quinta-feira, 11 de maio de 2023

terça-feira, 25 de abril de 2023

Um abraço pela metade


Abriu a porta bem devagar com aquela saudade dentro do seu peito, guardada desde quando há dez anos havia partido para voltar no mês seguinte. Abriu a porta bem devagarinho, com aquele desejo guardado no coração. O desejo de fazer-lhe uma surpresa com o seu abraço e com os seus olhos cheios de emoção, e correndo para os seus braços, sem desgrudarem os olhos um do outro, e aquele calor em seu peito, sem precisar de palavras para dizer eu te amo e eu te amo também.

Abriu a porta com aquele suspense retido no coração, uma aflição por não saber se ainda era esperado, e um impacto grudado em suas bruscas recordações: o menino correndo pra lá e pra cá, hora da merenda das três horas da tarde, café com leite, pão com manteiga, fatias de bolo de laranja, qualquer coisa que anunciasse que dali a pouco seria a hora do banho, a tardezinha chegando, e os seus sonhos que rompiam até mesmo a escuridão da noite. Foi bem deste jeito. Pensamentos tumultuados por acontecimentos, e não sabia mais como se controlar frente ao encantamento.

Ficaram ali abraçados sem dizer uma palavra sequer. Apenas aquele suspiro tão fundo e carregado de espanto pelo que parecia nunca mais acontecer. As pernas se batiam umas nas outras, os corações se empurravam pra lá e pra cá, e os rostos quase um queimando o outro.

Ficaram abraçados naquele estado de comoção até que ele percebeu que o abraço que lhe acolhia foi aos poucos, bem aos poucos mesmo, se soltando dele e o coração deixando de pulsar junto do seu. Ele com tanto desejo de se manter acolhido, ao menos por mais um pouco de tempo, mas ela olhou dentro dos seus olhos, com uma dor escondida durante tantos anos, e, numa atitude inesperada, olhou ainda mais fundo, deslizou os seus dedos sobre o seu peito, recuou-se, lentamente, e num gesto brusco o empurrou para trás, desfazendo de uma só vez todo o abraço guardado durante dez anos.

“Desgraçado!” Ela disse, com um olhar melancólico. “Por todos estes anos, você só pensou em você mesmo, e desconheço a sua saudade. Suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo até que sumiram de vez no meio de tudo que foi sendo encontrado lá fora. E eu aqui grudada no telefone, e grudada na sirene, e grudada no correio que nunca mais chegou.”

E ele, sabe-se lá se coitado, entalado com o abraço cortado pela metade, ficou ali parado com os braços entreabertos, enquanto ela se afastava olhando em seus olhos e repetindo as mesmas palavras e outras que ele já nem conseguia definir o que diziam. Ela continuou afastando-se até que as suas costas bateram na mesa, e ela virou-se de costas e arrancou as flores artificiais que havia dentro daquele jarro de vidro transparente e as jogou em seus próprios pés. Logo em seguida, pegou o jarro e, com veemência, o lançou aos pés dele, que permaneceu sem dizer uma única palavra sequer.

A mala bem ali ao seu lado. Uma bagagem desconhecida, quem sabe um presente que demonstrasse que em algum momento ela havia sido tão lembrada naquela terra que, para ela, era terra desgraçada, terra que encantava e roubava sentimentos alheios. Ela olhava para aquela bagagem, pequena demais para quem esteve fora desde uma década atrás, e, enquanto isso, ajoelhou-se, apertou a cabeça entre os seus braços, e deu um grito tão alto que ele achou que fosse grito de doido.

“É grito de doido!” Ele pensou, apavorado pelo risco de ter trazido de lá de fora a loucura para dentro daquela casa. A boca travada, a cabeça novamente cheia de recordações: o café com leite derramado sobre a mesa, a orelha vermelha igual a brasa, ele injustamente levado ao castigo, e aquele choro sem fim.

O grito que ele já imaginava ser grito de doido encheu toda a casa e pulou janela afora. Ele deu um passo à frente, e parou quando ela deu um passo para trás. Foi neste momento que ela olhou bem mais dentro dos olhos dele, levou as mãos até a gola do seu vestido e o rasgou de cima a baixo, expondo toda a sua nudez guardada por tantos anos.

