quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Quase véspera de aniversário


Era quase véspera do seu aniversário e ela estava a percorrer as ruas da pequena e elegante cidade em busca de um lugar. Ela desejava um lugar onde todos coubessem confortavelmente lá dentro. As taças de vinho sobre as mesas e nas mãos de cada um dos convidados, o vinho sendo movimentado como suaves ondas dentro das taças. Algumas, ainda cheias, e outras quase vazias. Ali ao redor, algumas garrafas imponentemente eram expostas à espera de alguém. De repente, ela interrompeu o pensamento e o sorriso para a mesa inteira. Criteriosamente, ela havia procurado um lugar para a sua festa, e alguém. Alguém aguardado pelas garrafas de vinho, e que já estava ali, quase todos, e alguém que ainda não havia chegado, ou que ainda chegaria.

E o que não chegaria.

Não naquele seu aniversário, não naquela comemoração, não naquela felicidade. Mas outro dia, quando outras taças, quando outro vinho, outra comemoração. “Sempre haverá de existir outro dia para qualquer que seja a felicidade”, ela pensou, em uma mistura de sentimentos que oscilava entre o prazer de estar ali entre encontros e ausência.

Nem todos chegam no mesmo dia, nem todos chegam na mesma hora, nem todos chegam para a mesma festa. Ela estava segura disso. Então, sem disfarce algum, pegou a sua taça e, enfim, brindou aquele dia. Ela queria estar radiante, mesmo sem outras certezas que ela queria.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A bola azul no mar

Era um dia de muito azul no céu:
O menino pegou a bola azul e jogou dentro do mar
A água trêmula do mar azul levava a bola pra cá e pra cá
Pousando a bola nas margens que não era de cor azul.
Tão azul era a bola, e azul era também o mar.
Não.
Não era azul o mar, era a água do mar
A bola azul do menino balançava pra lá e pra cá
Na água azul do mar.

sábado, 24 de outubro de 2015

Um sutil sorriso do silêncio

O silêncio amanheceu com um sutil sorriso num dos cantos da boca, meio sorriso e meio silêncio. Percorreu a sala, olhou pela janela e viu o vento, contemplou a luminosidade opaca do nublado da paisagem, abriu a janela, sentiu o cheiro do tempo, cheiro de tempo com o cheiro que subia da terra molhada, a chuva que cessara, o vendaval que cessara, o coração bem mais desacelerado que no dia anterior, quando o ventania, o temporal, as horas incessantes... O coração agora batendo brando, as horas passando brandas, um vento brando tocando em seu rosto... E contemplou no fio da eletricidade um pássaro que acabara de pousar. (Parecia-lhe também tão reflexivo!).

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Clandestinas intuições


Depois de viver as mais diversas variações das suas histórias, depois de novamente acreditar que entre eles tudo já havia sido resolvido e que agora viveriam em paz para sempre, depois de desistir e acreditar que não havia mais jeito além da separação definitiva, depois do vai-e-vem só lhe restou uma alternativa, já que as anteriores nunca deram certo: virou-se pra ele e disse que um dos dois terminaria louco naquela história. Ele se tornaria louco ou a enlouqueceria.

Passou então a viver na perspectiva de observar quem se entregaria de vez à loucura, “justo numa época em que asilo para doentes mentais entra em plena extinção e devem ser acolhidos pelos esperados afetos familiares.” Em meio aos seus acessos de crises, ela olhava bem pra ele e se lembrava de tantas personagens excêntricas, reais e irreais, quase reais das telenovelas. Olhava para ela mesma, quase lhe suplicando para não ser enlouquecida, e insistia na idéia de que entregar-se à arte poderia lhe fazer um bem imensurável. Quem sabe, seria uma excelente escultora e construiria em cera ou em bronze o coração perfeito para os seus anseios, assim pensava. Ela não desgrudava, da cabeceira da sua cama, aquele livro de esculturas que atraiam o seu olhar a tantas divagações. “A Suplicante” e “O Abandono”, imagens a alimentar as distorções dos seus sentimentos e que lhe expressavam algo que ela nunca conseguia explicar.

Eles se amavam. Amavam-se muito. Era uma história de um amor tão grande que vale a pena um dia parar pra contar. Uma mistura do mito de Tristão com o mito de Don Juan. No entanto, ela já não mais sabia se valia a pena pagar por um amor o preço de uma loucura. Ele não suportou quando em um só ano ela resolveu fazer tantas mudanças em sua vida, e ele se afundava no trabalho para esquecer tudo o que, meticulosamente, imaginava como razões destas mudanças. Ela também trabalhava muito, e ele não conseguiu disfarçar que achava uma ameaça as tantas vezes que ela falava do alto cargo que a sua colega de trabalho havia alcançado. Tinha certeza de que aquilo era uma espécie de aviso para ele, alertando-lhe de que ela também chegaria lá, custasse o que custasse, e que ele, com aquela visão de que não se precisa tanto para viver, não sairia daquele “desgraçado curso supletivo”.

