domingo, 30 de dezembro de 2012

A ponte, apesar do rio


Estive pensando a respeito do que foi dito ontem na beira do rio. Novamente, o rio. O rio correndo calmo entre as margens das cidades com semelhanças e oposições, assim como podem ser as pessoas, uma coisa e outra ao mesmo tempo, e uma das coisas predomina e define aquilo que seria unidade. Por terem semelhanças, podem ser entrelaçadas numa espécie de gozo que se prolonga e se abranda em alguma superfície sobre ondas calmas; e por serem opostas a unidade se desfaz em camadas sobre uma rocha sem forma determinada.

- Mas, e a ponte? A ponte entre as duas cidades e pessoas?

Não vê que a ponte surge impetuosa e simples para interligar o que resiste ao tempo, exatamente pelas suas distâncias? Não vê que a ponte surge imponente e simples sobre o rio e assim constrói uma unicidade? Não vê que este momento foi devido à ponte, apesar do rio?

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Minutos e segundos se espremendo


Na manhã seguinte percebera que as horas do dia anterior não existiram,
e começou a admitir que nada havia sido:
os presentes embrulhados em papéis elegantes já não estavam espalhados sobre os móveis,
e do intenso prazer que ontem nem palavras existiam para defini-lo havia restado apenas os rastros.

Foi então rever o tempo.

Minutos e segundos passeando pelas salas e corredores,
tic-tac tic-tac
Extrapolavam-se. Vorazes.
Minutos e segundos se espremendo dentro das horas,
muito mais do que elas conseguiam suportar.
Minutos e segundos extrapolavam-se,
inquietantes,
dentro das horas que nem existiram.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Palavra é trigo



Palavras vãs
Palavras vão
Palavras (in)sã(nas)

Palavra (des)faz
(des)ama
(des)dita

Palavra (ben)dita
Palavra é trigo
Bendito é o pão.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O efêmero se dissipa




E quando abriu o livro guardado há anos na estante, sentiu que lá dentro não havia apenas palavras que transcreviam uma longa e comovente história. Havia mais que frases navegando em cada página, muitas páginas, mas, aparentemente, insuficientes para a amplidão das imagens e para os pensamentos que se espremiam entre si, dentro de abrigos ou sem proteção alguma. Das frestas se espalhavam o excesso de pensamentos sem filtro algum e tantos deles se perdiam, se apagavam, desapareciam em meio a algum lugar imenso, incontornável, embalado por uma musicalidade não apenas na alma! Não apenas.

Ao abrir o livro, logo sentiu um cheiro estranho, estranho demais, embora fosse um cheiro reconhecido em algum lugar da memória. Um cheiro que parecia ter saído de um frasco de perfume agradável, o frasco vazio há muito tempo e o cheiro misturado com a poeira acumulada em cada segundo das horas. Enquanto os pensamentos e os sentimentos se acomodavam em qualquer canto mais cômodo do ser, o livro permaneceu aberto em uma de suas frases mais belas, e só depois começou a ser folheado, frases relidas, algumas aleatórias e outras quase decoradas. Parágrafos inteiros como se fossem suas próprias sensações. Em cada frase, sentia um algo, algo sem nome e quase capaz de captar a perfeição do que se chamaria de real.

E o que é real? Sempre gostava de se perguntar o que era real. E, embora parecesse ser tantas coisas indefinidas, sabia sim o que era e o que apenas se assemelhava a sê-lo. Sabia o que era real dentro de si mesmo, o que era real dentro da ficção, dentro do imaginário, dentro do invisível. Era ali que estava a essência desejada. Fora isso, era pouco, era vento, era efêmero. E, mesmo sabendo se tratar do óbvio, repetiu confortavelmente: o efêmero se dissipa. Neste momento, quando folheava uma das últimas páginas do livro, algo lhe tocou, sereno, inexplicável, e num instante de êxtase leu a última frase grifada, fechou o livro, e repetiu: o efêmero se dissipa.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A suavidade e a cor acinzentada


Hoje o dia amanheceu suave. A suavidade e a cor acinzentada reveladas ao abrir a janela prenunciavam que o dia seria divergente: nada é definitivo se há qualquer espécie de tempo, e nada se esgota se não é o fim concreto e absoluto das coisas. Ou tudo é definitivo e se esgota, ainda que o tempo previsível e o concreto em seus significados plurais. Os minutos e os segundos podem ser indecifráveis, mistérios que tornam bem curto ou tão longo o tempo quase encolhido dentro das horas aleatoriamente imprevistas. E o previsível depois.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O cheiro espalhando as palavras


Na pele
O cheiro espalhando as palavras ficaram como veludo,
embalando emoções
elas ficaram.