Ela andou direção a ele, sempre em passos lentos, abaixou-se diante dos seus pés, pegou sobre o chão um dos cacos do jarro, retornou alguns passos, ele atônito, ela controlando todos os olhares, e, de uma só vez, apertou, dentro das suas mãos, aquele caco pontiagudo. Ele, trêmulo, levou as mãos ao rosto, tornando turva a sua visão, enquanto ela foi em direção à porta, ainda aberta, e saiu em passos longos pela rua afora.

Mais cinco anos se passaram. Mas ele, sempre silencioso, nunca deixou de visitá-la naquele quarto cheio de medicamentos, nem de acariciá-la quando ela permitia, e nem de levá-la para passear por aquele jardim tão arborizado, embora o ache tão sombrio.

"O silêncio e a bagagem" - Contos (Nova Edição 2020, Revista)

Capa: Nana Andrade - andrade.nanaf@gmail.com

Apresentação

Este livro – O silêncio e a bagagem - representa um espaço literário que convida o leitor para encontrar sentido e significado em seu próprio silêncio e em sua própria bagagem. Cada história apresenta uma riqueza de personagens e de detalhes do quotidiano, cada uma é única, porém há um fio condutor que parece unir todas as histórias: a voz da bagagem do mundo subjetivo que mundo exterior com seu movimento frenético e incessante tenta calar. I. Luiz Andrade revela a força brutal do mundo concreto que deseja de alguma forma suprimir os anseios mais intensos e relevantes do ser humano. A realidade com seus infinitos e por vezes insignificantes detalhes que insistem em desviar o olhar do próprio sujeito, da sua importante demanda interna para as resoluções práticas do dia a dia. O silêncio, tão marcante em todas as narrativas no livro, revela que o calar é também uma forma de viver e resistir aos inúmeros apelos da vida quotidiana. A bagagem que habita o mundo interior se recusa a aceitar todas as premissas que a realidade exige e o silêncio é momento de soberania do sujeito, esse feixe de emoções quase totalmente subjugado aos acontecimentos da vida.

I.Luiz Andrade trabalha em sua escrita de forma única justamente o quase, aquilo que quase é dito, que quase é feito, que fervilha nos pensamentos dos seus personagens e toca assim a forma de ver e estar no mundo do leitor.

A vida concreta dos personagens, o dia a dia, os afazeres tentam calar a força torrencial do mundo interno. É justamente a sutileza e o mistério que habitam o mundo subjetivo dos personagens que é explorado pelo autor do livro, que percorre com maestria os labirintos interiores que estruturam os sujeitos fictícios que na verdade representam os sujeitos reais que somos todos nós, que também experimentamos diariamente essa luta entre a voz ininterrupta da realidade em contraste com a importante voz interior. É justamente no momento de silencio, de pausa, de um certo vazio, que os personagens percebem que há algo para além do concreto, algo que estrutura e preenche a existência humana. Algo que dá sentido e dignifica a caminhada de cada um com o seu silêncio e a sua bagagem.

I. Luiz Andrade mostra toda a fragilidade que é constituinte do ser humano: o medo, o tédio, o desejo, a tristeza, a competição. As falhas internas são expostas justamente nos momentos de silencio, nas pausas que a vida involuntariamente proporciona deixando as personagens e o ser humano à deriva, mostrando que todas as redes de segurança são construtos artificiais que nos ajudam a lidar com o grande caos que é existir.

Esse livro é um convite para que o leitor conheça melhor todos os recantos da sua subjetividade: aquilo que nos alegra e que nos cala, aquilo que nos fortalece e aquilo que nos amedronta, aquilo que nos faz suspirar e aquilo que nos fazer ter receios.

As belas narrativas proporcionam um mergulho intenso na interioridade humana, mostrando toda a sua potência e todas as suas fragilidades, a promissora possibilidade de completude e a marca da falta, do vazio, daquilo que é impossível nomear e que mora no mais profundo de todo ser humano.

Trata-se da segunda edição de O silêncio e a bagagem. A primeira publicação ocorreu em 2008. Após mais de uma década, o autor decidiu presentear o leitor com uma nova edição, tão instigante como a primeira, pronta para transformar a vida do leitor, pois uma excelente leitura como essa que o livro nos proporciona, torna o nosso mundo mais vasto, mais amplo, as perspetivas do nosso olhar ganham novas cores e nuances. A realidade interna e externa ganham outras e incríveis proporções a partir da leitura das narrativas presentes neste livro.

Cláudia Souza.

Lisboa, Outono de 2020.

Instagram: claudiafernandopessoa