domingo, 15 de maio de 2016

"Quase Jardins" (Trecho do romance)

[...].
O bicho estranho que a avó dizia futucar o menino não se sabe se existia, se era mito, se era lenda, se loucura ou outra mentira da avó, Mentira, mentira, eu não tenho um bicho dentro de mim, eu não tenho um bicho, José afirmava e repetia para si mesmo, sozinho. O menino dentro do quarto imaginava um bicho de pernas longas, finas e enrijecidas, quase monstrinhos a andar dentro dele, um bicho de duas longas asas que voavam em seu corpo em busca de um pouso dissimulado e era corrosivo. Ele olhou para as paredes e viu um imenso inseto subindo, subindo até o alto, e fez a travessia no teto diante de seu olhar apreensivo.
Ele viu.
As pernas longas, finas e enrijecidas, e que cresceriam muito até ficarem deste tamanho assim.
O bicho parou bem no canto da parede.
Por um momento, José ficou com o olhar para o alto, alheio às palavras da avó que se alternava entre suposta brandura e intolerância. As mãos na cintura, ela imponente, e tudo se tornou tanto, de modo que ele desejou ficar ali dentro para sempre. Até o fim do mundo. Foi a sua avó. Até fim de mundo ela já havia narrado para José nas poucas vezes que inventou contar histórias, A vovó vai contar uma história muito bonita. “Era uma vez…”, ela começava assim, e logo tomava outros destinos, quase todos em direção a qualquer lugar que fosse um caos, O castelo era muito, muito, muito lindo e depois caiu um raio e destruiu tudo, tudo, tudo acabou, o quarto, os brinquedos, a casa, tudo, tudo, o quarto, os brinquedos e a casa que eram de José. O apocalipse infantil. Ele ficava com os olhos assustados diante das narrativas da avó, os olhos desconfiados, até que, anos depois, o olhar do homem era o lamento da criança.
O inseto permanecia lá no alto, entre o teto e a parede, e do outro lado da porta a avó fez o seu pronunciamento com uma voz que lhe fez lembrar qualquer imagem assustadora de seus desenhos animados. A voz, surpreendente naquele instante, atravessou o buraco da fechadura, dócil, ele desconfiado, e a voz novamente dócil.
- Desça da cadeira, José! Desça da cadeira que a vovó vai empurrar a porta, e, se você não descer, você vai cair.
Ajoelhado, José pensou um pouco e sentou-se na cadeira, decidido a descer depois do que já havia imaginado. Perplexo, viu que o inseto estava descendo pela parede e as suas asas pareciam maiores do que antes. O inseto descia, e, enquanto se aproximava, José observava que as suas asas se avolumavam imponentes, prontas para um voo inexprimível em direção a qualquer lugar longe daquele. Entretanto, quando já chegava ao fim, a avó fez um novo pronunciamento e ele questionou se aquele inseto era igual ao bicho que ela disse existir dentro dele.
O inseto voou. Mas o menino não.
Ele voa, e eu não. Isso o menino não conseguia entender, as asas e o voo. O inseto voou. Ele ficou ali, parado. E a avó do outro lado, como se estivesse ali dentro.
O inseto voou e passou bem perto de sua cabeça no exato momento em que aconteceu aquilo que para ele foi um grande estrondo, mais do que um grande estrondo, O fim do mundo vai ser cheio de estrondos, muitos, muitos estrondos, não vai sobrar nada, nada. Final de uma das histórias de sua avó. Ele, assustado, soltou um grito por causa do inseto quase dentro de sua boca, quase pousando dentro dele: e o estrondo na porta como sinal do apocalipse prenunciado e espalhado em suas lembranças. Para José, aquela foi uma explosão muito maior do que havia sido, o inseto bem maior do que realmente era, a realidade confundida com a fantasia já quase sem lugar algum.
[...].

(In: Quase Jardins (2016), Editora Apenas, disponível em www.amazon.com