segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Entre as margens do rio

Um rio imenso e águas que parecem o infinito embora as suas margens logo ali de um lado e de outro, e nada mais é infinito se agora os pés sobre chão depois do azul das águas movimentando o reflexo dos céus, paisagens na travessia do rio ilustram pensamentos e expectativas que movimentam o corpo o peito a alma tudo sobre as águas num balançar não apenas silencioso

Não apenas.

O cais
(que na apreensão do desejo revela um caminho que parece imenso diante da travessia sobre as águas cristalinas)
é o mais belo lugar no exato instante em que tudo se faz ser alguma felicidade, e tão perto o corpo o peito e a alma ofegando a emoção quase suave

e depois a avenida iluminada pelas luzes tornando-a uma planície luminosa enquanto o corpo e o peito se misturavam em meio à emoção, e o desejo pulsando forte do lado de cá na margem do rio noturno

até que no corpo o prazer fez seu leito e então repousou-se

e até que o retorno e a travessia outra vez, quando era a noite que iluminava as águas ainda cristalinas e o corpo o peito e a alma bailavam a travessia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"Qualquer coisa em que me tornei", de António Lobo Antunes: Uma leitura

Uma leitura e imagens densas captadas de uma possível apatia, involuntária a possível apatia num puro instante de alguma necessidade de solidão, e muito mais é o involuntário estado de exaustão derramado nas imagens da crónica "Qualquer coisa em que me tornei", Segundo Livro de Crónicas. É ela. A personagem central. Ela mesma a narradora. A mulher, a esposa, a mãe, a dona de casa e “uns chinelos tão sozinhos” e fortemente representativos quando os objetos parecem falar: voz calada, emudecida, e ao mesmo tempo a existência de uma voz que se revela por meio de palavras que se impõem e chegam a gritar.

Num ritmo com tons serenos e nostálgicos, a crônica é narrada enquanto a densidade de um instante marca aquilo em que uma vida se tornou. O cotidiano, a vida dentro da própria casa, todos ao redor e ao mesmo tempo a sensação de ausência consigo mesma, ninguém. Tudo num contraste com o que parece uma falta de vontade de que nada seja feito para que as coisas mudem.

O cansaço. Lugar determinante do enfado, “Há dias em que me sinto tão cansada.” Declaração ou desabafo que marca o início da crónica e abre um espaço de expectativa para o que virá em sua sequência. O cansaço que não é por causa do emprego, nem dos filhos, nem dos trabalhos de casa quando para lá ela retorna, nem “sequer” é o marido a causa. Mas é sim um cansaço que se torna perceptível diante do que pode parecer tão simples, mas que, ao seu redor, pode haver todo um significado, tantas vezes tão interiorizado, inconsciente até, e que desfaz tal simplicidade aparente das coisas: arrumar o carro na garagem, chamar o elevador, entrar em casa e o marido e os filhos desviarem o olhar da televisão e sorrirem para ela. Um sorriso que pode não apresentar sintonia algum com o seu estado de espírito. Cansaço, apesar das compras já feitas pela diarista, assim como o jantar já preparado, e nada mais do que ligar o microondas. Cansaço, e o impacto quando vê, na marquise, os chinelos da diarista que já havia cumprido o seu horário e partido, “uns chinelos tão sozinhos que quase me dão vontade de gritar. Porquê? Perguntas e perguntas” que vão ficando sem respostas, ou respostas largadas em subterrâneos. “Por amor de Deus que ninguém se interesse sobre como me ocorreu o trabalho,” por amor de Deus tantas coisas e o “sacudir em paz as migalhas da toalha na varanda dando-me a impressão de que sacudo a minha vida.”

A família parece desconectada enquanto ela clama calada por sossego, o marido ali, diante do computador, a jogar gamão, o filho mais novo que “deve” estar no sofá, o filho mais velho a se despedir usando pantufas que “são dois Ratos Mickeys numa estupidez feliz”, novamente o marido com o seu cheiro que lhe agrada mas ao mesmo tempo não, ele que quando dela se aproxima resulta num pretexto, e dele se afasta para “verificar se os olhos do mais novo continuam abertos no escuro” a censurá-los. Todos dentro da casa, todos, e todo um desejo talvez censurado por ela mesma, e transferidos para o filho mais novo, a censura de um desejo de que não fosse aquela a existência, as horas desejadas em uma casa que não fosse aquela, o cansaço capaz de recriar imagens, o enfado e uma entrega ao silêncio e a um estado de solidão, não corrosiva, mas uma solidão até que o cansaço de tudo e de todos passe, e o estado interior seja refeito, ou nunca mais se o cotidiano prossegue imutável.

Um ramo seco na jarra é muito mais que um objeto, é uma espécie de espelho que reflete a sua própria imagem: “qualquer coisa em que me tornei.” O espelho que também reflete como uma revelação sobre a aliança que brilha em seu dedo, mas que parece ofuscada pela falta de um sentido claro, sem força, sem o laço que deveria ou poderia ser, e os anos sendo consumido em cansaço: “Mesmo passados doze anos a aliança surpreende-me no espelho.”

"Qualquer coisa em que me tornei" é mais uma crónica carregada de memória, o hoje, o ontem, as conexões entre os tempos, a nostalgia, perguntas e outras perguntas enquanto as respostas se aliam ao evasivo, algumas coisas resgatadas, outras nunca mais, o eu fragmentado, outras vezes tão inteiro diante do olhar que define respostas, e ela: “Sem maquilhagem a cara esvaziou-se” e “a impressão que uma criança, usando o meu vestido, me observa com espanto.” Não é sempre a presença da mulher que circula pela casa, se quando a noite chega, por completo, ela precisa se refazer, a pintura, a maquiagem, não apenas estética, na criança na qual ela se torna: “De manhã transformo-a o mais depressa que consigo numa pessoa grande para que o meu marido não a veja, e agora estendo-me de costas para ele com medo que a encontre.”

Qualquer coisa. Qualquer coisa em que ela se tornou. As sensações indefinidas, os sentimentos que se fazem em pedaços em busca de um encontro, talvez, capaz de se ser refeito ou compreendido, absorvido. Na cama, novamente o cheiro que lhe agrada e desagrada, ali ao seu lado, próximo, e a distância. Possivelmente muito mais desagrada, e ela se levanta para beber água, depois se apoia nos azulejos da parede e outra vez olha os chinelos da diarista na maquise: “Continuam tão sozinhos como dantes mas já não me dão vontade alguma de gritar.” O grito ganha um novo sentido, talvez um desânimo, um cansaço, uma exaustão, tudo ainda maior, quando a sensação é a de que já nem mais vale a pena gritar se tudo é uma surdez ao redor; talvez o silêncio, desnecessário o grito se tudo já se refez em decisões, em calmarias para que o cansaço não mais exista, e sim o rompimento com tudo o que se faz cansaço, o dela. Os chinelos tão sozinhos, imagem tão cheia de significados, quase palavras expressas em letras imensas, imagem que ainda se expressava em destaque na casa quando tudo já era silêncio.