sábado, 26 de maio de 2012

Fragmentos Noturnos (Remexendo escritos antigos...)


Novamente perdeu o sono. Que bom que novamente perdeu o sono! Pensou. Assim, enquanto ouvia aquele inevitável “canto de grilo”, vivenciava devaneios e realizações. Ao seu redor, um infinito campo de imaginações às vezes banais e outras vezes surpreendentes. Que bom que novamente perdeu o sono! (Pensou). O silêncio suave, o campo limpo para a ceifa, os textos em diversas faces, os rabiscos, o folhear as páginas visivelmente presentes e as outras; as duas ou três vezes em que foi à cozinha, o simplesmente olhar o teto, as palavras tantas e tumultuadas em alguns momentos. Os diálogos. A Tv desligada. O som desligado. Quase terminou de assistir ao “Dead Poets Society” pela terceira ou quarta vez. Creio que parou pelo impulso de escrever alguma coisa, quase qualquer coisa, mas era a essência daquele instante o que queria gravar em papéis. Ouviu P.D, Ombra mai fu, Handel, E. Schwarkope, mais cedo, horas antes, e o encarte ainda aberto no chão marca a canção preferida. Vontade de ouvi-la novamente naquele instante que o silêncio quase invade em demasia.
Tão bom escrever estas palavras! Pensou. Pensou. Escrever o que sinto, o que me vem à cabeça. Escrever sem ordem alguma. Sem qualquer preocupação. Sem compromisso. Excelente filme Sociedade dos Poetas Mortos. Rainer Maria Rilke. Fantástico o Cartas a um Jovem Poeta. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Pensou um pouco sobre o que ficou das várias vezes em que o leu. William Faulkner. Nada de aspas. Nem itálico.
Tão bom ter perdido novamente o sono! O dormir poda demais o elaborar pensamentos. E o ver o tempo passar. Eu quero ver o tempo passar. Escreveu e repetiu a mesma frase com letras maiores e um ponto final. O pai, a mãe, os irmãos, a avó e mais alguns poucos nomes escritos abaixo da frase Profundos conhecedores do amor. Um traço de ponta a ponta da folha com coisas riscadas na parte de cima, separando o que passou a escrever a partir dali. O prazer da união. Os amigos. Os grandes diálogos. Z.S era um poço de conhecimento. É a questão do saber. Baudelaire, Artaud, Woolf, Lispector, Proust, Tchekhov, Kafka, tantas metamorfoses. E Malraux? E? O mundo é um universo de palavra que se encontram ao acaso e se acasalam, mas nem sempre! Assim como nem sempre ao acaso. Às vezes precisamos busca-las, cavá-las dentro de um tesouro lacrado. Preciso terminar a carta que comecei para X. Às vezes não termino cartas. Por que será que nem sempre consigo escrever cartas, quando preciso tanto, e nem sempre envio cartas que terminam ofuscadas dentro de gavetas? Cartas? Desenhou lentamente várias interrogações. Interessante reler as repentinas e questionadoras “Correspondências” minhas com vice-versa. Dariam um livro com um “Prefácio Interessantíssimo”. Uma sintonia muito grande no refletir. O que é perfeito num mundo tão contraditório?
Ouço agudos e contentes gritos percorrendo os corredores. Os bilhetes extravagantes. Relembro tantas conversas. Íntimas ou não. Há quem permanece para sempre, pessoas que atraem pela essência. E também há aquelas que permanecem pelo simples apesar do pouco. As pessoas e o prazer, mas, por outro lado, a vida, o tempo, so far away... Deparo-me com imagens. Clips. Sonhos. Imagens. Kurosawa. Van Gogh. O espaço. A simbologia. G. Bachelard: A linguagem sonha. Gavetas e armários, a casa e o sótão. O que guardamos nesses espaços? Pensou mais demoradamente, e então foi perceptível o seu olhar agora denso. Estranhamente, uma densidade e algo suave, leve. A densidade e o algo suave, leve. Foi até às gavetas, cartas guardadas nas gavetas. Então, começou a aquietar-se, e no olhar a revelação de um sono que se aprofundava em lembranças melódicas de grilos.
Os grilos. Deixem os grilos cantar. Embalar o sono. Excitá-lo. Estou numa posição incômoda. Mas acomodado. Interessante a entrevista! Seus textos impecáveis. Só não gostei de uma coisa. Também não sei se ouvi bem. Tomara que não. Você tem certeza de que foi exatamente isso o que você ouviu? Tem certeza? Diga. Diga se tem certeza, mas apenas se tiver certeza. Acomode os devaneios em algum lugar. Coloque-os logo ali. Ecos de uma imposição de um dia de verão e que não tem nada a ver com a entrevista. Uma coisa ligou à outra, e ele foi parar no tempo dos primeiros escritos. A coação provocou dúvida no que era certeza. Absoluta. A verdade passou a ser mentira: escreveu na folha seguinte. Entretenimento pra disfarçar. “S. Santos vem aí”. O pensamento humano atravessa fronteiras. Quase todas. Não faltam palavras.