A mudança que ela fez em um só ano foi realmente demais para a sua cabeça. Começou a pagar as prestações de um carro novo, e inventou fazer vestibular pra Direito, e ele, para não ouvir mais uma vez que era um desmancha prazer e invejoso, por nunca conseguir passar na prova do supletivo de matemática, química e física, engoliu em seco aquela sua decisão e sofreu mais uma insônia terrível naquela noite. Ela pulou de contentamento, ligou para aquela sua colega que havia subido de cargo e pra tantas pessoas mais, quando dias depois viu o seu nome na lista dos aprovados. Ele a abraçava entre um sorriso e uma mágoa de derrota travada no peito. Com a mente rica de insinuações, enquanto parabenizava-lhe, dizia, para o seu próprio coração, que estava perdendo a sua mulher. Entregava-se a imaginações diversas, e depois vivia a angústia provocada pelas cruéis imagens das suas clandestinas intuições. Mas ela ainda o amava muito, e ainda seria até capaz de parar pra pensar se valeria a pena deixá-lo por um curso de direito. Enquanto isto, a fertilidade da mente dele já a tornara numa advogada ousada, numa juíza cheia de poder, mulher liberada, deliberada, audiências e mais audiências, e ele naquele maldito supletivo com as provas de matemática, química e física por fazer.

No primeiro dia de aula... Meu Deus! No primeiro dia de aula!... No primeiro dia de aula, ele fez questão de chegar mais cedo em casa. Ela estava tomando banho, e ele ficou ali sentado na cama, observando todas as suas atitudes até ela sair de casa. Um caderno novinho, um caríssimo livro sobre leis, comprado precipitadamente, lápis, borracha, caneta, e o rastro do seu perfume que ficou cravado em seu ciúme. Ela estava vestida como nos demais dias se vestiria para alguma ocasião daquele tipo, mas, para ele, no escondido dos seus medos, ela nunca estivera tão bonita e perfumada. Começou a pensar nos colegas e professores que ela teria, e passou a desconfiar de cada um deles. Apesar disto, ele muito se esforçou para não manifestar essas reações, receio de ser visto como criança boba, ciumenta, encrenqueira, como desde criança lhe acusavam. Meses de noites torturantes para ele, ainda mais por ter que dar mais atenção às crianças, resolver problemas pendentes, papéis, pagamentos, obrigações que ela sempre cumpria da melhor maneira possível.

Um semestre inteiro se passou, e ele nada disse, embora torcesse para que ela se percebesse incompetente, fosse reprovada em todas as disciplinas do curso, e voltasse a ter a feijoada do fim de semana como a melhor diversão da família. Ela realmente teve dificuldades nas aulas e notas insatisfatórias, porém, uma força que parecia escondida num lugar que só ela sabia, se manifestava dia após dia, e as suas notas se superavam uma após a outra. Ele aguardava cada resultado, ansiosamente. Um, dois, três, quatro. Cinco. No máximo. Eram as notas que ele desejava para os seus resultados. E estava cada vez mais difícil esconder as suas frustrações, ciúmes, mal humor, desculpas de horas extras para não mais ter que dar tanta atenção às crianças.

Entretanto, ele nunca demonstrou tanto rubor em seu rosto como no dia que ela anunciou mais uma mudança naquele ano. Uma mudança que, de certa forma, também resolveria uma das suas maiores queixas: peito flácido, peito pequeno, peito isto, peito aquilo. É verdade que ele tratava desse assunto com o maior cuidado para não magoá-la, mas, no dia em que virou para ele e “marquei minha plástica para uma semana após o inicio das minhas férias da faculdade”, ele, numa cara de completo espanto, virou-se pra ela e: “Plástica?” Imediatamente visualizou aqueles seios fartos se esfregando nos rostos dos colegas, professores e chefes. Ela anunciou os trezentos e cinquenta miligramas de silicone que estaria usando, o que foi uma espécie de morte para ele, que nada pôde dizer, se tantas vezes reclamou dos seios que ele apalpava. Para ela, aquele rubor em seu rosto era sinal de que ele estava imensamente contente, porém, em seu intimo, ele não mais a desejava atraente, e remoía “por que justo agora?!”. Para ele, aqueles novos seios eram culpa dos colegas e dos professores da faculdade, que ainda se sentiriam atraídos, seduzidos, convidados pelo belo par de peitos que contornaria ainda mais aqueles olhos bem azuis.

O semestre acabou. Ela foi aprovada em todas as disciplinas, foi eleita líder da turma, passou quase uma semana das férias, dando total atenção a ele e aos filhos. Depois colocou o necessário em uma maleta, perfumou-se, e foi fazer o seu implante. Naquele dia, ele não aguentou e muito chorou, trancado em seu quarto vazio. Dias depois, após a quinta tentativa, apesar de ter sido com nota mínima, ele conseguiu ser aprovado na prova de matemática, e nem deu a noticia a ela.

A cirurgia ficou impecável. Os seios, perfeitos. Ele queria odiá-la intensamente, mas a desejava cada vez mais. Quase não suportou o início do novo semestre escolar! Tomado por uma consternação maior, desejou gritar para que ela não usasse aquela blusa tão decotada, não usasse aquele perfume que havia marcado o primeiro encontro deles, não penteasse os cabelos daquela maneira que ele tanto gostava, e nem usasse maquiagem, justificando que a sua maior beleza era a natural. O perfume que ela deixava pela casa torturava os seus pensamentos, aumentando a sensação de que ela já o abandonava, e abandonava os filhos, e abandonava a casa, e não gostava mais de feijoada. Até em pato ao molho de vinho e ervas ela já falava, e isto o deixava intrigado.

No decorrer desse novo semestre, ela já falava em Ricardo, Pedro Antônio, Xândre e outros colegas. Rotineiros trabalhos em equipe, reuniões aos sábados, apresentações de seminários, e as feijoadas do sábado eram cada vez mais canceladas. Ela, contente pela perspectiva de proporcionar uma vida melhor à família; ele, se sentindo traído, e aqueles seios que não o libertava do sentimento de não mais serem apenas seus. Seu rosto se entristecia cada vez mais, a sua mente lhe torturava quase sem medida. Dominado por estes impulsos, ele passou a segui-la até a faculdade, a observar as suas saídas, a controlar o horário dos seus retornos, e ficava revoltado por não confirmar as suas conclusões tão convictas.

