sábado, 28 de março de 2015

A vida dentro da mala

A vida dentro de uma mala velha, fechadura enferrujada pela dor angustiante de um tempo passado. A coleção de relógios espalhada pelo chão, abandonada depois dos dias que mais nada parecia lhe interessar. A vida que se tornara mofa dentro da mala, forro em cetim que desde tempos atrás não mais resistiu às expectativas se esvaziando até tornar-se pó. Pó como a vida se torna, ferrugem como a vida se torna, quando se passa pela vida agarrados a passados que se foram, e amarrados aos dias que já excederam todos os seus limites. Abandonados. Abandonados os momentos que chegariam em êxtases. Abandonados, abandonados os instantes, os melhores instantes atravessando imperceptíveis pelas janelas, enquanto o horizonte grita quase se explodindo sobre os seus pés. Alheio aos seus olhos, o instante presente emudece; o olhar mofo, enrugado, necrose contornando as olheiras negras; e os olhos quase fechados, aconchegando-se doloridamente ao passado que nem existe mais.
A janela fechada e as portas quase lacradas para a claridade dos dias. A quase escuridão da casa em pleno sol latejando o mundo lá fora, alheio àquele universo reprimido por um ar morno, cheiro de tantas coisas guardadas, papéis e objetos plurais de sentidos, móveis que há tanto tempo fincaram as suas verdades em espaços imóveis. E ela. Ela incapaz de rever as horas, um peso em seu corpo, impedindo o movimento das paisagens encarnadas nas páginas dos livros que lhe foram os preferidos nos dias que se tornaram apenas recordações. O seu olhar turvo, cálido, nocauteando as imagens dos quadros na parede, prazerosamente adquiridos nos dias em que a vida era.
Tantos dias e tantos anos dentro de um só. Tantos dias e tantas horas em apenas um dia. Cenários mudos, o coração exausto, suportando a densidade das horas que, sem piedade, sobre ela caiam. Ela, agarrada ao silêncio e ao incessante fluxo dos seus pensamentos, nem percebeu que a casa havia escurecido de vez. Uma penumbra negra, melancólica, exasperada. Aquelas palavras lacradas e acolhidas pela sua memória, eternizada.

Em "O Silêncio e a Bagagem" (2008)