Hoje à tarde. Que encontro mais casual! Não temos liberdades confidenciais, além de faz um certo tempo que nos vimos, e, de repente, ela foi descarregando todos os seus problemas. Quanta coisa! Acho que estava carente de qualquer pessoa que a ouvisse. “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.” Fui bem atento. Das próprias carências cada um é que conhece e sente. “Não andeis ansiosos de coisa alguma”. Esta foi uma frase que ele muito ouviu como uma criança alertada a repetir a mesma letra, a mesma sílaba, a mesma frase até aprender. Ele também pensou algumas coisas engraçadas, enquanto virava a página para repetir outra frase, e sorriu quase uma gargalhada. Já não havia mais a manifestação de sono em seus olhos. Levantou-se, já sem sorriso algum, e foi direto à música já escolhida.
Algumas palavras suas e outras, alguns versos de poesia e de música. Agora, tudo acontecendo enquanto Beethoven. O ritmo da fruição. As sonatas. A Pathétique. R. B. Como ele consegue dizer tantas coisas?! Deixou em branco a sua interrogação e pensou no ato da escrita. No texto. Em seu prazer. Em seu prazer enquanto leitor. “Escrever no prazer me assegura - a mim escritor - o prazer do meu leitor? De modo algum”. A Flauta Mágica. Mozart. A Muda. A. Cristina Cesar. Ambas falam. Grifou algumas passagens no texto e deixou de lado o caderno e a caneta, juntamente com alguns livros ali ao lado.
Uma sensação de fome, mas de sono não. Pensou: Bem que a amiga M deve estar acordada, também: montando empresas e abrindo novas lojas. Seu imaginário fértil, saudável, e ela sempre a mulher que será bem sucedida todos os dias dos dias seguintes. A utopia e os sonhos embalam felicidades que nem existem concretamente, mas que são eternas em seus instantes que se renovam e se desdobram em realidade possíveis. Amanhã! Amanhã. Pensou em estar mais leve. Agora, uma fatia de bolo de laranja, bolo de banana, chá de capim santo, erva cidreira, qualquer coisa de sabor muito agradável. Lembrou-se de certas crônicas que N esboça mentalmente e sorriu. Tão bons argumentos! “Comédia Humana”. Achou muita graça, agora, às três ou três e meia da manhã. Quatro, talvez. E por falar em graça... Os mistérios de Írma Vap. Pensou em S e os inusitados preparativos para assistir Jessye Norman no Teatro. Lembra-se? “Of Course! I’ll never forget”.
Seus pensamentos fragmentados naquela longa noite, e incessantes, e ele se encolhia de maneira que parecia dor, e parecia prazer, e parecia simplesmente o acaso de uma noite quase sem fim: ficaria horas escrevendo estes pensamentos fragmentados. Interligados. Mas não gosto de dormir quando o dia começa a amanhacer. Pegou novamente o papel e escreveu essas coisas. Você não se importa? Você quem, se ele estava ali sozinho? Quem poderia ser esse outro? Quem esse outro tão íntimo? Tentarei dormir. Continuou. Só mais uma coisa. Pausa. Interrompeu e não disse nada, a não ser justificar-se: Depois pensarei sobre isso. A Estética. A da Recepção. O leitor e a sua liberdade. Juntos, o autor, a obra e o leitor. O ler as metáforas. A Filosofia da Composição, não apenas O corvo. Os ecos dos questionamentos. O obra aberta. “O discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos, e para cada um de nós é uma contínua descoberta do mundo.” A intersemiose. Uma arte toma emprestada de outra arte características de outra arte. Aspas ou parênteses. Leu algumas coisas pela metade, tudo pela metade.
A vontade de escrever um pouco mais. A intertextualidade. Julia Kristeva: O texto é absorção e transformação de outro texto. Tanto tempo que li isto pela primeira vez! Nada é original. Tudo é original. O momento histórico é responsável pela leitura, que é sempre uma releitura do velho. Mas o prazer e a emoção mudam. Um novo sabor. Alguém já disse que a obra literária é inacabada enquanto história. Eu não terminaria nunca este texto, em fragmentos. Apagou a luz.
(...)
Logo amanhecerá. Quem sabe amanhã eu perca novamente o sono! (Tomara!). (Não anotou).