quinta-feira, 28 de março de 2013

A névoa e o trigal



Ao dobrarem a esquina já não eram as mesmas pessoas, já não eram as mesmas vestes, já não eram os mesmos ornamentos. Nada mais era a mesma coisa, e, por mais que as vestes fossem outras, as pessoas que surgiam ao dobrar de cada esquina eram a mesma. Uma única pessoa, apesar das feições diferentes. Por dentro, o ser igual, idêntico como máscaras pintadas ou esculpidas em séries múltiplas. Todas as pessoas eram a mesma pessoa, embora as mesmas sensações fossem expressas de maneiras diferentes.

Ao dobrarem a esquina, as identidades unificavam-se. Era algo mais ou menos assim. Todas as multifacetações resultavam numa espécie de homogeneidade criada por moléculas de número infinito, e já não havia diferença alguma.

Na última esquina do quarteirão, a perplexidade foi inevitável. A sólida avenida entre um quarteirão e outro havia desaparecido, e, do outro lado, o que havia era um trigal tão grande que o olhar não conseguia enxergar o seu fim. A distância entre um quarteirão e outro permanecia a mesma, mas a avenida já não era um solo firme e resistente. Uma parte havia se transformado numa areia movediça e outra parte num lamaçal escorregadio e profundo. De um lado, o trigal resplandecente; e, do outro, o olhar paradoxal: assustado e admirado, apavorado e contemplativo.

Lá no fim da avenida, num lugar que se tornou muito distante, havia, entre um lado e outro, uma pedra grande e outras pequenas pedras afastadas uma da outra em uma distância de passos largos. Algumas pedras eram movediças; e outras firmes. Para lá, apenas um encaminhou-se, portando o seu longo casaco e os seus anéis de ouro e prata, abandonados no meio do caminho distante e coberto pela névoa acobreada que surgia atrás dos seus passos, ele atraído pela euforia de cada dia.

Precisava alcançar as pedras, fazer a travessia, descobrir as pedras movediças e delas se desviar, alcançar o trigal, colher o trigo, preparar o pão, se ainda lhe fosse permitido. Precisava que aquela imensa pedra fosse confiável e não se movesse ao fundo, precisava, e contava com pouco tempo, muito pouco tempo.

E eis que, de repente, surpreendeu-se imensamente com o que acabara de ver. Imensamente.

sábado, 23 de março de 2013

Palavras no papel em branco



Tão simples o papel em branco sem nada
Exposto sobre a mesa ampla sem nada mais
Nada mais além do papel em branco à espera de quaisquer palavras
que caibam perfeitas na melodia que ecoa na sala cheia de móveis brancos e as flores amarelas enfeitando os dois jarros de cristal.

A canção intensa sem palavras escritas, lidas
As palavras imaginadas enquanto a canção promove intraduzíveis imagens de tão grandioso instante.

O papel em branco cheio de palavras invisíveis
Palavras e palavras invisíveis e tão marcantes como se fossem impressas em tábuas e pedras, em rochas e troncos
des
li
zan
do
As palavras deslizando entre o doce silêncio da alma e a cumplicidade do papel em branco e silencioso,
guardando a eternidade de um instante enfeitado de flores reluzindo em seus cristais.

sábado, 9 de março de 2013

A Névoa Imponente III



Todos permaneceram com o olhar diante da imensa cortina, confeccionada com milhares e milhares de metros de tecidos. Ao fundo, um tecido mais pesado, cor de trigo seco no campo, e na frente um tecido leve, ornamentado com todos os candelabros, transportados do imenso tapete metamorfoseado. A cortina de tecido fino flutuava, sobrevoando ao menor sinal do vento. Esses instantes revelavam ainda mais os candelabros, todos idênticos, balançando em cada sopro do vento, por mais leve que fosse. Os candelabros flutuavam até o alto, e retornavam no acalmar do vento.

Toda a multidão havia novamente silenciado pelo impacto do acontecimento jamais presenciado. Cada um se sustentava em suas próprias conclusões: algumas semelhantes, outras adversas, alguns sem qualquer habilidade para dar significado, e outros extremamente atormentados ou extasiados.

Em poucos segundos, um a um retomou a indagação inicial: o outro lado, o detrás, o que estaria do outro lado. O que? O que será que existe do outro lado? A montanha? O rio? Ainda haveria a montanha? E o rio, ainda existiria? Poucos, bem poucos, acreditavam que sim, mas a cor do tempo parecia insinuar que não. A grande expectativa agora era a de que a cortina se abrisse diante de todos, embora nem todos quisessem ver. Receio, muito receio, enquanto outros se revelavam em entusiasmo, ávidos.