Não apenas no ontem
as palavras
mergulhadas
no corpo,
completas.

Não foram surdas
Não foram mudas
Não foram passagens, apenas
Foram também,
e ainda depois.

sábado, 1 de setembro de 2012

No fim da avenida era o cheiro


Desceu a avenida inteira na certeza de que
Na certeza
A avenida inteira.

E nas esquinas os semáforos desaceleravam o tempo
enquanto a oscilante certeza inventava que o fim da avenida
era sem mais semáforo algum:

Era o perfume.

Tudo ao redor era o cheiro do perfume tocando antecipadamente a alma
e no fim da avenida era o cheiro eternizando um tempo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A noite ilumina o caminho até a montanha?


“Para que luzes acesas quando a noite ilumina o caminho?”

(A noite ilumina o caminho, mas não até a montanha, pensou, sem nada dizer, e indagou: "A noite ilumina o caminho até a montanha?")

Desconfortável com o silêncio, respondeu o que havia apenas pensado, quando conversavam lá fora e novamente divagavam a respeito da montanha avistada ao longe. Embora a noite avançada e silenciosa (muito mais se não fossem as vozes e os ruídos vislumbrados na estrada), decidiram ir até a montanha, enxergar o que era apenas imaginado, se nunca mais ninguém havia alcançado o cume e o longo caminho agora coberto pela relva.

A noite brilhava surpreendente, e muito mais brilhava pelo entusiasmo de cada um. A sombra detrás da montanha, e, quando sombra nenhuma, havia um lago. E se não fosse um lago, era a doce aventura de trazer de lá muito mais que indagações.

E assim, pouco a pouco a noite avançava, não apenas em diálogos sobre a montanha, não apenas o invisível das coisas. Sabiam, sem qualquer pretensão de criar atalhos, sabiam que a noite avançaria sem que algum passo fosse dado em direção à montanha, não naquele instante. E, enquanto a luz da noite anunciava o seu repousar, as palavras cantarolavam não apenas aventuras:

“Amanhã, iremos à montanha! Não é tão longe assim... Não é tão no alto assim... E se for, só quando lá estivermos é que saberemos. Não será tempo perdido, mas seria.”

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A sombra materializada


Percorreram o longo caminho, deixando a montanha e a sua sombra para trás. Depois de alguns breves silêncios, divertiam-se com as poucas sombras que ainda existiam naquela hora precisa. Sombras aquelas que se tornaram criatividades para fazer significar aquele instante, não apenas o instante agora lá fora.

“Se você visse apenas a sombra, e não aquilo que a originou, como você descreveria esta sombra?” Perguntou, e repetiu a mesma pergunta, mais pausadamente, na busca de ter certeza de que as suas palavras foram entendidas.

Insinuaram um sorriso, e uma pausa surgiu do inesperado, enquanto a resposta era construída sem qualquer pretensão de lucidez.

Ele respondeu pausadamente, procurando as palavras mais simples para a resposta que não pretendia ser complexa, mas carregada de sentido sem sombra. E se surgisse alguma, que não fosse uma sombra abstrata, nem imaginária. Assim, misturou pensamentos como sempre acontecia em momentos de satisfações plenas ou pretendidas.

“Entendeu?” Perguntou logo em seguida, com o mesmo sorriso insinuados de antes, agora mais ruborizado, o sorriso contido nos cantos da boca. Os sorrisos ruborizados nos cantos das bocas, e uma nuvem imensa atravessou sobre a pequena sombra, desfazendo-a sobre a terra. Mas ela, a sombra já internalizada, materializada, já estava guardada em verbo para um dia ser memória.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

"O que há detrás daquela montanha?"


“O que há detrás daquela montanha?” Perguntou-lhe o desconhecido, que olhava na mesma direção que a sua.

“Uma sombra”, respondeu-lhe, enquanto virava o seu rosto e viu de quem era aquela voz grave e calma, expressão leve, estrangeira, não apenas a montanha desconhecida e a sombra invisível e imaginada em sua forma e em seus sentidos.

Ainda olhando a para a montanha, indagou:

“Uma sombra? Apenas uma sombra?”

“Não apenas uma sombra. Numa sombra nunca é “apenas”, se não alcançamos o outro lado das coisas... É ela, e não a montanha, que muda de lugar; e é ela, e não a montanha, que desenha sem cor o que seria o real.”

