quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O envelope, a urna e o castiçal


Lá dentro havia um labirinto cheio de palavras guardadas dentro de envelopes espalhados por todos os caminhos, quase todos sem saída. Dentro de cada envelope havia uma palavra, apenas uma, muitas palavras iguais, e poucas diferentes, únicas.

As paredes eram bem alvas, o chão era alvo, bem alvo, as vestes das pessoas eram alvas, e outras não. Os envelopes, de tão alvos que eram, pareciam desaparecidos no chão e nas paredes extensas e altas, os envelopes confundidos com o chão e as paredes límpidas, e quase ninguém os encontrava.

Todas as pessoas se espalhavam no imenso labirinto, e um não se deparava com o outro. Eram todos avistados ao longe e desaparecidos em seguida, na entrada para um novo caminho que levava a outro caminho ou a nenhum. Era esta a maior sensação: a de caminho nenhum.

No fim da jornada, que havia durado anos dentro de apenas alguns dias, algumas poucas pessoas começaram a encontrar a saída: um imenso pátio branco, as árvores brancas, as flores brancas, e em seus envelopes todas as palavras eram diferentes uma da outra, únicas. E, embora diferentes, havia uma grande sintonia entre elas.

Nunca alguém havia visto aquelas palavras, todas depositadas numa pequena, bem pequena urna dourada sobre uma imensa mesa de marfim. A urna, ornamentada de pedras reluzentes, era estranhamente sem porta.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O zunido, as palavras...


Fechou a porta e acreditou que todas as coisas ficaram do lado de lá. Entretanto, ainda sustentando a chave na fechadura, percebera que tudo permanecia ali dentro, arrastando-se dentro de seu corpo. Tudo ali, dentro dela mesma, percorrendo as suas artérias. Teve certeza, assim que virou de costas para a porta e viu as cadeiras vazias ao redor da mesa enfeitada com o jarro novo, presente de aniversário, no dia anterior. Ela, se sustentando num resto de ânimo, imaginou-se repousando no sofá coberto de mantas nos dias de inverno.

Soltou a bolsa no chão, também presente de aniversário, atravessou a sala, e só então se deitou no sofá. Naquele instante, sentiu o cheiro que havia sobrado do ontem e o sabor da última fatia de bolo, guardado para o amanhã. Um zunido penetrava os seus ouvidos e se misturava com palavras. Não era o zunido de sempre, não eram as palavras de sempre, mas também não era um zunido e nem palavras que ela pudesse dizer serem estranhos. Ela desconfiava. Ou sabia. Ela desconfiava ou sabia de que algo estranho pudesse estar percorrendo em seu corpo,

Inquietada, no mesmo minuto em que havia se deitado, sentou-se. Tirou os sapatos, tirou a blusa, olhou o seu corpo, a pele alva, bem alva, tirou a calça comprida, tudo ali mesmo, no sofá, e desejou muito um copo com água. Mas não sentia a menor disposição para se encaminhar até a cozinha que, de tão arrumada, nem parecia ter sido ontem um dia de festa.

A sede começou a arranhar a sua garganta, os zunidos começaram a arranhar os seus ouvidos, ela com tanta sede, o ontem com o bolo de aniversário sobre a mesa, o bolo coberto de recheio escorregadio, aquela coisa estranha percorrendo em suas artérias, percorrendo em seu corpo, percorrendo sobre a sua pele, e o zunido, as palavras, o zunido, as palavras, o zunido, as palavras...

sábado, 12 de janeiro de 2013

A ponte, apesar do rio - IV


Enquanto contemplava o silêncio derramando o seu límpido gozo nas margens do rio, pensou no quão havia sido bom não ter verbalizado o seu pensamento a respeito do tempo. Aquele não era o momento. Teria desviado o destino daquele instante que se fez fundamental para que a noite findasse como uma tela bela e imensa, estampada na parede da memória. Não era hora de falar do tempo, não era hora de falar no amanhã, não era hora de falar. O que importava era a sutileza do instante, para que o amanhã pousasse suave na noite com as suas asas imensas, pronto para o amanhecer.

