terça-feira, 3 de abril de 2012

Mas não foi um silêncio incômodo


Surgiu de lá de dentro com mais uma garrafa de vinho e na outra mão um livro retirado da estante enfeitada com a sua coleção de cristais. Pássaros e peixes, e outros objetos expressivos e guardados como réplicas de uma fortaleza, e as casas, casas e castelos: “esses sãos os meus castelos, e esse é o meu preferido”, já havia dito antes, num entusiasmo entre a sua impecável coleção e o seu sorriso e olhar de quem já se conhecem como se fosse desde a infância, embora não iniciada hoje, não nem ontem, nem exatamente há tanto tempo atrás.

Mas, o que importa o tempo agora, se ele se adequa ao instante do contentamento e somos a ele adequados no impulso do que sente e determina o interior? O que é o tempo se ele parece inexistente, por um instante, quando o que mais resiste é a certeza absoluta de um sentimento que faz a felicidade vir a ser de tanto anos atrás, se a intimidade torna-se uma genuína comprovação de que o eterno é o que, de fato, se confia? Não uma confiança inventada nas noites vazias e efêmeras, depois do que se chamou aleatoriamente Prazer. Não uma confiança inventada numa noite qualquer, movida pelo prazer, e o destino nas mãos da eufórica fragilidade de si mesmo, vazio.

Serviu o vinho. Após um gole, saboreado por cada um, perguntou se poderia ler um poema de Poe. “Sim!” Entendera bem a sua pergunta e sentira bem o seu sorriso de felicidade que parecia preencher toda a sala que nem precisava de conforto tamanho. “Sim, pode ler”, respondeu, ao ser questionado se podia ler em sua própria língua. O vinho. O vinho dialogava com a leitura numa intimidade muito maior do que a compreensão exata de todas as palavras ouvidas. O contentamento vivenciava o que sabia estar ali muito mais que a densidade, no íntimo do peito, do prazer, da entrega, ainda que o tempo breve.

“Desde el tiempo de mi infancia no he sido
Como otros eran, no he visto
Como otros veían, no pude traer
Mis pasiones de una simple primavera.
De la misma fuente no he tomado
Mi pesar, no podría despertar
Mi corazón al júbilo con el mismo tono;
Y todo lo que amé, yo lo amé solo.
Entonces -en mi infancia- en el alba
De la vida más tempestuosa, se sacó
De cada profundidad de lo bueno y lo malo
El misterio que todavía me ata.
[...].”

E mais uma vez. Pausadamente. No desejo ansioso de que cada palavra fosse compreendida, e foram, muito mais, depois de clarificadas com tanto entusiasmo, até que a última taça da noite, até que a compreensão das lacunas, até que o surgimento coisas que, às vezes, parecem outras. E, por fim, nem um e nem outro se preocupou em preencher o silêncio, a sensação de que um vento parece tomar coisas que são nossas, um longo voo. E o silêncio, mas não um silêncio incômodo. Não um silêncio incômodo.

2 comentários:

  1. Ele em seu silêncio maravilhoso, regado a vinho e a poesia de Poe...ela enclausurada em muitas palavras, e cheia de saudades. Se não fosse o trem, a mala feita tantas vezes, não haveria estação, nem fim para aquela falta. Ele levou o vinho, Poe e o silêncio, ela o presenteou com uma caixa repleta de palavras.

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  2. Com um comentário assim dá vontade de escrever mais um texto! Aliás, não é exatamente apenas um comentário, mas "uma caixa repleta de palavras" que puxam outras, enquanto o trem... Para onde o trem?

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