O estrangeiro, que não mais era estranho, parou, olhou ainda mais atentamente a montanha, e imaginou a sombra, mas não apenas ela. Imaginou estar diante da própria sombra, e considerou que uma sombra não é a cópia perfeita do ser ou do objeto em si. Viu, então, a longa estrada à sua frente, desconhecida, e imaginou tantas coisas que podiam estar lá.

“Conhece aquele caminho?”

“Eu vim de lá. É um longo caminho, bem longo. Nunca caminhei por uma estrada mais longa. É um caminho cheio de sombras desenhando a sua beleza às vezes misteriosa. Lá, todas as coisas que se refletem em sombras são calmas, bem calmas!”

“E a sombra da montanha?”

“Não sei. Nunca estive lá! Dela, prefiro apenas aquilo que posso imaginar.”

O estrangeiro, que já não era exatamente, refletiu, admirando a resposta, e concluiu o diálogo, silenciosamente, enquanto percorriam pela longa estrada, sem sombra alguma.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Na janela da sala enfeitada


Lá no alto, na janela da sala enfeitada de lustres dourados e repletos de lâmpadas que de cá de baixo nem dava para contar quantas eram, ela repousava o seu rosto envelhecido e melancólico, contrastando-se com os requintados móveis que compunham o ambiente do mais elegante prédio da rua. Ela, misteriosa, e o transparecer das alterações de um tempo que lhe doía no peito não apenas as emoções.

Ela, em seus cabelos enfraquecidos pelas tinturas que, durante anos, apagavam parte do tempo, ela prostrada na janela, sem nem mais um resto de entusiasmo para pentear as suas mechas antes volumosas, as suas pernas antes tão torneadas e ela a desfilar nos famosos salões da cidade. Ela, sempre cheia de expressões e gestos entusiastas, eufórica, e agora uma fragilidade intensificada pelas recordações dos exuberantes vestidos em decotes que realçavam os seus seios rijos e a pele nunca antes imaginada sem o vigor perdido.

Era sempre o adiar das horas de quando sentiria que os passos sobre a terra se transformariam em sombras daquilo que havia se declinado, voraz.

sábado, 28 de julho de 2012

e viu que tudo era horizonte


Quando os dias se foram e ela percebeu que no palácio nada mais haveria, decidiu que era hora de limpar todos os móveis, retirar toda a poeira acumulada sobre eles e arrumar os objetos espalhados na euforia dos últimos dias. Decidiu com uma tranquilidade encontrada no meio das expectativas, quase nunca abandonadas, e outras reencontradas no tumulto dos pensamentos resgatados de seus paraísos.

- Não se abandona uma expectativa no meio do caminho. Ela repetia em voz alta, mesmo que apenas para si mesma. Repetia, sempre que qualquer coisa dentro dela se mostrava como um prenúncio de que era hora de parar, desistir, interromper.

Mais tarde daquele dia, ela repetiu que não se abandona uma expectativa no meio do caminho, mas, agora, em um tom fragilizado, ela surpreendida por uma voz que insinuava se confundir com outras vozes, as impávidas, múltiplas. Uma voz pretendendo reformular a sua frase tão repetida.

Mesmo com alguma inquietação, ela prosseguiu nos espaços imensos de seus palácios. Os passos contidos, fragilizados. Ela, entretanto, sem perder a força que alicerçava o passo seguinte, os passos seguintes, sem perder a voz que lhe falava da existência de outros horizontes, outros horizontes, outros, mesmo quando nem tantos.

Na sequência das horas, ela abriu a imensa porta do palácio, aquele lugar que ela chamava palácio, olhou ao redor, e viu.

Tudo era horizonte.


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Não apenas na paisagem lá fora


Não era apenas um vento, se lá fora a relva seca era desprendida da terra e, como chuva frente ao vento, rodopiava no ar: a terra rodopiando, o mundo rodopiado e silencioso dentro da casa de onde o olhar expressava um vazio. E por detrás do vazio, o que havia era uma paisagem cheia de fragmentos cálidos e frígidos do nada, absolutamente nada, um universo de sentimentos insinuantes.

Nada lá detrás das vidraças quase opacas pelo imperioso inverno, e tudo, absolutamente tudo: afinal, o que é o nada, se dele floresce introspectivas sensações que sussurram e se revelam expressivas no olhar?

