sábado, 24 de dezembro de 2011

"Tantas vezes a certeza é costurada como se fosse" ou "A noite silenciosa sobre a rua"


Depois que fechou a porta não pretendeu mais nada a não ser alcançar novamente a rua abandonada horas antes,
o que mais lhe importava era preencher o que havia ficado como lacunas num tempo anterior
(tempo que o imaginário parecia também ter abandonado com o seu jeito de confortar).
Na rua de prédios novos misturados a outros cheios de memórias,
Os seus passos pareciam bem mais pesados do que estavam,
(um resto de contentamento ainda no cheiro em sua pele
e as palavras que se misturavam em imagens e significados escorregadios e outros talvez jamais).
Os prédios cheios de memórias pareciam às vezes os mais belos e outras vezes ruinas.
Os prédios, cheios de vidros protegendo memórias embrionárias eram os mais belos e outras vezes não.
Tantas coisas às vezes não
tantas vezes a incerteza pulando como bolas, voando ao acaso, outras vezes em direção a um infinito logo ali, não ainda o Infinito.
Tantas vezes a certeza escancarada em respostas tão firmes
e nítidas como o próprio reflexo diante do espelho,
quando nem é preciso mergulhar tanto lá dentro para perceber o exatamente das coisas.
De lá do alto das janelas cheias de vidro, havia visto, lá fora, a noite silenciosa sobre a rua,
enquanto o cheiro de memórias se tornava ainda mais intenso em sua pele:
“Tantas vezes a certeza é costurada como se fosse resposta firme e nítida das coisas e do ser”. Pensou,
enquanto andava pela rua, ao amanhecer,
e concluiu que tantas vezes as certezas são apenas alinhavos.

domingo, 11 de dezembro de 2011

O cheiro do perfume nos fios do casaco de algodão


Depois, entregue à perplexidade previsível não para si mesma,
arrumou o que lhe faltava na pequena mala quase vazia.
Apenas algumas coisas,
a intuição do que lhe seria o suficiente para os dias que nem sabia quantos,
ou se meses,
ou se anos,
ou se para sempre.
Pegou o casaco preto, ainda com os cheiros de perfumes que se misturavam nos fios de algodão
e nem quis olhar mais nada,
apenas um livro na estante, quando retornou da porta de saída e o tomou em suas mãos.
Depois foi ao quarto, e sobre a cômoda um vazio, sem mais as palavras que sobre ela permaneceram durante os últimos dias de leituras, e trechos relidos.
Nem sabia se era aquilo o que pretendia fazer,
E a respeito preferiu não pensar.
Desceu as escadas, impaciente pela espera do elevador, e na rua não hesitou em logo atravessá-la, na pretensão de que assim estaria abandonando a inquietação do espaço que se tornara angustiante,
desde quando, no impacto de um instante, havia rasgado as fotografias coloridas que enfeitavam as paredes e estampavam nos belos porta-retratos momentos agora apagados. Tudo assim, ainda que um possível desejo de que não o fosse.
No taxi, o motorista insistia em conversar coisas desinteressantes,
e o silêncio,
até a estação, movimentada por tantos pensamentos dos transeuntes, viajantes que chegam, que partem,
e ela viajante, sem saber se partia ou se chegava, enquanto olhava os horários adiados: se mais cedo, se mais tarde, se hoje, se amanhã,
e uma respiração confusa se misturava ao cheiro daquele perfume impregnado nos fios de algodão do seu casaco, não o seu perfume, mas o outro,
aquele cheiro que parecia chegar até a sua alma.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O que há dentro da taça vazia?


