quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"Em caso de acidente", de ALA: Uma leitura

"Em caso de acidente", publicado no Segundo Livro de Crónicas, percorre a estrada de um possível desejo de partir, ir embora, tudo tão bem articulado, planejado desde a afirmação, destacada entre parênteses, e que pontua que “as chaves estão sempre no prato da entrada”. As chaves ali, atraentes, convidativas até que deixam de ser simplesmente chaves e passam a representar uma viagem, não desejada ao acaso, e construída ao redor de recordações e possibilidades outras que deslocam o narrador do seu presente instante. Um desaparecer sem livre de marcas de quilômetros ou de cidades, o próprio nome esquecido, e esquecidos, também, os nomes da família e do livro, não um livro qualquer sobre as estantes ou abertos sobre a mesa: “do livro que não acabo de escrever e que me angustia.”

O homem, a criança e o escritor, de repente, juntos. Todos, o mesmo. Sozinho, o escritor com o desejo de ir embora, pressionado pelo livro “inacabado” e a angústia do que falta, do que resta, o fim. E é ai que a criança entra, talvez como fuga, e entra o pai, a proteção, o abrigo, e a viagem é outra, o volante é outro: e ele segurava o guiador da bicicleta enquanto o seu pai corria ao seu lado, “me ensinava a pedalar”. E o pai, agora, o possível desejo da sua presença para proteger, também, o escritor, o descanso da escrita.

Depois, o retorno ao mesmo ao mesmo lugar de onde não houve a partida, de fato. O retorno às páginas que faltam e nelas todas as palavras e a continuidade do romance, ponto essencial na crónica Em caso de acidente e que nos leva a pensar a sua escrita entre a produção de um romance e a angústia que leva o escritor a experienciar uma vontade de ir embora: “Fazer romances. Publicá-lo. Receber telefonemas do agente acerca do contrato, de traduções, de prémios. Receber as críticas da editora, longos cortejos de elogios sem nexo de quem não entendeu e louva sem haver compreendido. Ou então sou eu que não compreendo.” E é assim que a voz repete diversas vezes a sua vontade de ir embora, e, ainda que não seja a vontade, é o estado de ser capaz de ir, refazer, abandonar a presente identidade e seguir.

"Em caso de acidente" é mais um lugar de representação da escrita, evidências e realidades que registram o quanto o árduo está paralelo ao prazer na construção das grandes obras. Aqui, lembramos o próprio Lobo Antunes: "Creio que os escritores em geral não trabalham muito os seus livros, não os corrigem. E é uma pena porque, por vezes, trata-se de uma única palavra, mas uma palavra que pode ser fundamental." (BLANCO, María Luisa. Conversas com António Lobo Antunes). É assim que o prazer devora o árduo em ALA, e o que nos chegam são textos lapidados, leituras exigentes.

domingo, 15 de agosto de 2010

Quase

Depois de um tempo em busca de um título para o romance, acredito que encontrei um que muito me agrada, por definir bem o enredo, a partir de palavras que considero essência do texto, como rio, quintal, jardim, gavetas, água, muita água em suas metáforas.
O que é e o que não é “real” num mundo construído pelo pensamento, pelo desejo, pela existência das coisas que “não são”? As verdades de cada coisa, a força da imaginação, a visibilidade das coisas, tudo construído pela palavra e pelo olhar. O olhar de cada um, e o alcance das imagens de cada um. É lá que está o horizonte.
Real, denso, bastante denso, mas há ali algo de esperança: gavetas e mais gavetas de onde cada personagem guarda ou retira os seus rios, as suas águas, os seus quintais, os seus jardins, os seus pedaços, e as suas vivências silenciosamente compartilhadas. Por mais escassos que sejam os diálogos, há ali a voz de algumas palavras, mesmo que calada. É quando surgem os murmúrios, a voz que deixa de ser quase calada, o grito, o olhar, e novamente um silêncio nem sempre denso, nem sempre distante, nem sempre ausente, mas ali, afetos compartilhados, sutilmente depois o círculo, ininterrupto.
Já revi os dois primeiros capítulos, e agora já avanço no terceiro. Ao ler o primeiro, que estava com 23 páginas, senti vontade de abandoná-lo. Começaria tudo a partir do segundo capítulo. A sensação de que eu já estava cansado demais para rever, reler, enxugar, refazer… Mas não, eu sabia que ali estava o começo, a matéria, eu tinha a matéria, faltava a paciente restauração das ideias iniciais que chegam às vezes com muita volúpia. Pronto. Agora são 20 páginas, e sei que além dos cortes feitos nos demais capítulos, outros ainda acontecerão, outras palavras serão substituídas e frases que serão reestruturadas. Mas é exatamente assim, uma busca que parece incessante.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Enfim, a conclusão do romance. Ainda sem título

Dia 4 de Agosto de 2010. Acredito que já posso dizer que conclui a escrita do romance. A história. O enredo. O texto. Duzentas páginas e mais algumas. Entretanto, há ainda um caminho a percorrer, o qual não considero tão fácil. É o lapidar de tudo, uma primeira leitura do texto completo, o reconhecimento de tudo que ficou impresso, marcado, as inquietações e os prazeres revisitados. Eu até já iniciei, hoje, mesmo quando já havia reconhecido que a mente estava cansada, o peito ofegante e ao mesmo tempo em contentamentos. Abri o arquivo com o primeiro capítulo, sete meses atrás, e nele já fiz alguns cortes, mudei de lugar algumas palavras, mas não mexi em sua ideia.
Meses acumulados, e, lembrando C. Drummond, “de tudo fica um pouco”. A escrita em Lisboa, em casa, na sala, Biblioteca Nacional, Esmoriz. E depois, o final. Foram horas em busca de encontros com as melhores sequências, os melhores diálogos, e que não são tanto, sono comprometido, os pensamentos e vozes dos personagens me levando, de vez em um quando, a novamente acender a luz, abrir o computador e transcrever as suas palavras e pensamentos antes que no amanhã tudo podia ser esquecido. É o que acontece tanto, e, nesses momentos, pode ser fundamental ouvir as vozes que insistem em serem transcritas naquele momento. Não apenas a voz dos personagens, mas a do narrador que não pára de pensar, e dita, e repete, e permanece, mesmo inconsciente, a elaborar, perceber, captar a hora certa, o lugar certo, as coisas certas, ainda que nada ainda tão definitivo.
Três dias para a conclusão do último capítulo, e eu sem conseguir interrompe-lo durante qualquer tempo do cenário final. Que jardim era aquele? Que jardim? É uma entre as interrogações que ficaram. Ou, simplesmente, lugar de todas as coisas, enfim. Alguma espécie de jardim que possa ser chamado de “paraíso”.