Aquele cenário era um deserto. Um deserto não apenas na paisagem lá fora. Eram desertos: de um poço, abundava água talvez um dia cristalina, e depois era umidade, poeira, amarelidão da ventania, da tempestade, a terra estagnada, a vida estagnada, o pensamento, o desejo, as lembranças, tudo estagnado, nada mais dentro do poço, nada mais sobre a mesa, copos vazios.

O vazio não apenas nos copos sobre a mesa. E o vento. A ventania gritando lá fora, e lá dentro pulsando silenciosamente.


(Escrito a partir do filme "O Cavalo de Turim")

segunda-feira, 18 de junho de 2012

As flores nunca existiram, pensou.



Todas as horas partiram no mesmo instante em que percebera que não havia flores alguma, as flores que enfeitavam as fotografias coloridas e as que eram belas por serem em preto e branco. As horas deslizavam como águas sobre um rio que transbordava suavemente em seu leito, suavemente as flores deixaram de existir, até que o seu retorno imprevisível na memória.

Nos jardins, um realce das cores enfeitava a cidade. E na casa, sobre a mesa e nos cantos da sala, o colorido se espalhava pelos ramos verdes, bem verdes os ramos de repente secos e sem colorido algum nos vasos sobre a mesa e nos cantos da sala. Muito menos. Muito menos nas avenidas, sem os jardins que enfeitavam a cidade nas fotografias diante dos seus olhos encantados com o que era, e muito mais com o que seria. Foi quando percebera que todas as horas partiam.

As horas partiram, bruscamente, como se nunca fotografia alguma. Tudo, talvez, sempre fantasia, como se fossem lentes de imagens esquizofrênicas, imaginárias as imagens que enfeitavam a casa de salas amplas e corredores imensos, largos, estreito outros corredores quase se espremendo entre as salas que não mais existiam.

“As flores nunca existiram”, pensou. E não conseguiu evitar o súbito pensamento de que a loucura, “Não, não era loucura”, não, não era a loucura, eram apenas vozes cochichando em seus ouvidos, dizendo que nunca, nunca houvera flores alguma. “Nem as coloridas?” Nenhuma resposta.

Todas as horas partiram. Então, decidiu prosseguir pela avenida, sem nem mesmo saber se havia saído do seu quarto: apenas um rio transbordando vozes, todas as vozes se alimentando com um deleite encontrado num álbum de fotografias. Uma a uma as fotografias cheias de flores tão reais e imaginárias, enfeitando a vida e os silêncios íntimos.

sábado, 26 de maio de 2012

Fragmentos Noturnos (Remexendo escritos antigos...)


