terça-feira, 11 de novembro de 2014

Nem você, Madalena?


Tocou a sirene uma vez. Duas. Três. Quatro vezes tocou a sirene e desta vez prolongou por quase dez segundos aquele som lá dentro da casa, e assim trouxe para aquele instante o menino de outrora: brincou de bola, fez gol, comemorou o toque de gude na outra gude que estava tão distante, ele feliz. Era fim de tarde de sábado, e ele corria em brincadeiras pela rua enquanto a sua ausência era pouco percebida em sua casa, em meio às visitas de amigos dos pais e dos irmãos mais velhos.
A sirene ecoava insistentemente, sem ele ter a menor ideia de que a casa estava vazia, sem nada na cozinha, sem nada nos quartos, sem nada a não ser uma frágil camada de poeira a cobrir o chão, as pias e a mesa da sala. Tudo o que havia restado daquele tempo era a mesa da sala, o móvel mais pesado e resistente da casa, deixado para trás, ainda no mesmo lugar de quando ele havia partido. Nada ao redor da mesa. As cadeiras haviam sido levadas, uma a uma, nem se sabe exatamente por quem; os objetos repartidos entre alguns amigos e dois ou três vizinhos mais próximos. No mais, alguns objetos vendidos, e tudo deixando de ter sentido algum.
“Para de tocar essa sirene, menino!” Enquanto ninguém aparecia para abrir a porta, ele foi tomado por recordações do menino que ele havia sido. Ele se divertia e soltava gargalhadas quando Madalena, que havia chegado de longe, em busca de emprego na cidade, gritava de lá de dentro, e resmungava, sem raiva alguma: “Diacho de menino perturbado.” Era assim que ela abria a porta para ele, enquanto repetia: “diacho, diacho de menino atentado.” Ele, minutos depois, silenciosamente, bem na ponta dos pés, atravessava a casa, abria a porta da rua, puxava-a bem cuidadosamente para não fazer barulho, e novamente tocava a sirene. Tocava-a já se contorcendo para não deixar explodir a gargalhada. Ele se divertindo só em imaginar o resmungar de Madalena, que deixava os seus afazeres na cozinha e ia abrir a porta. Madalena! Ela que, no fundo, bem raso o fundo, e quase sempre com uma expressão fechada, também se divertia com as peraltices daquele menino.
Minutos mais tarde, tudo outra vez. Ele entrava no quarto ou no banheiro e fechava a porta, de modo a Madalena entender que ele estava lá dentro. Às vezes, ele nem entrava, e outras vezes ele abria a porta, bem devagar, e saia de mansinho. Tudo novamente, mas de outra maneira. Abria a porta da sala, pulava a janela, saia pela porta do fundo, fazia qualquer coisa para driblar Madalena. Tudo para novamente tocar a sirene e imaginá-la resmungando: “deve ser o diacho daquele menino”, “não é possível que é o diacho daquele menino de novo, atazanando o meu juízo”. E ele caia na gargalhada, feliz, só em imaginar o resmungar de Madalena: “diacho de menino”.
Ainda mais feliz ele ficava quando ouvia aquele som ecoando pela casa, “ô diacho, é você que já está ai fora apertando o diacho dessa sirene outra vez?”, justo em dias que não era ele lá fora. E ela abria a porta, convicta de que era ele, resmungando embravecida: “ô diacho, é você...” Madalena ficava ruborizada de vergonha. Não era. E ele se divertia tanto! Observando-a, lodo ali atrás dela, e feliz em tanta gargalhada.
Ele e Madalena eram assim. Nos dias em que ele ficava quieto, calado pelos cantos, ela se aproximava dele, séria, com o seu jeito de afeto bem escondido, e queria lhe dar o mundo. Quando o “diacho” do menino ficava quieto demais pelos cantos, Madalena queria lhe dar o mundo. Ela perdia ainda mais a graça de tudo, quando ele ficava daquele jeito, pelos cantos. Ele, esperto que era, em alguns dias fingia, só para que ela lhe oferecesse o mundo outra vez.
Ninguém. Em toda a sua vida, ninguém havia dado tanta atenção a ela quanto o “diacho” do menino. Sem os seus toques na companhia, pouca graça havia na vida de Madalena. Ele a tocar uma, duas, três, quatro vezes, depois das suas artimanhas para sair bem de mansinho sem que ela percebesse. À noite, quando em seu quarto, Madalena sorria sozinha, feliz, uma alegria pelas peraltices do menino, ele soltando imensas gargalhadas ao seu lado, dando a ela a atenção que ninguém nunca havia lhe dado. Nas tardes de sábado, quando retornava a casa e ainda havia visitas de amigos dos pais e dos irmãos mais velhos, ele entrava direto à procura de Madalena, e ela já tão preocupada com sua demora. Ninguém percebia que ele esteve ausente, apenas ela, Madalena, ali, já com o mundo inteiro para lhe oferecer, caso ele retornasse cabisbaixo, pelos cantos. Ela se lembrava de tudo isso, sozinha, à noite, soltando sorrisos em seu quarto.
Ele, agora lá na porta, em muito se lembrou de Madalena. Uma, duas, três, quatro vezes, e sentiu uma saudade imensa.
- Ninguém! Nem você, Madalena? Preciso tanto que tente me dar o mundo inteiro outra vez!