E de onde surgiu essa ideia de que nada vezes nada é nada? E de quem é essa conclusão cheia de certeza de que não há algo lá dentro, algo lá nos cantos do lugar chamado Nada, o lugar, há um lugar que se chama Nada, há um desejo que se chama Nada, há um estado de fazer que se chama Nada, O que você deseja? O que você está fazendo? Nada. Nada? O desejo cheio de nada é um desejo cheio de coisas mais. Sublimadas? O desejo lá no inconsciente nunca é nada, é muito mais, até desconhecido, se o desconhecido houvesse no íntimo, absolutamente... O íntimo de quê? Dos diálogos silenciosos e gritantes e tão diversos, adverso, o alter-ego, o ego, o inconsciente, tudo na velocidade do pensamento. E o nada? O que você está fazendo? Nada? E pensar é nada? Nunca o pensamento parado por completo, ainda que uma linha quase invisível, quase pluma, quase uma fita transparente como aquilo que está por detrás do olhar que não o do outro, o Outro, quem o Outro? Lacan, o olhar do outro sempre, sempre ligado aos fenômenos de... Unheimlichkeit, letra por letra dessa coisa que se chama Estranheza quando as letras de cá... Estranheza? O Outro é esse lugar de questionamento do sujeito, Nada? Como não há nada se tantas coisas surgem nesse instante misterioso, enigmático, tudo parado, o silêncio aconchegante, acolhedor o silêncio e, daí, o pensamento cheio de coisas assim caladas e a fala, o discurso, essa outra coisa do Poder do discurso, tudo invisível, o Outro seria aquilo que para Freud é o inconsciente... Impossível. Impossível dizer que nada vezes nada é nada se tudo surgiu assim de um nada, de repente, mesmo que sem lógica, sem sequência, fragmentos que se juntam, se fazem, se tornam, se unem, e há alguma unidade, diferentes as unidades do fluxo de consciência. Joyce. Quem? Joyce. Talvez, tudo tenha vindo de lá, das águas, aquela água tão azul, o dia tão azul e tão cinza e tão íntimo na taça repleta em suas margens. As suas margens. Não a sua borda. O que há dentro da taça vazia?

sábado, 12 de novembro de 2011

E as horas permaneciam sem pressa alguma


E quando mais uma vez pensou que havia decido, amanheceu o dia seguinte como se fosse o mesmo dia de antes, quando era ainda a dúvida. Havia ido dormir com a tranquilidade da decisão tomada, e acordou com ela ainda sustentando a sua inquietação, calma inquietação naquela manhã, até que à tarde. Foi nela, durante a tarde, que viu que nada mais permanecia firme, sustentando a provável decisão que seria imutável. Foi pouco a pouco, quase imperceptível, que novamente começou a ceder, desacelerar o ritmo das suas palavras, amenizar o tom da sua voz, até que se viu silenciando-se diante de uma voz repetida, palavras repetidas, tudo outra vez à sua frente: o amanhã pintado, novamente, com as mesmas cores de antes, e outras mais.

Nada mais seria como havia imaginado resolutamente. Nada mais. Tudo desfeito como outras vezes, e se agarrava a enfeites elaborados com os seus sonhos, o tempo adiado, as festas de final de ano agora dentro de outro plano, refazer, retomar, e prosseguiu, enfeitando a cidade que passara a anoitecer mais cedo e que lhe provocava um movimento introspectivo, mas que, lá no íntimo, nada mais lhe era estranho. Não era. A tarde turva antecipava a noite, e as horas permaneciam sem pressa, impotentes. A cidade toda enfeitada em tons cinza, de névoa, de repente contornada por cores outras cores, ainda que o colorido, ainda que os enfeites, ainda que...

Interrompeu o pensamento, quase com um grito. Um cansaço de pensar, um cansaço em achar que sim, em achar que não, em remarcar as horas, os dias, as datas, mentalizá-las e delas fazer verbos. Assim, novamente ganhou as ruas, pintando todas as calçadas com cores chamadas Felicidade. Contentava-se em chama-las de felicidade, e depois já dizia que não, que sim, que não, que sim, feito brincadeiras feitas com flores cheias de pétalas, lado a lado as pétalas, arrancadas uma a uma até a pétala final.

domingo, 6 de novembro de 2011

"coisas ficam para trás"


Foi até o fim, mesmo percebendo que não havia mais nada lá dentro, lá no fundo, lá no final, mais nada além de algum resto de coisas que ficaram por acaso, e que ninguém se importava em rever, recuperar, pegar, “coisas ficam para trás”, pensou enfaticamente e se apegando à certeza de que teria que prosseguir.