Novamente perdeu o sono. Que bom que novamente perdeu o sono! Pensou. Assim, enquanto ouvia aquele inevitável “canto de grilo”, vivenciava devaneios e realizações. Ao seu redor, um infinito campo de imaginações às vezes banais e outras vezes surpreendentes. Que bom que novamente perdeu o sono! (Pensou). O silêncio suave, o campo limpo para a ceifa, os textos em diversas faces, os rabiscos, o folhear as páginas visivelmente presentes e as outras; as duas ou três vezes em que foi à cozinha, o simplesmente olhar o teto, as palavras tantas e tumultuadas em alguns momentos. Os diálogos. A Tv desligada. O som desligado. Quase terminou de assistir ao “Dead Poets Society” pela terceira ou quarta vez. Creio que parou pelo impulso de escrever alguma coisa, quase qualquer coisa, mas era a essência daquele instante o que queria gravar em papéis. Ouviu P.D, Ombra mai fu, Handel, E. Schwarkope, mais cedo, horas antes, e o encarte ainda aberto no chão marca a canção preferida. Vontade de ouvi-la novamente naquele instante que o silêncio quase invade em demasia.
Tão bom escrever estas palavras! Pensou. Pensou. Escrever o que sinto, o que me vem à cabeça. Escrever sem ordem alguma. Sem qualquer preocupação. Sem compromisso. Excelente filme Sociedade dos Poetas Mortos. Rainer Maria Rilke. Fantástico o Cartas a um Jovem Poeta. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Pensou um pouco sobre o que ficou das várias vezes em que o leu. William Faulkner. Nada de aspas. Nem itálico.
Tão bom ter perdido novamente o sono! O dormir poda demais o elaborar pensamentos. E o ver o tempo passar. Eu quero ver o tempo passar. Escreveu e repetiu a mesma frase com letras maiores e um ponto final. O pai, a mãe, os irmãos, a avó e mais alguns poucos nomes escritos abaixo da frase Profundos conhecedores do amor. Um traço de ponta a ponta da folha com coisas riscadas na parte de cima, separando o que passou a escrever a partir dali. O prazer da união. Os amigos. Os grandes diálogos. Z.S era um poço de conhecimento. É a questão do saber. Baudelaire, Artaud, Woolf, Lispector, Proust, Tchekhov, Kafka, tantas metamorfoses. E Malraux? E? O mundo é um universo de palavra que se encontram ao acaso e se acasalam, mas nem sempre! Assim como nem sempre ao acaso. Às vezes precisamos busca-las, cavá-las dentro de um tesouro lacrado. Preciso terminar a carta que comecei para X. Às vezes não termino cartas. Por que será que nem sempre consigo escrever cartas, quando preciso tanto, e nem sempre envio cartas que terminam ofuscadas dentro de gavetas? Cartas? Desenhou lentamente várias interrogações. Interessante reler as repentinas e questionadoras “Correspondências” minhas com vice-versa. Dariam um livro com um “Prefácio Interessantíssimo”. Uma sintonia muito grande no refletir. O que é perfeito num mundo tão contraditório?
Ouço agudos e contentes gritos percorrendo os corredores. Os bilhetes extravagantes. Relembro tantas conversas. Íntimas ou não. Há quem permanece para sempre, pessoas que atraem pela essência. E também há aquelas que permanecem pelo simples apesar do pouco. As pessoas e o prazer, mas, por outro lado, a vida, o tempo, so far away... Deparo-me com imagens. Clips. Sonhos. Imagens. Kurosawa. Van Gogh. O espaço. A simbologia. G. Bachelard: A linguagem sonha. Gavetas e armários, a casa e o sótão. O que guardamos nesses espaços? Pensou mais demoradamente, e então foi perceptível o seu olhar agora denso. Estranhamente, uma densidade e algo suave, leve. A densidade e o algo suave, leve. Foi até às gavetas, cartas guardadas nas gavetas. Então, começou a aquietar-se, e no olhar a revelação de um sono que se aprofundava em lembranças melódicas de grilos.
Os grilos. Deixem os grilos cantar. Embalar o sono. Excitá-lo. Estou numa posição incômoda. Mas acomodado. Interessante a entrevista! Seus textos impecáveis. Só não gostei de uma coisa. Também não sei se ouvi bem. Tomara que não. Você tem certeza de que foi exatamente isso o que você ouviu? Tem certeza? Diga. Diga se tem certeza, mas apenas se tiver certeza. Acomode os devaneios em algum lugar. Coloque-os logo ali. Ecos de uma imposição de um dia de verão e que não tem nada a ver com a entrevista. Uma coisa ligou à outra, e ele foi parar no tempo dos primeiros escritos. A coação provocou dúvida no que era certeza. Absoluta. A verdade passou a ser mentira: escreveu na folha seguinte. Entretenimento pra disfarçar. “S. Santos vem aí”. O pensamento humano atravessa fronteiras. Quase todas. Não faltam palavras.
Hoje à tarde. Que encontro mais casual! Não temos liberdades confidenciais, além de faz um certo tempo que nos vimos, e, de repente, ela foi descarregando todos os seus problemas. Quanta coisa! Acho que estava carente de qualquer pessoa que a ouvisse. “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.” Fui bem atento. Das próprias carências cada um é que conhece e sente. “Não andeis ansiosos de coisa alguma”. Esta foi uma frase que ele muito ouviu como uma criança alertada a repetir a mesma letra, a mesma sílaba, a mesma frase até aprender. Ele também pensou algumas coisas engraçadas, enquanto virava a página para repetir outra frase, e sorriu quase uma gargalhada. Já não havia mais a manifestação de sono em seus olhos. Levantou-se, já sem sorriso algum, e foi direto à música já escolhida.
Algumas palavras suas e outras, alguns versos de poesia e de música. Agora, tudo acontecendo enquanto Beethoven. O ritmo da fruição. As sonatas. A Pathétique. R. B. Como ele consegue dizer tantas coisas?! Deixou em branco a sua interrogação e pensou no ato da escrita. No texto. Em seu prazer. Em seu prazer enquanto leitor. “Escrever no prazer me assegura - a mim escritor - o prazer do meu leitor? De modo algum”. A Flauta Mágica. Mozart. A Muda. A. Cristina Cesar. Ambas falam. Grifou algumas passagens no texto e deixou de lado o caderno e a caneta, juntamente com alguns livros ali ao lado.
Uma sensação de fome, mas de sono não. Pensou: Bem que a amiga M deve estar acordada, também: montando empresas e abrindo novas lojas. Seu imaginário fértil, saudável, e ela sempre a mulher que será bem sucedida todos os dias dos dias seguintes. A utopia e os sonhos embalam felicidades que nem existem concretamente, mas que são eternas em seus instantes que se renovam e se desdobram em realidade possíveis. Amanhã! Amanhã. Pensou em estar mais leve. Agora, uma fatia de bolo de laranja, bolo de banana, chá de capim santo, erva cidreira, qualquer coisa de sabor muito agradável. Lembrou-se de certas crônicas que N esboça mentalmente e sorriu. Tão bons argumentos! “Comédia Humana”. Achou muita graça, agora, às três ou três e meia da manhã. Quatro, talvez. E por falar em graça... Os mistérios de Írma Vap. Pensou em S e os inusitados preparativos para assistir Jessye Norman no Teatro. Lembra-se? “Of Course! I’ll never forget”.
Seus pensamentos fragmentados naquela longa noite, e incessantes, e ele se encolhia de maneira que parecia dor, e parecia prazer, e parecia simplesmente o acaso de uma noite quase sem fim: ficaria horas escrevendo estes pensamentos fragmentados. Interligados. Mas não gosto de dormir quando o dia começa a amanhacer. Pegou novamente o papel e escreveu essas coisas. Você não se importa? Você quem, se ele estava ali sozinho? Quem poderia ser esse outro? Quem esse outro tão íntimo? Tentarei dormir. Continuou. Só mais uma coisa. Pausa. Interrompeu e não disse nada, a não ser justificar-se: Depois pensarei sobre isso. A Estética. A da Recepção. O leitor e a sua liberdade. Juntos, o autor, a obra e o leitor. O ler as metáforas. A Filosofia da Composição, não apenas O corvo. Os ecos dos questionamentos. O obra aberta. “O discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos, e para cada um de nós é uma contínua descoberta do mundo.” A intersemiose. Uma arte toma emprestada de outra arte características de outra arte. Aspas ou parênteses. Leu algumas coisas pela metade, tudo pela metade.
A vontade de escrever um pouco mais. A intertextualidade. Julia Kristeva: O texto é absorção e transformação de outro texto. Tanto tempo que li isto pela primeira vez! Nada é original. Tudo é original. O momento histórico é responsável pela leitura, que é sempre uma releitura do velho. Mas o prazer e a emoção mudam. Um novo sabor. Alguém já disse que a obra literária é inacabada enquanto história. Eu não terminaria nunca este texto, em fragmentos. Apagou a luz.
(...)
Logo amanhecerá. Quem sabe amanhã eu perca novamente o sono! (Tomara!). (Não anotou).