“Ou eu ou a faculdade”, foi a sua primeira manifestação verbal, justo no dia em que ela havia retornado pra casa com tantos elogios. Foi tudo de uma forma brusca e inesperada. Ela nada entendeu, e ele foi “tirando dos cachorros” e jogando nela. De repente, sentiu a juíza se quebrar em mil pedaços, suas promoções sendo canceladas, as agradáveis reuniões em equipe sendo suspensas, e nunca mais poderia ver Xândre, o mais divertido da turma. “Ou eu ou a faculdade”, ele repetiu, pausadamente, diante do seu silêncio perplexo. Ela até pensou que ele estivesse brincando, mas pensou também que ele estivesse ficando louco igual ao primo da mãe dele, louco depois de atormentado por criativas obsessões. Ele falava tudo o que havia guardado durante meses. As suas veias se excitavam na altura do pescoço, uma espuma grossa se avolumava pelos cantos da sua boca, e ele, alheio aos olhos apavorados dos filhos, desabafava todas as suas conclusões: que ela se insinuava para todos, que era oferecida, que estava lhe traindo, que seria corroída pela sua própria ambição, e outras coisas que ela ficou com vergonha de contar. Ela, estática, segurando firme a sacola com os novos livros que acabara de comprar.

A sua vida estava um inferno, ela disse. Não conseguiu nem chorar, tomada por um forte estado de choque. E ele a chamava de cínica, e dizia que aquele seu silencio era a própria confirmação de tudo. Ainda assim, ela permaneceu calada até que ele chorou desesperadamente um choro de criança. Sentou-se no chão, apoiou os seus braços no sofá, apoiou a cabeça sobre eles, e começou a soluçar. Ela pediu que as crianças fossem para o quarto, aproximou-se dele, tocou em sua cabeça, pensou nas várias histórias que ele havia contado da sua infância, beijou os seus cabelos e lhe disse baixinho que nada daquilo era verdade, que ele era o amor da sua vida, e deu-lhe uma grande noticia: no dia seguinte, trancaria o semestre na faculdade. Ele, então, ficou muito envergonhado pelo vexame que acreditava ter dado. Ela pegou em seus braços e ajudou a levantar aquele homem de corpo forte, robusto e tão mais frágil do que ela.

Na cama, ele pediu perdão por tudo. Dizia que ela era a mulher da sua vida, que não a deixaria por nada, que confiava nela, e que concluísse o seu curso na faculdade. Aproveitou e disse que havia sido aprovado na prova de matemática e que assim que passasse nas de química e física faria vestibular para engenharia. Empolgou-se dizendo que juntariam muito dinheiro e passariam uma lua de mel nas Ilhas Gregas, onde Xândre havia passado as suas últimas férias. Ele beijou muito o seu corpo naquela noite, ocultou a tormenta de ciúmes ao tocar em seus seios, e os tocava da maneira que ele imaginava que só ele sabia tocá-los.

No dia seguinte, ele estava novamente muito sério. Sem olhar em seus olhos, disse que realmente seria melhor interromper o seu curso na faculdade. Mas, para a sua surpresa, ela foi incisiva e não mais concordou em abrir mão de um futuro que lhe atraia. Ele voltou a insultá-la e, daí pra frente, a vida foi se tornando cada vez mais em altos e baixos. Num dia ele a amava, noutro dia dizia odiá-la; num dia, ela acreditava que ele estava enlouquecido; noutro dia, achava que era tudo por amá-la demais. Nestas variações, ela decidiu que realmente seria juíza, e que, apesar do seu amor, a porta estava aberta para ele escolher o seu próprio destino. Foi quando ele passou a se rastejar aos seus pés, alternando esta atitude com ameaças de divórcio e xingamentos sem fim.

Foram quase quatro anos nesta desavença. Fantasmas corroendo aquela alma, ela muito abatida, mas com propósito de não se desanimar com a vida. Perderam-se muito em meio às suas variações emocionais: malas diversas vezes arrumadas e desarrumadas, quartos separados por vários dias, e os seus retornos perdendo o sentido. Um não mais sabia quem era o outro, ou quem eram eles mesmos.

Exatamente hoje foi o dia da sua formatura. Ela sentiu a sua falta, e a última noticia sobre ele foi que, recentemente, havia sido aprovado na prova de física. Embora sentisse a perda daquele amor, nunca deixou de se encontrar com Xândre, o mais divertido da turma. E, para comemorar a formatura dos dois, foram jantar pato ao molho de vinho e ervas. Apenas os dois.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Mas que jogo?


