terça-feira, 22 de junho de 2010

"Há surpresas assim", de A. L. Antunes: uma reflexão sobre a escrita.

A escrita é também um lugar de possíveis surpresas. Elas podem surgir de espaços interiores ou exteriores, quando alguma imagem súbita se manifesta e interrompe uma sequência previamente elaborada. São imagens, em suas diversas origens, e todas elas com as suas possibilidades de entrarem, naquele instante, no texto em produção.

Há surpresa assim é uma crónica de A. L. Antunes e que, entre as suas leituras, proporciona uma reflexão a respeito desta arte solitária. A escrita. O ato de produzir é um ato impregnado de angústia. Igualmente, e muito mais, ou menos para alguns, é um ato impregnado de prazer. Ao ler Há surpresa assim, penso numa incógnita cheia de possíveis grandes surpresas e releio uma definição de ALA, que parece interromper uma sequência, e ao mesmo tempo não há qualquer interrupção, ao abrir mais um dos seus criteriosos parênteses: “escrever é uma actividade que raramente associo ao prazer”. Aqui, o que o escritor denomina de “raramente” é um significado íntimo, experiência pessoal de um escritor de produção extensa e que conquista ininterruptamente leitoras e investigadores que se interessam, com prazer, pela sua obra. É o resultado da sua entrega e das suas exigências que sabemos imensas, é o que chega até nós, leitores, em páginas de enredos transcritos em palavra selecionadas sem o acaso - se o acaso não estiver envolvido com algum grau de perfeição. Frase por frase lapidada com uma exigência, digamos, matemática, no sentido de melhor perfeição das suas metáforas e todos os efeitos de puro envolvimento literário: gavetas e mais gavetas, e tantas são as memórias que se adequam aos seus textos e os seus textos a ela.

“Às vezes há surpresa assim. Anda um homem às voltas com um livro, carregado de angústia e de dúvidas”. É o cenário que inicia a crónica, seguido pelos parênteses acima e à rara sensação de associar o ato de escrever ao sentimento de prazer. As mesmas angústias se repetem num novo texto: as suas crónicas, os seus romances, a repetição dos sentimentos, as sensações que podem ser incompreendidas se o livro, quando pronto nas mãos do leitor, são deliciados apenas em resultado final, impresso em belas capas e em páginas de manuseio agradável. E todo o processo de produção é o lugar desconhecido, talvez por mais que se tente transmitir tal sensação.

E outra vez livre dos parênteses, em Há surpresas assim observamos uma outra manifestação do sentimento de angústia expressa por ALA quanto ao texto, cada um deles, e a certeza de que elas o “acompanharão quando daqui a alguns meses o entregar ao agente e o agente aos editores, a suspeita de não ter sido capaz, de ter falhado, de dispersar em cinzas o material incandescente que tinha na mão”. Tudo depois das horas incessantes, 15 horas por dia, todos os dias, aflito, raivoso, com ganas de desistir, de jogar no lixo, tudo, tudo depois de dormir e acordar com as páginas escritas, a empenhar tempo e saúde, como expressos pelo autor em sua crônica aqui referenciada: o receio de tudo resultar em nada. Nada? Se um mestre assim se revela, fica uma reflexão, a qual pode ser muito inquieta para o aprendiz, aqui definindo aqueles que começam, que se empolgam, que ainda não perceberam que uma obra de arte está bem além de produzir um enredo e dele fazer páginas e páginas escritas, e muito menos sem a angústia da criação, e o prazer, ainda que raramente.

Depois de tudo, inclusive da exaustão, a surpresa, que me faz pensar outra vez naquilo que pode chegar do inesperado e entrar no texto: “de surpresa, o milagre de uma carta, uma pausa de amizade, de afecto e de paz no destino de sarça ardente que sou. Vem do Porto, com o retrato…”. Um retrato surge, e invade o texto, pois se faz um elemento agora essencial. E depois da ternura, da densidade e do sublime descritos, novamente os parênteses sustentando uma reflexão crítica: “porque não escrevo assim, com esta simplicidade enxuta, esta despretensiosa ternura, esta força?” Se pudermos responder, se eu puder responder, se tantas coisas: é de uma ternura e de uma força tremenda a obra de ALA, e a inquietação é mesmo uma essência que renova e intensifica a grandeza dos seus resultados. Há surpresa assim, e que nem surpresas são, mas um prazer que nos é garantido em cada um dos seus textos.

In: ANTUNES, António Lobo. Segundo livro de crónicas. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

2 comentários:

  1. Com licença,

    como eu faço pra conseguir essa crônica? Não encontrei no site dele, fiquei curioso.

    Obrigado.
    André

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  2. Meu querido amigo poeta Ismar!Que maravilha a vida com surpresas assim!Encontrar vc na net,comentar o seu blog,voltar a fruir a beleza poética das suas palavras é no mínimo uma surpreendente boa surpresa (rsrs)Imagine quem me proporcionou esse momento especial?Não faz ideia? A nossa Maga Isolda.Estou na casa dela e pude acessar o seu Blog.Parabéns.Pena que conheço pouca coisa de Lobo Antunes,mas tenho curiosidade de lê-lo,dado a ter uma colega de Doutorado que o estuda e que sempre comenta sobre ele.Mas mesmo não comentando o seu objeto de estudo no blog,estou tendo a oportunidade de interagir com vc e matar a saudade.Um abraço!

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