quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mergulho íntimo


Lá no alto, na janela da sala enfeitada de lustres dourados e repletos de lâmpadas que de cá de baixo nem dava para contar quantos eram, ela repousava o seu rosto envelhecido e melancólico, contrastando-se com os requintados móveis que compunham o ambiente do mais elegante prédio da rua. Ela, misteriosa, e o transparecer da decadência de um tempo que lhe doía no peito uma fragilidade que faz doer além.

Ela, em seus cabelos enfraquecidos pelas tinturas que, durante anos, apagavam parte do tempo, prostrada na janela, sem nem mais um resto de entusiasmo em pentear as suas mechas antes volumosas, as pernas torneadas e ela a desfilar nos salões mais famosos da cidade. Ela, sempre cheia de expressões e gestos entusiastas, eufórica, e agora a impotência intensificada pelas recordações dos exuberantes vestidos em decotes que realçavam os seus seios rijos, e a pele nunca imaginada em vigor perdido. Era sempre o adiar das horas de que nada é eterno se os passos sobre a terra. Um momento único, aquele, como outros momentos que repetiam o silêncio de um tempo que nunca mais outra vez. Ela estática, movimentando o tempo em suas recordações que se embaralhavam em saudades.

Num breve instante imprevisível daquele final de tarde, apenas a janela escancarada, apenas o lustre realçando todo o esplendor da sala, apenas mais um instante, e muito mais que o mundo inteiro nas recordações: o mundo íntimo, mergulhado, até o fim.

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