“Eu não estou entendendo nada do que você está falando.” Respondeu à insinuação sem saber exatamente em que direção manter o olhar. Mas estava entendendo sim. Surpreso. Muito surpreso. Mas estava entendendo sim. Dizia isto apenas para tentar disfarçar o seu impacto ao ouvir o que estava ouvindo. Não era possível não ter sido tão secreto o seu esconderijo! Assim pensava, quase sem tempo para descobrir onde havia falhado. “Não está entendendo?” E ela repetiu tudo novamente, em entrelinhas, da maneira mais clara e dolorida repetiu, sem qualquer intenção de perversidade, mas com o propósito de esclarecer que o jogo havia acabado. “Mas que jogo?” Ele perguntou, ainda sem acreditar. A sensação de uma forte, muito forte pancada em sua cabeça, e de tudo, absolutamente tudo ser levado em meio a uma correnteza forte, em um rio sem rumo. “Mas de que jogo você está falando?” Tentou um desafio. “Quer que eu diga palavra por palavra de que jogo eu estou falando?” Ela retrucou, cautelosamente, no mesmo compasso em que, sentada sobre aquela excêntrica poltrona alaranjada, ela passava a folha seguinte, daquela outra saga, a qual ela estava lendo. A cabeça se movia quase imperceptível, enquanto os olhos se alternavam entre o livro e os intensos olhares sobre ele, que permanecia quase imóvel diante dela.
Ele não respondeu se seria necessário que tudo fosse dito ou repetido palavra por palavra. Então, ouviu a mesma pergunta, de forma ainda mais compassada, dilacerante. “Vou a cozinha pegar água.” Foi a sua resposta. Atrapalhando-se sobre o tapete, saiu em direção à cozinha. As pernas trêmulas, visivelmente. Ela o acompanhou com o olhar e percebeu o seu nervosismo que, de certa maneira, lhe dava prazer. Intimidá-lo amenizava a sua dor. Parou o olhar sobre o nada e respirou uma dor em alguns cinco segundos.
Na cozinha, algo se espatifou no chão. Ela levantou o olhar, mas, não ouvindo qualquer outro ruído naquela direção, insinuou retomar a leitura.
Ele parado na cozinha, tenso. O copo aos pedaços espalhados pelo chão molhado. Olhou aqueles cacos com um olhar apavorado, e não enxergou nada, além dos seus próprios pensamentos atormentados: “E agora?”
Ela na sala. O olhar congelado sobre as letras embranquecidas. Decidida. Fim

sábado, 20 de junho de 2015

À meia-luz


Em meio àquela busca do exato poema de Adélia Prado, desejado para aquele instante, inevitavelmente único, a taça de vinho tinto se descontrolou de sua mão, impulsionado por tantas imagens e palavras de significados múltipos. Um impacto. Sensações interrompidas, e se renovando.

O vinho se espalhou repentinamente sobre o sofá branco. Marcas incisivas de desejos se misturando ao poema perdido, guardado entre tantas páginas, e revelando sentimentos intraduzíveis. Aquela mancha quase sutilmente constrangedora, mas era uma mancha de vinho entrelaçado em desejos contundentes, encorpado, enquanto o som do último poema ainda suplicava: “me dá a mão, me cura de ser grande.”

A noite em meia-luz, e a capa de tecido que revestia a poltrona vermelha foi retirada, gentilmente, como se nada tivesse se estragado. O vinho já dilatando o desejo, instante de um afã quase suplicando os momentos seguintes: o que seria, o que poderia e precisava acontecer para transformar a noite em mais um poema que cura um menino de ser um homem grande.

A estante cheia de livros, outros poemas, a música, as letras pausando cada instante, tudo se fazendo prazer, tudo meio explicado, apenas meio explicado. Nada precisaria ser tão explicado. Não ali, enquanto tantas coisas marcavam... Tantas coisas marcavam... Coisas? Mas o que são coisas? Questionavam poucos dias atrás, em busca daquelas explicações que ficam misteriosamente perdidas entre os olhares secretos, entre os segredos discretos, entre as palavras não-ditas, até que perceberam que nada daquilo se fazia necessário, se a cumplicidade era mesmo silenciosa. E intensa. Falaram algo a respeito de Kant, e fizeram uma breve pausa. Coisas, tantas coisas desde dias atrás.

A última gota de vinho foi derramada, exatamente no centro da taça, imagina-se. E, determinantemente, anunciava com uma voz velada, bem velada e sussurrante, que logo as taças estariam vazias.

As taças quase vazias.

As taças vazias.

Em suas mãos, um calor daquelas mãos aquecidas, paradas sobre a sua pele. Os olhares que deixaram de ser apenas desconfiados, o quarto bem ali, bem próximo, e o colchão coberto com uma bonita colcha colorida.

A meia-luz agora quase escurecida. A colcha, colorida e tão bonita, amassada pelos cantos da cama. E, finalmente, o prazer em ouvir aquele poema lindo, sem nem mais saber se ainda desejava ser curado de ser grande.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Quase interlocuções


"Nunca contei nada de importante a quase ninguém. Fui me fazendo sozinho, obstinado, secreto." "Grite, repeti-me inutilmente com um suspiro de profunda quietude"... "... fechei-me na casa de banho para não me ver chorar." Louco. Uma loucura impenetrável pela lucidez tardia... "... acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago...” Lispector. Lobo Antunes... Versus (in)versus, o primeiro que escrevi. Algumas coisas infantis. Reli Lobo Antunes hoje... Ele é mesmo fantástico.

A vida muda. Mudanças e emudecimentos. Imagino o dia de amanhã como o primeiro de muitos bons dias... Ainda bem que temos tantas outras fases depois das que não desejamos! Reflexões depois de algumas leituras interessantes: a vida pode nos surpreender com um amor que nem imaginávamos existir. Bobeira pensar que já vivemos o maior amor, pois, muitas vezes, ele ainda está por vir, até o dia em que chegar. Não sei se é possível explicar essas coisas.

Amores redescobertos. Hoje, novamente, pensei muito no filme As Horas. Laura. Clarissa. Clarice. Vaughn. Lispector. Virgínia. Cenas incessantes.