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Mas nem sempre previsível


Não apenas um cansaço, mas uma inquietação.

“Que entendes se indago: felicidade nostálgica e previsível?”

Pensou em adiar, apenas no ímpeto: “hoje não, só amanhã”, e se sentiu navegando num poema de Pessoa. Mas logo entendeu que deveria ir sim (mesmo sem saber ao certo o que responder a respeito da felicidade nostálgica e previsível). Retornaria, ao Tejo e ao lugar diante dele, o rio, o começo, o início daquilo ainda sem nome determinado. “Daquilo” não, soaria como coisa qualquer, e nunca, nunca coisa qualquer! E foi nesse impasse que o tempo tornou-se mais uma vez inadiável: “O tempo das coisas é às vezes é inadiável”, pensou, querendo também entender a sua lógica. O tempo, o espaço, a imagem azul movimentando-se tão calmamente, o azul a combinar tão bem com o quadro que enfeitava não apenas a parede.

Felicidade nostálgica e previsível. Que felicidade é essa? Uma imagem que pulava de um lugar para outro e de uma palavra para outra e de um sentimento para outro e pulava... Uma busca de um sentido capaz de explicar o transitar entre a felicidade e a nostalgia. Olhou o quadro na parede, olhou a janela pintada no quadro, olhou para o mundo lá fora, e mergulhou dentro de si mesmo, contemplando a singularidade daquele instante que se repetia.

