segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Do livro "Fragmentos do Diário de Martha B.",


1 de março
Tantas coisas eu planejei dizer hoje a Simon e não disse! Eu, esta pessoa forte, destemida, cheia de impulsos, e eu mesma esta pessoa fragilizada, recolhida em um casulo, impotente. Eu tão desprendida e tão retraída, eu afoita, cheia de entregas, e eu mesma mergulhada numa profundidade de mim mesma. Eu lá fora, cheia de contentamentos e entusiasmos, e eu aqui dentro de mim, cheia de indagações perdidas na busca de questionamentos e respostas firmes. Eu assim, certamente uma cópia de muitas outras pessoas espalhadas por aí, caladas em seus quartos e a pensar e repensar os seus instantes mais íntimos, os sentidos das coisas, o sentido da dor, quando dor, e o sentido do prazer, quando prazer, o sentido da melancolia, quando melancolia, e o sentido da felicidade, quando felicidade. Coisas assim, o antagonismo das sensações e sentimentos envoltos na existência.
Nada de mais significativo que eu planejei falar a Simon, eu falei. Os meus sonhos quando a noite na profundidade do meu sono, a minha decisão de que não mais escreverei a ele com a minha caligrafia deslizando sobre os papéis... Nada disto falei. Eu recuando dos meus conflitos, eu recuando de cobranças, eu recuando de expor a minha própria vontade, eu com receios de abrir mão de Simon, mesmo com alguma certeza de que já não o desejo tanto, eu sem mais certeza do que sinto por ele.
O espírito e a carne. Que digo eu sobre uma relação tão íntima e tão oposta? Que digo eu do amor sublime? A felicidade a partir do amor, ainda que nem tão sublime, a minha carne, meu ventre, os meus seios sedentos... Tudo se distanciando de um elo que esteve seguro dentro de mim.
Nada daquilo que mais planejei expor a Simon depois de sua chegada eu expus, e eu me sinto um pouco frustrada e entristecida em meio a essas inseguranças. Como pode uma mulher que se revela tão segura de si ser fragilizada por uma base tão líquida e oscilante em seus movimentos rumo a algum porto seguro? E onde é esse porto seguro? Uma pergunta que eu até poderia arriscar a fazer ao psicanalista, mas o que ele me diria a não ser, suponho, reenviar a pergunta a mim mesma? Confesso que já senti alguma vontade de estar lá, retornar àquela sala, àquele ambiente de expurgação, mas logo reluto e desisto. Acho que eu ainda não expressei essa minha oscilação aqui: o de retornar às sessões de análise. Não sei se, necessariamente, ao mesmo psicanalista, mas ao propósito.
[...]. Não.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

E, porque queria...


E quando passei por lá como havia combinado, eu não me levei por inteiro como havia quase prometido. Fui, faltando alguma parte de mim e eu nem sabia qual era. Mas, desde quando apanhei a chave e bati a porta, eu percebi que alguma coisa não estava comigo naquele instante.
Já na calçada, pensei em retornar e descobrir e procurar o que eu havia deixado para trás. Há coisas assim, das quais nem o nome sabemos, mas as conhecemos pela intuição ou pelo incômodo que apalpa o nosso peito de modo estranho. Pensei mesmo em retornar, mas não retornei. Prossegui, como eu eu havia quase prometido. Eu queria. E, porque queria muito, comecei a enganar a mim mesmo, induzindo-me a fingir acreditar que tudo seria como havíamos idealizado naquele instante de fantasias sentidas à flor da pele.
Eu quase chegando, quase tocando a campanhia, a porta sendo aberta, o agradável perfume exalando suavemente pelo ambiente, e uma repentina náusea intuitiva expeliu daquele aroma e comprimiu o meu estômago antes que eu tocasse a campanhia. Ainda assim, respirei, pausadamente, fiz de conta que eu havia me desviado da náusea, levei minhas mãos até o botão, parei dois ou três segundo, quase estátua, e pronto.
Agora, já não dava mais para deixar de adentrar. Inventei que não.

domingo, 15 de maio de 2016

"Quase Jardins" (Trecho do romance)