Fui dormir feliz ontem! Eu precisava ouvir tudo aquilo que ouvi... Eu precisava dizer tudo aquilo que disse... Muita coisa para ser discutida... Somos às vezes tão bobos! Um pouco da ingenuidade que não se vai para sempre... Amanhã às 13:30 vou trabalhar no lugar de M. Preciso pensar no que melhor fazer, pois foi uma emergência e fui avisado hoje. Hoje não estou conseguindo me lembrar de muitas coisas. Limitado estou às boas palavras que ontem ouvi, disse e senti ao telefone, e das coisas tantas que ficaram em meu coração. Alguém vai mudar de estado e cidade. Alguém, certamente! Distância pode tornar-se quase nada, você sabe disto. E eu também sei. O prazer da relação deve triturar a distancia. Alguém precisa mudar de cidade. Morros, serras, mirantes... É lá, ali, aqui onde está o duradouro ou o efêmero de cada um!

Já comi tanto doce hoje! Chocolates desde ontem... E pastel de goiabada.... Rssssss....

Preciso terminar de escrever o artigo. Memórias! Preciso concluí-lo, mas vou parar de repente, sem a preocupação de ter concluído ou não. Às vezes, escrever é assim, parece que nunca está pronto. Essa coisa cheia de prazer e às vezes neurótica. Ler, ler, escrever, escrever, corrigir, corrigir. Façamos de conta que concluímos ou não.

Meu Deus... realmente basta termos paciência e muitas coisas podem melhorar, curar, sarar! Acontecer. Tantos pensamentos juntos! É assim, às vezes. Algumas vezes conheci a dor dilacerante, e não posso ter dúvida que um dia um alívio chega. E essa vida correndo e pulsando dentro e fora da gente... Mesmo angustiado, temos que ter visão, e ter coragem. E paramos, e morremos um pouco, mas buscamos forças e prosseguimos, e fazemos o maior esforço para limpar os joelhos, e encontramos a vida sempre, novamente. E, como doem os joelhos! As marcas, as dores, mas, um dia, apenas cicatrizes, cicatrizadas, quase totalmente curadas. Quase, pois a memória tem também os seus percursos sutis, leves, secretos, e costumam, às vezes, querer nos levar a rever as fotografias velhas e amareladas do passado. Mas não mais nos assustamos com elas. Fotografias velhas são fotografias velhas e os nossos joelhos precisam estar sarados. Não sacrificar tanto os nossos joelhos. Cuidar da mente, do coração, dos traumas. Crescemos, e não podemos dar tanta margem aos traumas. Tudo tão complexo! Buscas. Enquanto digo isso, sou tomado pela cena em que Richard, em rugas e em grisalhos se recorda da sua infância... “Mamããããããe...” Que cena! E ainda mais acompanhada daquela música. P. Glass. Laura! A vida e tantas fotografias. Aquela foto em preto e branco... Aquele grito... E o impressionante O Grito, de Munch; e o grito de Bergman, Gritos e Sussurros... Amo esse filme. Consegui alguns filmes dele. Morangos Silvestres, Através de um espelho... “Traçamos um círculo imaginário ao nosso redor, para afastar aquilo que não faça parte do nosso jogo secreto.” Se a vida rompe esse círculo, os jogos ficam sem sentido... “e construímos um novo círculo e novas defesas.” Acho esse discurso muito interessante.

Deixemos as fotos guardadas, e passemos a tesoura nelas... Crot crot crot... Somos muito mais fortes que as fotografias passadas. Não se justifica que fotografias sejam mais do que nós, afinal, fotos são apenas imitações da vida. Benjamim! Rsss... Crot crot crot.

Estou ouvindo As Quatro Últimas Canções, de Strauss. Sou apaixonado... Apaixonado. Textos e músicas cortantes... As minhas saudades do agora, as minhas lembranças do presente instante, os meus desejos, o amor... A vida. Os sonhos que sempre se renovam, e renascem, e são regados mesmo quando sobram apenas as últimas gotas... Gotas se multiplicam e se multiplicam... e podem fazer oceanos, se lutamos e lutamos e novamente limpamos os joelhos. E, como diz Richard, “Mas ainda restam as horas, certo? Passa uma, depois outra, você atravessa uma, mas ai tem a outra.”

Eu não queria viajar pra ai hoje. Queria ficar aqui dentro de casa, terminando de ler Mrs. Dalloway... e, assim que acabasse, ir à rua e comprar o novo livro de V. Woolf, lançado recentemente no Brasil, capa dura, vermelho meio vinho, erotizada...

(o cheiro do quarto ou quinto café que preparo hoje...)

Eu comendo letras, tragando-as pela minha emoção deste dia... rsss... Esta flor no “porta-retrato” está bem erotizada... O sexo se dilatando, se abrindo, deixando as mãos agora abertas, o desejo aberto... Hoje folheei Os Cem Melhores Poemas. Determinar os cem mais, os dez mais, pode parecer meio complexo, mas, partindo da visão de cada um dos conhecedores do assunto... Nos Cem tem Ana Cristina César, Adélia, Bandeira, Torquato, Vinícius, e A. dos Anjos, “toma um fósforo. Acende teu cigarro!”, e tem Bandeira, João Cabral, tanta coisa boa... Uma vez li um pra papai e ele caiu na gargalhada. Filosofia de Ascenso Ferreira: “Hora de comer – comer! Hora de dormir – dormir! Hora de vadiar – vadiar? Hora de trabalhar? – Pernas pro ar que ninguém é de ferro.”