Ali (Ali? Ali, onde, se tudo ao mesmo tempo, ao mesmo, ao mesmo...), encontrou a resposta, numa sonoridade calma e num lamento suave, num prazer e numa dorzinha silenciosos, e vislumbrou a resposta que procurava: estampada nas águas do rio, tão expressivo rio, exposta no quadro na parede, pulsando ao seu lado e dentro de si mesmo. Era uma felicidade nostálgica, nem sempre previsível.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Mas não foi um silêncio incômodo


Surgiu de lá de dentro com mais uma garrafa de vinho e na outra mão um livro retirado da estante enfeitada com a sua coleção de cristais. Pássaros e peixes, e outros objetos expressivos e guardados como réplicas de uma fortaleza, e as casas, casas e castelos: “esses sãos os meus castelos, e esse é o meu preferido”, já havia dito antes, num entusiasmo entre a sua impecável coleção e o seu sorriso e olhar de quem já se conhecem como se fosse desde a infância, embora não iniciada hoje, não nem ontem, nem exatamente há tanto tempo atrás.

Mas, o que importa o tempo agora, se ele se adequa ao instante do contentamento e somos a ele adequados no impulso do que sente e determina o interior? O que é o tempo se ele parece inexistente, por um instante, quando o que mais resiste é a certeza absoluta de um sentimento que faz a felicidade vir a ser de tanto anos atrás, se a intimidade torna-se uma genuína comprovação de que o eterno é o que, de fato, se confia? Não uma confiança inventada nas noites vazias e efêmeras, depois do que se chamou aleatoriamente Prazer. Não uma confiança inventada numa noite qualquer, movida pelo prazer, e o destino nas mãos da eufórica fragilidade de si mesmo, vazio.

Serviu o vinho. Após um gole, saboreado por cada um, perguntou se poderia ler um poema de Poe. “Sim!” Entendera bem a sua pergunta e sentira bem o seu sorriso de felicidade que parecia preencher toda a sala que nem precisava de conforto tamanho. “Sim, pode ler”, respondeu, ao ser questionado se podia ler em sua própria língua. O vinho. O vinho dialogava com a leitura numa intimidade muito maior do que a compreensão exata de todas as palavras ouvidas. O contentamento vivenciava o que sabia estar ali muito mais que a densidade, no íntimo do peito, do prazer, da entrega, ainda que o tempo breve.

“Desde el tiempo de mi infancia no he sido
Como otros eran, no he visto
Como otros veían, no pude traer
Mis pasiones de una simple primavera.
De la misma fuente no he tomado
Mi pesar, no podría despertar
Mi corazón al júbilo con el mismo tono;
Y todo lo que amé, yo lo amé solo.
Entonces -en mi infancia- en el alba
De la vida más tempestuosa, se sacó
De cada profundidad de lo bueno y lo malo
El misterio que todavía me ata.
[...].”

E mais uma vez. Pausadamente. No desejo ansioso de que cada palavra fosse compreendida, e foram, muito mais, depois de clarificadas com tanto entusiasmo, até que a última taça da noite, até que a compreensão das lacunas, até que o surgimento coisas que, às vezes, parecem outras. E, por fim, nem um e nem outro se preocupou em preencher o silêncio, a sensação de que um vento parece tomar coisas que são nossas, um longo voo. E o silêncio, mas não um silêncio incômodo. Não um silêncio incômodo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Tão possíveis que...


E depois daquele longo contemplar o rio, depois do prazer, aquela imagem se confundia com o mar, ainda mais infinito. A noite se prolongou depois do cais, e a travessia, ao retornar, oscilava calmamente no balançar das ondas brandas. Depois veio um quase silêncio. Um tempo para as palavras: “às vezes, as palavras precisam de tempo, necessitam de um repouso”. Sorriu, enquanto as palavras metamorfoseavam em sensações, sem deixarem de ser palavras, outras.

Depois de um tempo, admitiu não se lembrar de quem havia dito que, às vezes, as palavras também precisam de um tempo, mas que compreendia que tudo já deve ter sido dito, de outro jeito, de outra maneira, e o silêncio novamente se reaproximou, disfarçado como se não fossem palavras.

“Maintenant que nous sommes seuls, et que nul ici ne nous entend...” Escreveu no papel com aquela expressiva letra de forma, imagem elegante das palavras como se fossem quadros espalhados pelo desejo e, ao mostrar-lhe o escrito, perguntou-lhe o que tais palavras poderiam lhe dizer: “Nada”, respondeu, mas, certamente, bem mais do que apenas simples respostas, sabia haver ali mais do que supôs no imediato do instante. Num trocar de sorrisos e de sintonias, pegou o papel, de volta, e o traduziu, bem de perto. Repetiu todas as palavras, cheias de qualquer coisa erotizada.

