sábado, 18 de janeiro de 2014

Reinventando olhares


Ao acordar, deparou-se com a parede do quarto completamente umedecida. Apesar de sua perplexidade inicial, foi invadido por uma brandura, pouco a pouco uma brandura e um espírito contemplativo diante da parede branca. A tinta resistente em sua espessura tão estreita, pele, película, camada endurecida pelo tempo, agora deslocada da estrutura do alto a baixo da parede. Ele permaneceu ali, de olhos fitos e olhar contemplativo, revirando páginas, reinventando olhares. Pouco a pouco, aquela camada se desprendia da parede como se gotas de água se acumulassem ali detrás, criando pequenos poços, alguns maiores, outros menores, a camada inteira prestes a se desprender da parede, deixá-la nua, sem cor, sem brilho. Ele contemplava aquele instante, mergulhava naqueles poços de água, enfrentava a correnteza, ele seguro de que ali detrás havia uma fortaleza, a parede intacta, revestida, ele nu debaixo da colcha branca, a sublime ausência de cor nas paredes, no tecido, na nudez. O algodão agora revestia o tecido branco sobre a cama, os seus fios resistentes, até quando, até onde. Ele, ali, horas depois, antecipava em seu olhar uma nova camada de tinta sobre a parede. Espessura resistente, a pele, a tinta, outra, outra vez revestindo a parede, até quando, até onde, até.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Um Cheiro de Tempo Encardido


Todos os sábados, ao final da tarde, na janela da casa soturna e recuada surgia um certo homem de olhar tênue entre sereno e melancólico. Um homem estático! Quase uma fotografia a observar o pequeno mundo lá fora, e que nunca havia crescido nem mesmo em seu olhar. Todos os sábados ele passava um tempo a ver as casas de frente a sua, paisagem nunca retocada em suas cores ofuscadas pelo tempo e descolorindo ainda mais o seu mundo. Durante aqueles dois a três minutos na janela, ele olhava os raros transeuntes que transitavam na rua enquanto ele era quase fotografia: de vez em quando algumas crianças gritavam ensurdecendo o seu silêncio e o de sua pequena cidade, e ele, num momento de surdez causada pelo seu distanciamento do presente instante, não ouvia nada além dos movimentos das bocas ecoando gritos abafados.

Numa junção de instante e numa emissão de voz que apenas ele ouvia, apossava-se de uma serenidade e respondia boa tarde aos que o cumprimentavam, ele sem nenhum desejo de cumprimentos, aliás, não era exatamente falta de desejo. Depois, fechava a janela até que chegasse o sábado seguinte, quando às 7h00 da manhã ele era um dos primeiros a chegar à feira, onde rapidamente fazia as suas compras e logo retornava para casa, auxiliado por um carregador ambulante que deixava tudo à sua porta. As compras seguintes eram apenas o pão na padaria perto de sua casa, dia sim dia não, ao retornar do trabalho ao final da tarde.

Todos os dias, de segunda a sexta-feira, em torno das 7h40 da manhã ele abria a porta simples de sua casa simples e, inibido com o desconforto de se sentir observado, olhava disfarçadamente para o clarão da rua. Receoso de ter que responder bom dia logo ao amanhecer, trancava a porta, retirava a chave, e nunca deixava de empurrá-la para se certificar de que estava realmente trancada. Repetia o mesmo processo ao retornar do almoço para o trabalho, todos os dias a mesma coisa, sem qualquer mudança. Ali estava ele: um homem elegante.

Apesar de possuir uma leve curvatura na coluna, pescoço curto e a cabeça inclinada para o lado, tinha uma postura elegante. Era magro, alvo, estatura mediana, e possuía cabelos negros e lisos, sempre bem penteados. Nenhum fio de cabelo parecia fora do lugar, eis uma de suas características mais marcantes. Ele, o homem elegante, usava, todos os dias, calças de linho, camisas de algodão, um paletó azul marinho, periodicamente substituído por um de cor preta, sapato social preto, criteriosamente limpo, e nunca deixava o seu guarda-chuva em casa, não apenas por precaução contra o sol e os raros dias de chuva. Todas as roupas revelavam o tempo e o excesso de uso, tão gastas, mas sempre usadas como se adquiridas recentemente. Ao contrário dos sapatos, gastos mas bem limpos, as camisas traziam em seus colarinhos marcas de suor enegrecido pelo pó da pele, sempre a mesma camisa no decorrer de cada semana. Desde muitos anos atrás, nunca mais uma roupa nova, nunca mais uma peça a mais, nunca precisava de nada a não ser alimentos regados, a luz de baixa voltagem, a água, a escuridão da noite a ouvir o seu silêncio, e uma coisa e outra quase despercebidas. Tudo tão estático em seus desejos.


Depois de certificar que a porta estava fechada, subia a rua de sua casa, a mesma rua de seu local de trabalho. Três quarteirões depois, e sempre à direita, atravessava a rua que dava acesso a um pequeno jardim da cidade, prosseguia em sua calçada, novamente atravessava a rua, e na esquina adentrava em seu trabalho. Na sala, compartilhada com mais dois funcionários, retirava o paletó, usado sem ser exigência de sua função, pousava no encosto da cadeira, retirava o relógio de corrente do bolso da calça, e sentado com as mãos sobre a mesa, aguardava que os ponteiros marcassem 8h00 da manhã. Então, iniciava o seu meticuloso desempenho com a sua caligrafia impecável. Era um artista ao protocolar e registrar com as suas letras e palavras rebuscadas o cumprimento de seu ofício.