Vontade de doces. Rsss... “Sempre dando festa para esconder o silêncio!” As incessantes imagens de Mrs. Dalloway! O silêncio e tantos significados. Eu não quero que seja hoje!... Aquelas coisas ditas e repetidas: desejo antes o abraço que ainda não dei, e antes o beijo que ainda não senti, e antes o sexo que não gozei, e antes o olhar nos olhos e dizer novamente "eu te amo"... É preciso sempre reencontrar a vida, caso contrário, ela passa todas as horas, enquanto perdemos tanto tempo diante do nada, e diante das perguntas sem respostas, e diante do vazio repetitivo e que não produz solução alguma. Não perder o reencontro. Eu preciso muito deste encontro ontem, mas ontem passou, e preciso deste dia junto de mim, bem junto da minha alma e do meu corpo.

Por um lado, eu queria estar agora pelas ruas da cidade que não é esta! Andaria todos os quilômetros rumo a este encontro de hoje. Vontade de andar pela avenida solitária e silenciosa, e andar pelos caminhos silenciosos da noite quase escura.

Quero chorar. Um choro de tanta saudade, e não alimentar saudades utópicas. Fantasiar a vida, quando necessário. Fantasias diversas, e o brincar com elas quando a dor suplicar. E gritar com ela, se for preciso, mesmo que ela seja mais que eu. Beijos, e até amanhã. Eu preciso arrumar a bagagem. Sempre arrumo a bagagem no último instante.

Publicado em "O Silêncio e a Bagagem"

terça-feira, 21 de abril de 2015

Noimarel e a varinha que não era de ouro

e depois ainda teve coragem de cutucar com vara curta para ver se era verdade. Nem precisou cutucar pela segunda vez, pois S.P.T já foi logo levantando os ombros e levantando as mãos e estendendo as mãos, e os seus olhos foram se expressando de uma maneira estranha e insinuando que estava pronto a fazer qualquer coisa para realizar os seus desejos. Não os seus próprios desejos, mas os dele, que estava bem ali diante do seu olhar disfarçado de quem nem estava prestando atenção em seus passos. Ai pronto, foi só falar em realizar desejos que a cabeça de Noimarel deu logo aquela enlouquecida guinada e imaginou-se fazendo todas as coisas que a sua carne trêmula desejava. No princípio, até que ficou desconfiado da veracidade daquele sorriso, pois não podia acreditar que tantos prazeres estavam bem ali diante dos seus olhos: e ele poderia colocar o seu próximo passo no degrau que ele mais ansiava. Até que pensou que poderia haver alguma verdade que não as estampadas nas promessas cantaroladas, docemente, por S.P.T, pelas quais, ele, Noimarel, era capaz de dar a sua vida enfeitada com cores e com roupa "luxenta", “podre de chic”, como ele gostava. Aqueles ingressos plurais em suas mãos, o dinheiro da moda, um álbum cheinho de fotografias com tantos rostos à mercê de uma liberdade de escolha a três por quatro, no quarto ou na rua. Mas, se ao menos as coisas parassem por ai!...

No entanto, exatamente depois de ter acontecido tantas coisas que lhe doeram em tantas partes, achou de cutucar S.P.T com a vara curta, de tão quebrada que as suas pontas já haviam sido. No começo, até que ficou com aquele meio receio: quando alguns filmes antigos, e de ontem, e de sábado, e do mês anterior passaram iguais a relâmpagos e trovões pela sua cabeça. Mas, depois da primeira manifestação de ter sido espicaçado e atiçado por S.P.T, havia travado uma guerra: aparentemente sutil. Dessa história contaram que, no primeiro vacilo dado por Noimarel, S.P.T fez de conta que estava se espreguiçando e, naquela de estirar os braços, foi lá e “crau”: puxou aquele pedaço de vara que já estava tão curta e a tornou em mil pedacinhos: a ponto de suas unhas ficarem bem encardidas por aquela estranha tinta furta-cor. Neste momento, ele teve um sintoma de pânico e até sentiu uns calafrios estremecendo a sua garganta. Porém, não se sabe se foi mágica, mas sabe-se que, diante do seu olhar espantado, S.P.T juntou aqueles pedacinhos de madeira até que, de repente, a vara estava inteirinha novamente. Tudo isto diante do olhar perplexo de Noimarel, que foi tomado por um desejo compulsivo de observar cada foto daquele álbum de fotografias. S.P.T virou as costas por uns poucos segundos e, quando virou de frente, foi com aquele sorriso largo, misterioso, e estendeu diante dos olhos de Noimarel uma varinha completamente dourada de um puro ouro, que de tão dourada não suportou a própria sedução e virou fogo: aquele ouro se esparramando pelo chão. Noimarel, que se achava tão esperto e dotado de todas as peripécias de ocultar as suas ações irreveláveis, quase deu um grito de pavor, mas, sorriu ao concordar que aquela varinha poderia encantar todos os seus desejos de sedução e planos outros. Pronto: em meio a calafrios, nem percebeu que uma porção de cera vermelha havia caído diante dos seus pés: vinda daquela varinha que era mais do que de condão. S.P.T tinha a mórbida mania de usar este gesto como um selo de acordo, sorrateiramente!