De repente, um som de murmúrios encheu todo o lugar. Cada um ouvia apenas o próprio balbuciar, que, ao se reunirem, causou um efeito sonoro de trovão abafado a milhões, bilhões, trilhões de quilômetros de distância. Naquele momento, uma nova névoa surgiu do nada, do nada, absolutamente nada que sinalizasse algum surgimento das coisas, e cobriu toda a cortina. Lentamente, diante do olhar extasiado de muitos e do olhar assustado de outros, a névoa novamente desapareceu. E assim, já não havia cortina. Absolutamente. Não havia cortina, mas todos os candelabros que dela se desprenderam. Todos. Na sequência daquele instante breve, um a um dos candelabros se colocou, exatamente, detrás do primeiro de todos, e se tornaram em um, apenas um.

Um imenso candelabro de seis hastes, três de cada lado. Reluzente, tão reluzente que nenhum olhar conseguia enxergar o que havia do outro lado. Tudo o que havia ou não havia do outro lado era apenas no campo da imaginação. Uns imaginavam uma coisa, e outros imaginavam outras. Alguns, vislumbravam imagens bem semelhantes e quase perfeitas; e outros, tudo o que viam era imagens diferenciadas, todas turvas e desconexas. Alguns, acreditavam ainda haver a montanha e o rio; outros, a montanha ou o rio; e outros, nem a montanha e nem o rio.

terça-feira, 5 de março de 2013

A névoa imponente II



Em grande expectativa, todos observavam o desfazer da névoa. Uma dissipação que se dava como um encantamento pronto a se manifestar diante do olhar admirado ou apavorado de cada um. Enquanto a névoa se dissipava, todas as imagens que nela se viam começaram a se movimentar, uma ao encontro da outra, até que se juntaram e se metamorfosearam em uma única e grande imagem. Apenas uma, e impressionante.

Envolto no resto de névoa, surgiu um imenso tapete suspenso numa altura de pouco mais de um centímetro do chão e que se estendeu para o alto, até se perder de vista. De dentro dos tapetes, entre os seus finos fios de algodão surgiram outros fios que se entrelaçaram e teceram um imenso candelabro dourado, e depois outro, e outro, e outro, e outro, e outro, e outro, todos do mesmo tamanho. Tudo numa velocidade de poucos segundos, enquanto uma parte da multidão admirava ainda mais, e, igualmente, outra parte se assustava.

Mas a perplexidade geral se deu quando um vento breve e repentino surgiu sobre aquele tapete e o transformou em uma imensa cortina em tons harmônicos e de beleza indescritível. Naquele momento, a névoa cessou de vez, e a imagem era agora perfeita e real, surgida aparentemente do nada: do espaço e do ar. Os fios tecidos pela névoa se confundiam com algo, um algo que permanecia sem nome. Ninguém conseguia decifrá-lo. Ninguém conseguia, a não ser admirar ainda mais, extasiados, enquanto outros se assustavam, apavorados.

sábado, 2 de março de 2013

A névoa imponente



Era impossível enxergar o que havia do outro lado. Tudo o que se via era uma névoa profunda semelhante a uma nuvem cheia de imagens que se desfazem e ressurgem em outras. (Você já viu nas nuvens imagens que se assemelham a rostos de pessoas? Você já viu nas paredes ou no chão imagens que se assemelham a rostos de pessoas, a imagens de animais, a qualquer coisa que parece ser mas que não é nem mesmo uma cópia do real?) Imagens bem efêmeras e que se desfazem por elas mesmas ou por algum vacilo do nosso olhar.

Tudo o que se enxergava eram imagens disformes naquela névoa cheia de movimentos turvos, imagens transfiguradoras. Mas ninguém conseguia enxergar o que havia detrás da névoa. A névoa, apesar de não ser matéria concreta, se impunha absoluta como infinita muralha do espaço e do tempo.

Do outro lado, havia o invisível. Tudo o que lá estava era invisível e inenarrável. Tudo o que se tinha de lá era o que o imaginário de cada um conseguia formar, visualizar, compor. Até que, pouco a pouco, a névoa foi se desfazendo. Pouco a pouco, a névoa se desfazendo. Pouco a pouco.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Palavras (in)visíveis



Dentro do olhar
Palavras

Ocultas
Ilegíveis
Obscuras

Palavras infinitas
Exatas
Claras
Nossas

Dentro do olhar
Palavras

Intraduzíveis
Indeléveis
Intimas
Opacas

Palavras invisíveis
Intocáveis
Nossas.

Dentro do olhar
Palavras
Ora inabaláveis
Ora frágeis.