sábado, 21 de maio de 2011

As horas partiram naquele instante


Todas as horas partiram no mesmo instante em que percebera que não havia flores alguma, as flores que enfeitavam as fotografias coloridas e as que eram belas exatamente por serem em preto e branco, as flores nas fotografias. Em todas elas as cores deslizavam como águas sobre um rio que transbordava suavemente em seu leito, suavemente. O realce tão embelecido das cores nos jardins que enfeitavam a cidade; e na casa, sobre a mesa e nos cantos da sala de visita, o colorido espalhado pelos ramos verdes, bem verdes, os ramos de repente secos e sem colorido algum nos jarros sobre a mesa e nos cantos da sala, muito menos, e, de repente, as avenidas sem os jardins que enfeitavam a cidade nas fotografias por tantas horas diante dos seus olhos demais encantados com o que era, e muito mais com o que seria. Foi quando percebera, de vez, que todas as horas já haviam partido.

As horas partiram, bruscamente, como se nunca fotografia alguma. Tudo, talvez, sempre a fantasia como se fossem lentes de imagens esquizofrênicas, as imagens que enfeitavam a casa com as suas salas bem amplas e os seus corredores imensos, largos, estreitos, outros corredores quase se espremendo entre as salas que quase nem existiam.

“As flores nunca existiram”, pensou. E não conseguiu evitar o súbito pensamento de que a loucura, não, não era loucura, apenas vozes cochichando em seus ouvidos que nunca, nunca houvera flores alguma, nem mesmo nas fotografias. Nem as coloridas e nem as em preto e branco. Todas as horas partiram naquele instante. Então, quase desiludido, decidiu prosseguir pela avenida, sem nunca ter saído nem mesmo do seu quarto naquele dia. Apenas um rio transbordando de vozes, alimentadas todas as vozes como um deleite em álbum de fotografias, uma a uma as fotografias cheias de flores tão reais e tão imaginárias, enfeitando a vida em seus mais íntimos silêncios.

2 comentários:

  1. "E não conseguiu evitar o súbito pensamento de que a loucura, não, não era loucura, apenas vozes cochichando em seus ouvidos..."

    "Todas as horas partiram naquele instante, e então decidiu prosseguir pela avenida, sem nunca ter saído nem mesmo do seu quarto naquele dia. Apenas um rio transbordando de vozes,"

    "uma a uma as fotografias cheias de flores tão reais e tão imaginárias, enfeitando a vida em seus mais íntimos silêncios."

    Sem comentário! Perfeito. Tudo perfeito mas o final está arrebatador.

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  2. Quisera eu ter palavras para expressar o quão escreves tão bem! Quisera eu ter também outras palavras para expressar o que me fica na alma. Quisera eu ser além de uma sombra no anonimato!

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