quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mergulho íntimo


Lá no alto, na janela da sala enfeitada de lustres dourados e repletos de lâmpadas que de cá de baixo nem dava para contar quantos eram, ela repousava o seu rosto envelhecido e melancólico, contrastando-se com os requintados móveis que compunham o ambiente do mais elegante prédio da rua. Ela, misteriosa, e o transparecer da decadência de um tempo que lhe doía no peito uma fragilidade que faz doer além.

Ela, em seus cabelos enfraquecidos pelas tinturas que, durante anos, apagavam parte do tempo, prostrada na janela, sem nem mais um resto de entusiasmo em pentear as suas mechas antes volumosas, as pernas torneadas e ela a desfilar nos salões mais famosos da cidade. Ela, sempre cheia de expressões e gestos entusiastas, eufórica, e agora a impotência intensificada pelas recordações dos exuberantes vestidos em decotes que realçavam os seus seios rijos, e a pele nunca imaginada em vigor perdido. Era sempre o adiar das horas de que nada é eterno se os passos sobre a terra. Um momento único, aquele, como outros momentos que repetiam o silêncio de um tempo que nunca mais outra vez. Ela estática, movimentando o tempo em suas recordações que se embaralhavam em saudades.

Num breve instante imprevisível daquele final de tarde, apenas a janela escancarada, apenas o lustre realçando todo o esplendor da sala, apenas mais um instante, e muito mais que o mundo inteiro nas recordações: o mundo íntimo, mergulhado, até o fim.

sábado, 3 de setembro de 2011

"As horas, o silêncio e a bagagem"


Persistia naquela música, repetida enquanto a madrugada penetrava cada vez mais em seus silêncios, e ele em suas introspecções íntimas, dentro das horas do tempo psicológico, muito mais. E então, o sono musicalizado por uma trilha sonora marcava a noite, e, tantas vezes, marcava paisagens das manhãs que se emendavam com as tardes, num elo fortalecido nas margens da sua memória: águas tumultuadas que correm num rio, águas de correntes entrecruzadas dentro do ser, e, mesmo na serenidade da sua travessia sobre o leito, era aquela sensação do inexplicável, a busca do desconhecido, resgatar dentro de um imenso labirinto interior as imagens nunca completas, imagens outras como fotografias rasgadas, a cor desgastada pelo tempo, e palavras que não eram pronunciadas, amassadas como papéis inúteis, vencidos pelo tempo, tudo se evaporando pelo ar, apenas sombras, apenas o evasivo dos seus instantes.

Mais uma vez, repetiu aquela música que lhe doía na imensidão das horas que ficaram tatuadas em sua memória, e tatuada em sua pele, não apenas como uma nódoa, mas como uma eternidade que enchia de silêncios a bagagem arrumada dentro do seu quarto, dentro da sua sala, dentro do seu peito, impregnada nas paredes com tantas flores brotadas na veemente evocação de cobrir as lacunas que ansiavam ser preenchidas. Pouco a pouco a vida tornara assim, e revisitava um tempo, desde o começo: ele parado nos recantos silenciosos, e o olhar nostálgico.

Ouvia os ecos daquelas horas estáticas, os gritos, seus, gritos, gritos, e a sensação de novamente o rio de águas bem profundas, e ele mergulhando na evocação daquilo que mais parecia a utópica realidade de si mesmo. Repetiu a sequência musical, repetiu o filme, repetiu os dias, repetiu as fugas. Repetiu-se. Inquieto, ao final dos mergulhos interiores no fundo das horas impressas no peito, decidiu romper limites. Abriu a porta, percorreu as ruas, aos movimentos da trilha sonora do seu filme preferido, e foi estender o que o historiador Chartier já havia dito, “a pedra, a madeira, o tecido, o pergaminho e o papel forneceram os suportes nos quais podia ser inscrita a memória dos tempos e dos homens”. Sobre a sua pele, fez percorrer o grafite diante do olhar interior eternizando o tempo: lapidou em si mesmo as suas próprias horas, o seu silêncio, a sua bagagem. Tudo ao som da mesma música, a mesma trilha sonora, a mesma Morning Passages.
Os acordes pontuavam cada um dos seus instantes, o olhar revelando a alma, e na imagem imprimida no rio era o seu próprio reflexo no balançar das águas, turvas.