quinta-feira, 19 de maio de 2011

Possíveis contos


Estava agora vasculhando alguns dos diversos inícios de contos que foram deixados para depois… Às vezes, o texto parece que vai fluir por completo mas ele ganha voz e decide parar por ali, até que num outro dia, não se sabe quando, ele retorna. Alguns nunca mais retornam, e ficam pelos cantos, independente, amuados, mas talvez nunca se tornem ruínas.
Selecionei alguns dos contos que estão ainda pela metade, alguns mais recentes, outros nem tanto. São possibilidades, talvez para amanhã, talvez. Escrever é assim. Às vezes, o texto vem em tumultos de imagens e palavras abundantes, e depois o lapidar; outras vezes é o garimpar árduo, muito árduo, ainda que o prazer, o prazer, o gozo que transborda.


POSSIBILIDADE UM

Aquela menina
- Menina não,
Aquela mulher, mas que ainda tinha em seus gestos algumas das atitudes da menina e, na memória, a saudade da avó que se despedia, enquanto repousava o corpo e os afetos dentro dos seus braços. Num gesto sereno e no vazio dos acenos ela contemplava aquela paisagem imponente, enquanto a avó parecia sentir que a vida era. Um vento suave, e já não era mais vento, mas o repouso no infinito. Aquela mulher, com os sentimentos misturados aos da criança, que era ela mesma, sentou-se na cama de lençol bem alvo e morno, e acariciou aquele rosto também bem morno, assim como morna estava a fronha, a última, e apertou-o, agora em seu colo repousado, as mãos que, em seguida, abriram aquela carta, a última, escrita e guardada para aquele momento.
Temerosa, mas numa saudade sem desespero algum, a menina, a menina não, a mulher,
a neta abriu aquela carta entregue em suas mãos depois de tudo, depois das flores enfeitando a viagem da avó, a carta dizendo tantas coisas, tantas coisas que lhe doíam no coração com uma emoção e uma dor no peito, bem no fundo do coração. Ela lia aquelas palavras de voz envelhecida desde o tempo em que a neta, a neta, a neta ainda nem era corpo, nem era ser, nem era sangue a lhe correr as veias que foram se enfraquecendo, bem fraquinhas e tudo parou lá dentro dela. Para sempre tudo parou dentro dela, da avó enfeitada de flores, tudo parou, entretanto,
continuou lá fora, dentro do coração da neta de carta nas mãos com as palavras que também ficaram eternizadas e tantas imagens pulando de um lado para outro, as palavras saltando de um espaço para outro, lacunas no peito daquela mulher, não, daquela criança diante do espelho, criança ainda depois dos anos e as palavras que nunca deixavam as páginas envelhecerem.
Aquela mulher,
- Mulher não,
Aquela menina, abraçava a avó dentro dos seus braços e dentro das recordações quando em seus vestidos enfeitados andava pela casa agora embalada em malas, caixas, depósitos abarrotados de coisas da avó e que agora são suas: todas as coisas são suas se até o amor era. A xícara de asas esbeltas, talheres e pratos de bolos cortados, a toalha cobrindo a mesa repleta de afetos.


POSSIBILIDADE DOIS

A menina atravessou a sala, tímida,
a menina atravessou a sala e sentou-se na cadeira do piano de cor negra que enfeitava o ambiente muito mais do que o seu desejo de estar ali, novamente exposta diante dos convidados dos pais, vaidosos pela filha que seria a pianista da família, vislumbrados: a menina sentada ao piano com um longo vestido vermelho diante dos aplausos na sala em plena reverência, cheia a sala mais famosa da cidade,
Um dia,
eles repetiam,
um dia, ela,
ela, ela, a menina com uma vontade de chorar se sentia completamente surda para não ouvir novamente aquelas palavras dos pais, e dentro do peito a sua vontade guardada em seus segredos.
Atordoada, ela tocou mais uma música, repetida tantas vezes, a música, as músicas, ainda tão pouco para os inúmeros concertos ovacionados pelos pais, encantados pela pianista que nunca a mãe havia conseguido ser e sublimava a sua fantasia num sorriso meio contente e meio áspero, meio feliz e meio insatisfeita com a menina que, bem antes daqueles dias, era ela mesma, ela, ela, a mãe. Agora, a filha na vitrine diante dos convidados enquanto os seus dedos muito mais pareciam adormecidos, ela adormecida, e a música muito mais tornava-se uma angústia dentro do seu coração bem distante dali, o seu desejo bem distante dali, os seus sonhos quase desaparecidos entre as teclas brancas e pretas do piano bem envernizado detrás das imaginárias cortinas de veludo vermelho e adornada pelo dourado que se ausentava da menina cheia de outros segredos que ainda nem sabia ao certo quando, um dia.

3 comentários:

  1. Ismar, você escreve bem demais!!! Adorei!!! Tenho a impressão de que conheço aquela menina, não, aquela mulher, não, aquela neta, não, aquela amiga, não, aquele amor...Sim, aquele amor, único, tão grande que nunca coube dentro do peito...nem da carta...

    ResponderExcluir
  2. Embora o comentário esteja em "anônimo", claro que pelo teor e pela escrita não é anônimo para mim. Pois é, tempos atrás comecei a escrever esse conto e de repente parei... sentia necessidade de ouvir mais as palavras daquela menina, daquela menina não, daquela mulher... Ela tão intensa, e o conteúdo da carta, muito mais que uma carta. Mas irei dar continuidade ao conto sim...

    ResponderExcluir
  3. Pois mesmo no "ainda inacabado" a intensidade da escrita nas Três Possibilidades já é revelada de maneira que seduz. E que sedução!
    ...
    ...
    ...

    ResponderExcluir