras. Foi ali o lugar de mais uma escrita. É ali o lugar de mais uma escrita. É aquele mais um dos lugares eternizados por A. L. Antunes. A senhora do segundo andar já não estava mais a estender as roupas e nem o velhote a conversar no passeio com o cachorro cego. Mas havia a sensação do “ cheiro dos frascos de perfume com suspiros de violetas […]
- Mãe”

segunda-feira, 10 de maio de 2010

"Cartas da Guerra", António Lobo Antunes: A Memória entre a Guerra e o Sublime

António Lobo Antunes é uma presença marcante no campo memorialístico da Literatura Portuguesa e Internacional, com a sua impactante obra literária, a saber, os seus romances e as suas crônicas. Por meio de uma narrativa com cenários compostos por narradores vinculados a recordações contundentes, lembranças aguçadas, densas e sublimes, o leitor é seduzido a acompanhar os seus narradores com as suas lembranças impregnadas de fantasmas, fragmentos discursivos, imagens traumáticas. Enfim, (re)construções, na memória, de um tempo passado e entrelaçadas num tempo presente.
A partir das características narrativas proporcionadas por Antunes, a proposta do nosso artigo é, considerando o percurso dos seus narradores, pela memória, realizar uma breve leitura de abordagem memorialística da sua obra, tendo em consideração seus romances e crônicas, designadamente “D`este viver aqui neste papel descripto – Cartas da guerra”. Trata-se de uma compilação das cartas escritas para a sua esposa, compiladas por suas filhas, e que compreendem o período de Janeiro de 1971 a Janeiro de 1973, quando o escritor esteve na guerra colonial em Angola. Um cenário, portanto, que percorre entre o espaço de guerra e o espaço de amor, revelando sentimentos distintos: a hostilidade e o amor, a solidão e a vida.
Para a nossa análise, tomaremos como referências principais algumas considerações de Paul Ricoeur, resultado de suas investigações sobre a memória, e apresentadas em A memória, a história, o esquecimento.

Texto completo disponível aqui.


Resumo do Artigo apresentado no XXII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa. UFBA - Salvador, Bahia.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

domingo, 2 de maio de 2010

António Lobo Antunes: um contentamento na 80ª Feira do Livro de Lisboa

Ontem fui à 80ª Feira do Livro de Lisboa. Livros. Muitos livros. Páginas e páginas recheadas de obras-primas e outras nem tanto ou uma longa, muito longa distância. Todos com os seus leitores apaixonados e, possivelmente, outros menos. Mas são leitores, o que é fundamental. O poder de atracão do livro, a sua sedução que atrai o leitor para dentro das suas páginas e para o seu enredo quando tudo, absolutamente tudo se transforma em real, mesmo que seja ficção, ou assim chamado.
Fui direto para o Espaço Leya, que está ainda mais bem estruturado que o ano passado. Uma organização impecável e tantos e tantos livros em suas estantes. Levei comigo a minha edição brasileira de Memória de Elefante, cheio de grifos e anotações em vermelho e em gravite: lido e relido. Em sua página em branco faltava um autógrafo do seu autor e grande mestre da narrativa António Lobo Antunes.
Uma fila já havia sido iniciada, e sobre a pequena mesa diante dele passava os seus mais diversos títulos para mais um dos seus inúmeros autógrafos. Nas prateleiras, os seus livros, todos atraentes, convidativos. Adquiri O Fado Alexandrino e fui para o meu lugar na fila, levando comigo a paciência melhor possível. Afinal, Lobo Antunes é aquele autor que sabe compartilhar algum diálogo com os seus leitores, por mais breve que seja. Eu ali observando o seu prazer em tocar em seus livros, as suas criações tão criteriosas, as mãos se deslizando sobre as capas num sentimento de intimidade e de afeto.
Chegou a minha vez. Eu, os meus dois outros volumes dos seus romances, e um prazer repetido do ano passado. Primeiro entreguei O Fado Alexandrino e comecei a falar um pouco, bem breve, o mais breve possível, se havia uma fila e muitos outros livros para serem autografados. Falei da minha Pesquisa e entreguei o meu volume do Memória de Elefante, enquanto declarava a minha paixão por este romance. O entusiasmo inevitável e, quando percebi, já estava mostrando, ao seu autor, uma das passagens que considero das mais marcantes, e são muitas e muitas, dos seus romances: “Herdei talvez de ti o gosto do silêncio […]. O gosto do silêncio e o fitarmo-nos como estranhos separados por distância impossível de abolir, que pensarás de facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no útero para um demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na direcção do repouso que não há.”. Ele olhou o texto, muito brevemente, e exclamou com uma ternura que percorre as suas páginas:
“Minha mãe!”
Não podia me prolongar mais. Era a minha hora que se excedia, se havia uma fila, livros, outros enredos, outros leitores apaixonados pelas suas narrativas. Mais um breve encontro com o autor, bem breve, mas de prazer e resultado demais valoroso. É quando o que parece ser pouco é imenso e muito produtivo.
No final, agradeci a Lobo Antunes por ter me ofertado um volume do A Explicação dos Pássaros. Contentamento atraindo contentamento. Sai de lá com os meus três volumes e a vontade de ler, ler, ler…