Num estado de sincronia, viram novamente o rio, ainda mais azul, brilhando ainda mais pelo contentamento interior e repetiu a tradução de Cervantes, enquanto lacunas eram preenchidas: “O objeto do desejo é diferente do erotismo. Foi umas das coisas que fiquei pensando quando li Bataille. E ficamos ali, também entre essas conversas, e que talvez se encaixassem em sua “Maintenant que nous sommes seuls...”.

O rio já estava escurecido, entretanto, iluminado pelas luzes, o clarão da lua: e os pensamentos que podem iluminar lá fora e cá dentro dos espaços físicos e interiores de cada um: “Maintenant que nous sommes seuls...”

sábado, 10 de março de 2012

Como se não fosse ao acaso


Andou meio por ali como se não fosse ao acaso e interrompeu a caminhada quando se viu perplexo diante de um instante chamado, provisoriamente, Coisa do Destino. A fotografia congelada, embora pulsando desde o começo até um tempo posterior, meio sem hora, sem relógio, sem. Até que a imagem foi configurando-se em palavras, gargalhadas inevitáveis, um contentamento contornado pela noite que chegava e, no outdoor, sim: no outdoor a coincidência marcada nas palavras e imagem que expressavam algo semelhante àquele instante, contornado por uma sensação inevitável. Pouco a pouco, o que, por falta de nome havia sido chamado de Coisa do Destino, encontrou tantos outros nomes: pois os instantes se multiplicavam em outros até que, por fim, nome algum, nenhum, se nem tudo encontra a precisão, a exatidão capaz de definir algo pela falta de palavras. Então, sem nome, o silêncio ocupou todo o espaço e se fez uma calmaria diante do imenso rio.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Simbologia imaginária


Abriu a caixa que lhe fora entregue no encontro na avenida e viu que lá dentro não havia tanto quanto a bela embalagem aparentava. Logo pensou na essência das coisas, na simbologia imaginária dos objetos, na simplicidade que pode morar detrás da suntuosidade, na velha imagem do falso brilhante: lá dentro dele tantos resíduos, e a pedra que tanto brilhava nada mais é que o efêmero de algum instante encantado.

Sustentou a caixa em suas mãos, uma felicidade leve e agradável, enquanto retirava de seu interior algo tão simples, bem simplezinho. Entretanto, ao torná-lo visível aos seus olhos, a felicidade leve e agradável começou a ser desconstruída. Um querer entender a grandeza da embalagem em seu amarelo quase dourado, o laço perfeito, uma embalagem ostensiva, e que tanto se contrastava com o simplezinho demais.

De repente, analogias sobre a vida e sobre as coisas, sobre tudo e sobre os fragmentos que se juntavam um ao outro, enquanto pensava no sentido daquele instante: tão simplezinho e tão sem sentido a aparência e a essência, a embalagem e o que nela havia.

E, de repente, construiu outro instante, daqueles que abrigam apenas suposições: abriu a caixa que lhe fora entregue no percurso pela avenida e viu que lá dentro havia muito mais do que a bem simples e pequena embalagem revelava. Logo, pensou novamente na essência das coisas, na simbologia imaginária dos objetos, na grandeza que pode estar detrás da simplicidade, na imagem misteriosa do brilhante que brilha, brilha, brilha, às vezes tão falso, às vezes tão verdadeiro, às vezes apenas fantasia. E o vento.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Espelhos imaginários e o outro espelho


Releu nas paisagens acinzentadas do tempo os movimentos do prazer de luzes incandescentes
e agora é a súplica tão tardia se não for o milagre.
Lá no nevoeiro do tempo estavam os porta-retratos, expostos ao lado de outros, com fotografias no subterrâneo das recordações.
Um cheiro ácido exalava não apenas do frasco do seu perfume, que já não parecia ser o mesmo,
por mais que o aroma extraído da pura essência, era agora um cheiro vindo de algum sótão e que se misturava ao outro,
o do frasco de nova fragrância, mas que nunca disfarçava a acidez corrosiva do velho perfume.
O seu olhar já não conseguia fingir, desde quando percebera que o outro tempo havia voado para um destino imprevisível em si mesmo, mas ali, perceptível pelo seu próprio olhar interior.
Aquela certeza mergulhava em seus devaneios
e eram sentimentos visíveis nos imensos e belos espelhos das vitrines por onde passava e outros espelhos
estilhaçados e espalhados nas vitrines de si mesmo,
tantos espelhos, enquanto as fragrâncias exalam perdendo o seu aroma e se transformam em frascos vazios.
A fragrância resistente, dentro do frasco vazio.