[...].
O bicho estranho que a avó dizia futucar o menino não se sabe se existia, se era mito, se era lenda, se loucura ou outra mentira da avó, Mentira, mentira, eu não tenho um bicho dentro de mim, eu não tenho um bicho, José afirmava e repetia para si mesmo, sozinho. O menino dentro do quarto imaginava um bicho de pernas longas, finas e enrijecidas, quase monstrinhos a andar dentro dele, um bicho de duas longas asas que voavam em seu corpo em busca de um pouso dissimulado e era corrosivo. Ele olhou para as paredes e viu um imenso inseto subindo, subindo até o alto, e fez a travessia no teto diante de seu olhar apreensivo.
Ele viu.
As pernas longas, finas e enrijecidas, e que cresceriam muito até ficarem deste tamanho assim.
O bicho parou bem no canto da parede.
Por um momento, José ficou com o olhar para o alto, alheio às palavras da avó que se alternava entre suposta brandura e intolerância. As mãos na cintura, ela imponente, e tudo se tornou tanto, de modo que ele desejou ficar ali dentro para sempre. Até o fim do mundo. Foi a sua avó. Até fim de mundo ela já havia narrado para José nas poucas vezes que inventou contar histórias, A vovó vai contar uma história muito bonita. “Era uma vez…”, ela começava assim, e logo tomava outros destinos, quase todos em direção a qualquer lugar que fosse um caos, O castelo era muito, muito, muito lindo e depois caiu um raio e destruiu tudo, tudo, tudo acabou, o quarto, os brinquedos, a casa, tudo, tudo, o quarto, os brinquedos e a casa que eram de José. O apocalipse infantil. Ele ficava com os olhos assustados diante das narrativas da avó, os olhos desconfiados, até que, anos depois, o olhar do homem era o lamento da criança.
O inseto permanecia lá no alto, entre o teto e a parede, e do outro lado da porta a avó fez o seu pronunciamento com uma voz que lhe fez lembrar qualquer imagem assustadora de seus desenhos animados. A voz, surpreendente naquele instante, atravessou o buraco da fechadura, dócil, ele desconfiado, e a voz novamente dócil.
- Desça da cadeira, José! Desça da cadeira que a vovó vai empurrar a porta, e, se você não descer, você vai cair.
Ajoelhado, José pensou um pouco e sentou-se na cadeira, decidido a descer depois do que já havia imaginado. Perplexo, viu que o inseto estava descendo pela parede e as suas asas pareciam maiores do que antes. O inseto descia, e, enquanto se aproximava, José observava que as suas asas se avolumavam imponentes, prontas para um voo inexprimível em direção a qualquer lugar longe daquele. Entretanto, quando já chegava ao fim, a avó fez um novo pronunciamento e ele questionou se aquele inseto era igual ao bicho que ela disse existir dentro dele.
O inseto voou. Mas o menino não.
Ele voa, e eu não. Isso o menino não conseguia entender, as asas e o voo. O inseto voou. Ele ficou ali, parado. E a avó do outro lado, como se estivesse ali dentro.
O inseto voou e passou bem perto de sua cabeça no exato momento em que aconteceu aquilo que para ele foi um grande estrondo, mais do que um grande estrondo, O fim do mundo vai ser cheio de estrondos, muitos, muitos estrondos, não vai sobrar nada, nada. Final de uma das histórias de sua avó. Ele, assustado, soltou um grito por causa do inseto quase dentro de sua boca, quase pousando dentro dele: e o estrondo na porta como sinal do apocalipse prenunciado e espalhado em suas lembranças. Para José, aquela foi uma explosão muito maior do que havia sido, o inseto bem maior do que realmente era, a realidade confundida com a fantasia já quase sem lugar algum.
[...].

(In: Quase Jardins (2016), Editora Apenas, disponível em www.amazon.com

terça-feira, 1 de março de 2016

Enquanto o café chegava...


Não disse mais nada e foi em direção ao saguão do aeroporto, diretamente para o Café mais próximo. Com a sua natural inquietação em dias assim, pediu um café e começou a observar a atendente, que dividia a sua atenção com um sorriso e uma conversa entre os dentes com a outra atendente, como se o seu café fosse a coisa menos importante para ela e para o estabelecimento. Era exatamente essa a sua conclusão. A falta de atenção no serviço ou seja lá em que sentido for sempre lhe fora motivo de indignação.

Sentiu vontade de sair dali e, ironicamente, agradecer o café que parecia nunca chegar. Mas não. Ele esperaria que a moça cheia de sorriso e conversas disfarçada entre os dente chegasse com o café e, então, ele lhe diria tudo o que estava sentindo por causa daquele descaso, isso sem nem mencionar a sua ansiedade ofegante, prestes a explodir dentro dele, afobado pelo sabor do café para ele viciante e que, mesmo que nem sempre, o ajudava a acalmar a sua ansiedade.

Enquanto a atendente aguardava aquele curto café cair de vez dentro da pequena xícara, ele empurrava para dentro do seu estômado tudo o que ele planejava expressar naquele momento em alto e bom som. Assim que a atendente colocasse o café sobre o balcão, ele planejou, desabafaria com ela sem nem se importar se todos o achariam ridículo e, logo em seguida, exigiria a presença do gerente.

E foi assim que, na sequência dos seus pensamentos, ele ficou ainda mais perplexo e indignado com o desenrolar daquele instante... Olhou bem firme para a atendente, os lábios trêmulos de nervoso, a fumaça do café já quase desaparecida, o aroma que lhe acalmava desaparecia no ar, e ele sem acreditar que, em num mesmo dia, mais um incômodo embaralhava a sua paciência.

“Como assim, a gerente não está?”. Ele perguntaria, ao que ela, a atendente, cheia de “sorrizinhos irônicos entre os dentes responderia: “Não senhor, ela não está mesmo. Foi ao almoço e costuma demorar um pouco”. Ela respondeu, com uma ironia mal disfarçada e acrescentou: “Felizmente!”. Ele ouviu muito bem, e então decidiu tomar o café, sem dizer uma palavra sequer, interrompendo as suas elucubrações antes que o dia se tornasse ainda mais incômodo.

A atendente, por sua vez, começou a preparar outro café, o cliente seguinte, mais uma história desconhecida das dezenas e centenas que passava por ali, todos os dias. Ela, pacientemente, tão próxima e tão distante de cada um deles, sem nem mais sentir direito o aroma e o sabor daquele que lhe fora imposto propagar ser o melhor café de toda a cidade.