sábado, 20 de junho de 2015

À meia-luz


Em meio àquela busca do exato poema de Adélia Prado, desejado para aquele instante, inevitavelmente único, a taça de vinho tinto se descontrolou de sua mão, impulsionado por tantas imagens e palavras de significados múltipos. Um impacto. Sensações interrompidas, e se renovando.

O vinho se espalhou repentinamente sobre o sofá branco. Marcas incisivas de desejos se misturando ao poema perdido, guardado entre tantas páginas, e revelando sentimentos intraduzíveis. Aquela mancha quase sutilmente constrangedora, mas era uma mancha de vinho entrelaçado em desejos contundentes, encorpado, enquanto o som do último poema ainda suplicava: “me dá a mão, me cura de ser grande.”

A noite em meia-luz, e a capa de tecido que revestia a poltrona vermelha foi retirada, gentilmente, como se nada tivesse se estragado. O vinho já dilatando o desejo, instante de um afã quase suplicando os momentos seguintes: o que seria, o que poderia e precisava acontecer para transformar a noite em mais um poema que cura um menino de ser um homem grande.

A estante cheia de livros, outros poemas, a música, as letras pausando cada instante, tudo se fazendo prazer, tudo meio explicado, apenas meio explicado. Nada precisaria ser tão explicado. Não ali, enquanto tantas coisas marcavam... Tantas coisas marcavam... Coisas? Mas o que são coisas? Questionavam poucos dias atrás, em busca daquelas explicações que ficam misteriosamente perdidas entre os olhares secretos, entre os segredos discretos, entre as palavras não-ditas, até que perceberam que nada daquilo se fazia necessário, se a cumplicidade era mesmo silenciosa. E intensa. Falaram algo a respeito de Kant, e fizeram uma breve pausa. Coisas, tantas coisas desde dias atrás.

A última gota de vinho foi derramada, exatamente no centro da taça, imagina-se. E, determinantemente, anunciava com uma voz velada, bem velada e sussurrante, que logo as taças estariam vazias.

As taças quase vazias.

As taças vazias.

Em suas mãos, um calor daquelas mãos aquecidas, paradas sobre a sua pele. Os olhares que deixaram de ser apenas desconfiados, o quarto bem ali, bem próximo, e o colchão coberto com uma bonita colcha colorida.

A meia-luz agora quase escurecida. A colcha, colorida e tão bonita, amassada pelos cantos da cama. E, finalmente, o prazer em ouvir aquele poema lindo, sem nem mais saber se ainda desejava ser curado de ser grande.

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