Noimarel ficou ali meio querendo sair e meio querendo ficar, quando percebeu que um terceiro calafrio fez estremecer todo o seu corpo. Disfarçou que tudo era uma brincadeira: da vara, um livro de páginas velhíssimas foi lançado aos seus pés. A capa era novíssima, como impressa naquele exato momento. Olhou bem para o título do livro, e tomado por um pavor, correu para o seu quarto, que já não era o seu quarto. Percebeu que estava tão escuro, que ele seria capaz de fazer qualquer coisa para voltar ao brilho daquela varinha que só podia mesmo era ser mágica. Ficou ali titubeando. De repente, foi tomado por uma angústia que se misturava com as tantas coisas maravilhosas que dizia estar vivendo. Estranhou aquela escuridão e lamentou baixinho o estar num abominável e bolorento quarto gelado, onde, de forma obscura, a desejada luz havia atravessado os vidros da janela que ele mesmo havia pintado num dia de muita euforia. Ficou ali pensando estas coisas, e estas palavras pareciam ecos de palavras que lhes eram intimamente presentes.

Não suportando aquele negrume, recorreu ao brilho misterioso da varinha de condão. Daí pra frente, como se tomado por algum efeito de poção mágica, foi se entregando a todos os caminhos que ela lhe conduzia. Abriu aquele álbum de fotografias e fez viagens dionisíacas. Suores pelo seu corpo, umidades de prazeres em suas entranhas, embalado pelo erotismo de um gosto musical peculiar. Sentia o impregnar de tantos corpos ao seu, num verdadeiro fluxo de consciência. Luzes diversas estavam brilhando em sua vida, uma verdadeira festa como sempre ambicionava. O seu sorriso se alargava e já nem mais sentia saudades de algum tempo: se o seu futuro lhe era promessas de tantos álbuns de fotografias fascinantes.

Um dia, porém, o pêndulo voltou a oscilar para trás. Pode parecer estranho, mas o primeiro indício perceptível foi uma crosta grossa que começou a nascer em sua cabeça, entrelaçando em cada fio dos seus cabelos, enraizando pela sua testa, em volta das suas orelhas, até se manifestar no meio das suas costas. Pode parecer estranho: o seu perfume foi invadido por um mal cheiro que afetava todos os seus hálitos. Então, numa madrugada em que o seu peito se corroía de tremor, levantou-se da cama e, subitamente, se lembrou daquela varinha que havia se tornado em ouro até se tornar em fogo e, derretida, se espalhou pelo chão.

Num gesto de súplica, mesmo contra a sua vontade, evocou por S.P.T, mas não mais o encontrou. Visualizou o reluzir dourado da varinha, na tentativa de fitar a profundeza do seu brilho, entretanto, não encontrava forças ao sentir que aquela luz poderia destruir a sua retina. Queria penetrar o infinito em busca de respostas, mas, diante do que lhe era impossível, se sentiu lançado do êxtase do contentamento para uma dor que lhe ardia a alma. Deixou-se cair pelo chão e, sussurrando ao seu coração, queixou a si mesmo de um espetáculo tão maravilhoso e que começava a desaparecer diante dos seus anseios! “Tão somente um espetáculo, um espetáculo encantador!...” Lamentava. E falava de uma vontade de agarrar entre as suas mãos e o seu peito a infinita natureza que estava diante dele! “Nesta dor que em mim arde pareço me consumir!”, balbuciou; e chorou um pouco, com a escassez do seu choro. Lembrou-se da estranha permuta feita em busca de suas expectativas e da sua velada coragem em ceder o que de mais intimo possuía. Ficou ali prostrado com o rosto colado em seus desejos, até que uma meia-luz apareceu sobre os seus ombros e, garante ele, uma espécie de voz penetrou em seus ouvidos, dizendo que podemos ser livres para fazer a primeira escolha, mas que da segunda em diante pode ser que nunca nos seja cedida o comando. Enquanto ele refletia sobre estas palavras, um estridente e ensurdecedor assobio ecoou, pungentemente, em seu ouvido.

Em meio a uma melodia densa e inesquecível, ele ouvia palavras e assobios que dilatavam em seu peito a sensação de que eram semelhantes a ecos de uma história que muito já havia escutado.

sábado, 28 de março de 2015

A vida dentro da mala

A vida dentro de uma mala velha, fechadura enferrujada pela dor angustiante de um tempo passado. A coleção de relógios espalhada pelo chão, abandonada depois dos dias que mais nada parecia lhe interessar. A vida que se tornara mofa dentro da mala, forro em cetim que desde tempos atrás não mais resistiu às expectativas se esvaziando até tornar-se pó. Pó como a vida se torna, ferrugem como a vida se torna, quando se passa pela vida agarrados a passados que se foram, e amarrados aos dias que já excederam todos os seus limites. Abandonados. Abandonados os momentos que chegariam em êxtases. Abandonados, abandonados os instantes, os melhores instantes atravessando imperceptíveis pelas janelas, enquanto o horizonte grita quase se explodindo sobre os seus pés. Alheio aos seus olhos, o instante presente emudece; o olhar mofo, enrugado, necrose contornando as olheiras negras; e os olhos quase fechados, aconchegando-se doloridamente ao passado que nem existe mais.
A janela fechada e as portas quase lacradas para a claridade dos dias. A quase escuridão da casa em pleno sol latejando o mundo lá fora, alheio àquele universo reprimido por um ar morno, cheiro de tantas coisas guardadas, papéis e objetos plurais de sentidos, móveis que há tanto tempo fincaram as suas verdades em espaços imóveis. E ela. Ela incapaz de rever as horas, um peso em seu corpo, impedindo o movimento das paisagens encarnadas nas páginas dos livros que lhe foram os preferidos nos dias que se tornaram apenas recordações. O seu olhar turvo, cálido, nocauteando as imagens dos quadros na parede, prazerosamente adquiridos nos dias em que a vida era.
Tantos dias e tantos anos dentro de um só. Tantos dias e tantas horas em apenas um dia. Cenários mudos, o coração exausto, suportando a densidade das horas que, sem piedade, sobre ela caiam. Ela, agarrada ao silêncio e ao incessante fluxo dos seus pensamentos, nem percebeu que a casa havia escurecido de vez. Uma penumbra negra, melancólica, exasperada. Aquelas palavras lacradas e acolhidas pela sua memória, eternizada.