Desempenhava eximiamente as suas funções, falava apenas o necessário, e, apesar de gentil quando a ele recorriam, nunca desenvolveu amizades no trabalho, nem no percurso de casa, nem na feira, nem na padaria. Nunca alguma visita em sua casa, desde muitos anos atrás, e nunca aceitava convites a ele feitos, desaparecidos com o decorrer do tempo. Na confraternização de final de ano, apenas uma vez ele esteve presente durante os quase vinte e cinco anos de trabalho. Uma vez, para nunca mais. Ele ainda tão jovem. Sentiu-se tão deslocado, muito mais inibido. Sentiu-se um inseto, depois um homem se transformando num inseto, numa barata, uma lagarta escorregando num lamaçal, ele uma ave de asas atrofiadas num esforço imenso de voar para qualquer lugar que fosse longe, distante; vontade de estar em seu quarto empilhado de tantas coisas desnecessárias, ele, ele mesmo com tanta vontade de sair correndo daquele lugar, e desapareceu. Desapareceu para nunca mais qualquer que fosse a confraternização.

Era um sábado quando ele relembrou aquele dia. Naquele dia, e não apenas por causa disso, ele não abriu a porta de casa, não foi à feira, não apareceu na janela, e nem foi paisagem estática e de olhar misterioso diante do pequeno mundo lá fora. Passou o dia inteiro transitando em poucos movimentos pela casa, de um lado para outro em seus pequenos e poucos compartimentos: a sala, os dois quartos, a cozinha, e um quintal quase do tamanho da casa inteira. O dia inteiro transitando diante dos reflexos das paredes de tintas envelhecidas, o tempo encardido nos móveis, na toalha sobre a mesa, nas fronhas e nos lençóis, e três antigas fotografias em preto e branco em suas molduras empoeiradas, fincadas na parede da sala: a casa inteira empoeirada, o cheiro de tempo abafado, mofado, envelhecido dentro dos guarda-roupas, dentro das gavetas, detrás de cada coisa e de cada pensamento naquela casa. Naquele dia, algo lhe apertava o peito: cansaço, fadiga, o afeto dolorido, o amor dolorido, o corpo inteiro dolorido. Então, ao final da tarde, depois de um longo tempo sentado em seu quarto, se dirigiu até o outro quarto, onde a porta permanecia sempre aberta. Ali, sentou na poltrona de frente para a cama e ficou a contemplar o rosto daquela mulher envelhecida pelo tempo. Tantos anos!

Tantos anos e ela prostrada naquela cama. Ele, todos os dias, estava ali ao seu lado, presente, entregue muito mais que a si mesmo. Permaneceu sentado como de costume, e o silêncio começou a se aprofundar ainda mais naquele quarto, enquanto as suas raízes germinavam em todos os cantos da casa. Poucas, bem poucas palavras, reduzidas e mais pausadas com o decorrer do tempo. E, com o tempo decorrido, era agora palavras em devaneios, o olhar estabelecendo diálogos, o olhar parado diante do teto, diante do vazio, diante de alguma lucidez que apenas ela sabia se ainda havia. Ele sentia tanta vontade de saber se ainda havia nela alguma lucidez! Às vezes, ele desejava que sim, e muitas vezes ele desejava que não. Preferia que ela não se apercebesse ali, prostrada naquela cama durante anos; preferia que ela não sentisse a sua nudez invadida, ela sempre tão recatada, e ele levado e despi-la, elaborando habilidades para que nunca precisasse encarar a sua nudez mais íntima. Nunca! Ele tão constrangido e recatado com a própria nudez.

Depois de pensamentos entrelaçados no tempo, ele se levantou, se aproximou da cama, olhou com suavidade o seu rosto, e contemplou aquele olhar tão suavizado naquele instante. Ele teve uma sensação que lhe foi tão estranha: vislumbrou um azul marcante em seus olhos, eles em movimentos suaves como os de nuvens calmas, o quarto cheio de nuvens. Tomado por um sentimento de esvaziamento, ajoelhou diante da cama, pegou em uma de suas mãos, permaneceu olhando para o seu rosto, a noite iluminada pela luz fraca amarelada, e ali ele cochilou não mais que cinco minutos. Sonhou, despertou, olhou atentamente o seu rosto, levantou-se, olhou-a ainda mais atentamente, e então colocou as suas mãos uma sobre a outra e saiu do quarto.

Ao amanhecer, ele abriu a porta do fundo da casa, recostou-se na parede, o tempo ainda enegrecido e revelando os primeiros sinais de luminosidade! Tudo ainda turvo, lá fora e lá dentro dele. Não dormiu naquela noite. Um cansaço, um enfado, mas, mesmo assim, ele sentia uma serenidade caindo como gotas ao final de um temporal. Todo temporal cessa, ele pensou, naquele dia que parecia nunca mais acabar. Todas as horas cessam, ele pensou, logo em seguida. Ele, sem saber se seria melhor que o dia acabasse logo ou se durasse o tempo de vários anos, permaneceu encostado ali na parede, observando a noite partir de vez. E o dia surgiu numa luminosidade radiante.

Na segunda-feira, às 7h40 da manhã, ele abriu a porta da casa e surgiu em seu paletó preto. Pela primeira vez, não trazia consigo o seu guarda-chuva. Ele, elegante em sua roupa bem gasta, iniciou o seu percurso habitual. Ao percorrer o jardim, olhou para o alto, o Céu bem no alto, atravessou a rua, entrou em sua sala de trabalho, colocou o relógio sobre a mesa, e em seguida pousou também as suas mãos. Estático como uma fotografia e numa paciência que lhe era comum, aguardou que os ponteiros marcassem, pontualmente, 8:00 da manhã.