Depois, as palavras. Novamente as palavras, reconfortantes, saboreadas como se fossem alguma espécie de matéria comestível. Elas, contentes e saltitantes, andando na margem do rio, enquanto observavam um ao outro e observavam os transeuntes calmos e apressados atravessando a ponte. A ponte cheia de significados e com centenas de lâmpadas, todas, todas as lâmpadas acesas, iluminando o rio, as cidades, o mundo, o universo inteiro.

As asas da noite sobrevoaram o tempo, acompanhando os seus ponteiros marcando os segundos, os minutos, as horas... E tudo o que era do ontem, no ontem ficou, intransponível. Mas, o que ao hoje pertencia atravessou a noite nas imensas e belas asas do tempo, e no hoje está. O tempo é cheio de pontes, algumas palpáveis, e outras não. Aquelas são milhões; e estas, incontáveis, infinitas. E as asas do tempo sobrevoam, incansáveis e incessantes.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A ponte, apesar do rio - III


Pensou em dizer que o amanhã é um dia que não existe, e citar o texto de Provérbios que afirma que não devemos presumir do dia de amanhã, pois não sabemos o que produzirá o dia. Mas não disse nada. Não queria desviar aquele instante para a física, a metafísica, os diversos e o único sentido de eterno, não queria discutir o tempo. O tempo era aquele, o agora, o presente ininterrupto.

Ficou em silêncio, saboreando as palavras que acabara de ouvir. Havia ali uma singeleza sim, havia ali a força das imagens desenhadas pelas palavras. As palavras desenham. Nunca havia pensado nisso, e se debruçou sobre tal possibilidade, enquanto olhava a ponte e o rio, como lhe havia sido sugerido. Não era apenas um olhar, era um estado de contemplação ao imaginar os passos que percorreram sobre ela em sua direção, e o rio brilhando, desenhando as diversas estrelas que bailavam sobre as suas águas.

Não precisava dizer mais nada naquele dia. Nem dizer e nem ouvir. O silêncio era a expressão do prazer que transcendia. Era o gozo pulsando em cada olhar. A noite inteira pulsando no silêncio derramado na margem do rio, agora mais reluzente sob a ponte tão permissiva.

domingo, 6 de janeiro de 2013

A ponte, apesar do rio - II


A ponte permanecia esbelta e imponente enquanto o diálogo tentava encontrar um termo adequado, uma resposta adequada, uma palavra adequada, qualquer coisa adequada que definisse a agradabilidade daquele momento singular. Afinal, nada se repete. O que pensamos ser uma repetição é, na verdade, uma nova versão do instante que foi um anterior.

No tempo, nada se faz igual, se sempre há algo que diferencia um instante de outro, mesmo que sutil ou imperceptível. As sensações apresentam qualquer que seja aquilo que vem a ser um diferencial no que seria uma repetição fiel: o cheiro, o sentimento, o impacto, o entusiasmo, o toque, o sabor, o prazer, nenhuma sensação se faz exatamente a mesma, assim como nenhuma imagem é recomposta com exímia fidelidade ao que chamamos imagem real. Talvez o espelho. Mas o “talvez” é indefinível, inconfiável. O espelho em seu reflexo do outro, intocável e inexistente em sua imagem refletida e sem pensamento algum.

Tudo é uma ponte. Uma ponte que nos leva ao que é e que se apresenta em novas faces, para mais ou para menos. Às vezes, tão semelhantes que se confundem. Há sim uma ponte sobre o rio, e sobre a água a sua imagem refletida, bailando intensa, branda, invisível, a depender da luz de cada instante.

- Não preciso repetir que foi a ponte que me trouxe até aqui novamente. Não apenas a ponte sobre o rio, interligando as cidades, mas a ponte entre os rios que somos nós. Nós somos rios e precisamos de pontes para percorrermos de um lado para outro de nós mesmos.

A ponte é para que travessias sejam possíveis, e aqui estou. Não mais a travessia de ontem, embora o percurso e o propósito sejam os mesmos. O ontem originou o agora e se desfez para ressurgir com os seus múltiplos sentidos durante a travessia que pretende tornar melhor o que ontem já havia sido. Veja a ponte. Veja o rio! [Pausa]. Até quando a ponte e o rio? Será que ainda amanhã? [Pausa]. Não precisa responder nada. Pode ser que tudo seja apenas uma longa elucubração. Já é tarde, deixemos algo para amanhã.

(Amanhã é um dia que não existe. “Não presumas do dia de amanhã...”).