Em "O Silêncio e a Bagagem" (2008)

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Prefácio do livro "Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento" (2002) (Parte)


Enquanto ouço algumas das diversas histórias que surgem no dia a dia, inevitavelmente vou criando imagens, frases, parágrafos e, descompromissadamente, os visualizo como possibilidades de contos. Algumas vezes, tento transcrevê-los e percebo que não passam de empolgações de um instantes ou que nem tudo é contagiante quando vai para o papel. Parece haver o vazio da descoberta, ao menos para o ato de escrever, quando os significantes terminam não satisfazendo a angústia e o prazer da procura. No entanto, além de uma possível elaboração dessas histórias, mesmo correndo o risco de, algumas vezes, se tornar um texto insosso, é possível criar e recriar a partir dessas diversas situações. A história pode se tornar uma outra, independente, adquirindo a sua própria voz em meio a possíveis semelhanças entre o que foi e o que é.

Foi assim que comecei a elaborar e também a desistir de alguns contos. Alguns deles se perderam pelos primeiros parágrafos; outros insistiram em suas existências mesmo que para permanecerem engavetadas. Porém, mesmo desconfiado, fui acreditando que alguns deles, em meio a esforços e exercícios, conseguiram agradar a alguns leitores abertos a leituras, digamos, experimentais. Revisões diversas e a angústia de nunca vê-los impassíveis de mudanças. Até que um dia, como um frito de curiosidade e de desejo forte de arriscar, tomado por uma coragem de realizá-los como literatura, eles chegaram até aqui, se expondo, talvez pretensiosamente, como resultado de textos concluídos - até o instante de cada leitor prossegui-los com os seus próprios questionamentos e conclusões.

O primeiro desta série de contos é exatamente o que dá título ao livro. Era inverno de 2000 e, depois de um longo tempo olhando a imagem exposta lá fora, as árvores secas, as folhas amareladas e avermelhadas a rolar pelas ruas ainda com resto de neve, paisagem sombria e a me remeter a uma outra imagem longe, distante, porém muito mais próxima do que tudo naquele instante, frases foram sendo formadas na tentativa de transcrever aquela conexão de instantes. Surgiu, então, "Enquanto as folhas são espalhadas pelo vento", texto originalmente mais extenso do que o definitivo. Muitas vezes, as palavras vêm como correntezas fortes, emoções sem limites, informações sem medida, levando o texto a se exceder no seu objetivo inicial, havendo assim uma certa necessidade de ajustes em favor de uma sintonia maior com a literatura e, claro, com o leitor. Escrever nem sempre é se deixar levar por todas as emoções que nos invadem, mas tentar excluir o que nos parece excesso sem, no entanto, ferir o excesso que nos impulsiona a escrever. E, nesta ansiedade natural em busca de um certo equilíbrio, muitas folhas vão sendo espalhadas pelo vento, ora encontrando um aconchego, ora vivendo em seus desassossegos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Foi o silêncio


Foi o silêncio, my dear! Foi o silêncio que me fez calar assim
O silêncio que repousa depois de atravessar uma multidão inteira ao redor.
Percebe o que digo?
A multidão pode ser inteira, cheia de vozes, cheia de palavras, bem tal como o foi horas atrás, mas, ainda assim, suas vozes podem ser inaudíveis,
e não apenas.
Percebe agora?
Perceba que as palavras podem ser exuberantes, mas serem opacas e até invisíveis,
sem som algum a sair das bocas em movimentos e nada mais,
os lábios a gesticularem palavras num silêncio preciso.
É o silêncio, my darling! É o silêncio que repousa entre as flores do jardim, em movimentos determinados pelo vento...
O vento, my dear! O vento uiva como leão e murmura em silencio com a mais doce delicadeza,
mas não apenas.
E nem apenas o vento.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

a folha, a pedra e o rio


Preciso escrever qualquer coisa hoje e não encontro nada,
talvez a pedra que hoje vi no meio da rua
talvez a folhagem seca, seca mas bela, tão bela flutuando ao movimento do vento frio, bem frio,
aconchegante o frio e o bailar da folha, folhagens, as folhas cobrindo a pedra no meio do caminho.

Preciso escrever qualquer coisa hoje,
e lá fora encontro as palavras envolvendo as sensações,
algumas leves, tão leves e suaves e outras assim,
meio assim as sensações e eu sem saber ao certo se é a leveza ou se a correnteza é outra,
a correnteza no rio,
o rio dentro de mim e eu dentro do rio, lá dentro, lá dentro, eu navegando no rio,
a pedra e a folhagem dentro do rio, a folha flutuando, flutuando,
a folha tão bela flutuando no rio e a pedra lá no fundo
do rio.

Preciso escrever qualquer coisa hoje,
talvez eu fale de uma pedra no meio da estrada e tão logo eu fale de um rio,
mas antes e depois falarei da folha, a folha flutuando ao movimento do vento frio,
tão frio e suave, apenas o vento é o frio.