“Coisas ficam para trás”, repetiu naquele momento, desejando que aquele fosse apenas mais um instante alheio, não seu. E repetiu que coisas ficam para trás, horas, dias, tempo, o tempo sem círculo, sempre linear, sempre a linearidade a ampliar a distância, por mais que íntimo, por mais que o pensamento, por mais que a força das recordações, por mais que a vivacidade do olhar, sempre lhe parece que a linearidade do tempo é mesmo mais forte, criando crostas em vidros embaçados, opacos.

Embora mantivesse o seu olhar em direção ao que ele não enxergava à sua frente, foi inevitável o breve instante em que olhou para o canto, não apenas o da estante já quase vazia, mas, e muito mais, para um canto outro, aquele que o fez engolir aquela saliva travada na garganta, como se fosse pedra.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Não apenas as folhas


E quando os cantos dos pássaros interiores cessaram, ele percebeu que era hora de tudo novamente. Tudo novamente, no balançar das árvores libertando tantas folhas sem direção e outras. Tantas outras folhas com destino certo, um porto seguro, ainda que o desconhecido lugar do pouso. Não apenas as folhas. Muito menos elas, as folhas.
Não mais estranhou o que antes chamaria de qualquer coisa desordenada. Não mais respirou o angustiante receio dos acontecimentos imprevisíveis, não mais o receio das horas que se faziam vagas, secas, impávidas. Não mais.

Decidido, não repetiu expectativas de esperanças que não eram, nem se esforçou para que o instante fosse adiado se visíveis eram dentro de si mesmo o contrário de tudo. Não mais os devaneios embalados por canções repetidas, distorcidas, embalando o fingir de uma existência do que não mais havia dentro de si mesmo.

Os cantos dos pássaros cessaram e a imaginação agora era outra, por mais que inventasse ser diferente, por mais que fosse, por mais que tentasse, por mais que no teto estendido sobre a sua cama enxergasse todas aquelas coisas pintadas, tintas coloridas pingando sobre o seu rosto.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Mergulho íntimo


Lá no alto, na janela da sala enfeitada de lustres dourados e repletos de lâmpadas que de cá de baixo nem dava para contar quantos eram, ela repousava o seu rosto envelhecido e melancólico, contrastando-se com os requintados móveis que compunham o ambiente do mais elegante prédio da rua. Ela, misteriosa, e o transparecer da decadência de um tempo que lhe doía no peito uma fragilidade que faz doer além.

Ela, em seus cabelos enfraquecidos pelas tinturas que, durante anos, apagavam parte do tempo, prostrada na janela, sem nem mais um resto de entusiasmo em pentear as suas mechas antes volumosas, as pernas torneadas e ela a desfilar nos salões mais famosos da cidade. Ela, sempre cheia de expressões e gestos entusiastas, eufórica, e agora a impotência intensificada pelas recordações dos exuberantes vestidos em decotes que realçavam os seus seios rijos, e a pele nunca imaginada em vigor perdido. Era sempre o adiar das horas de que nada é eterno se os passos sobre a terra. Um momento único, aquele, como outros momentos que repetiam o silêncio de um tempo que nunca mais outra vez. Ela estática, movimentando o tempo em suas recordações que se embaralhavam em saudades.

Num breve instante imprevisível daquele final de tarde, apenas a janela escancarada, apenas o lustre realçando todo o esplendor da sala, apenas mais um instante, e muito mais que o mundo inteiro nas recordações: o mundo íntimo, mergulhado, até o fim.

sábado, 3 de setembro de 2011

"As horas, o silêncio e a bagagem"


Persistia naquela música, repetida enquanto a madrugada penetrava cada vez mais em seus silêncios, e ele em suas introspecções íntimas, dentro das horas do tempo psicológico, muito mais. E então, o sono musicalizado por uma trilha sonora marcava a noite, e, tantas vezes, marcava paisagens das manhãs que se emendavam com as tardes, num elo fortalecido nas margens da sua memória: águas tumultuadas que correm num rio, águas de correntes entrecruzadas dentro do ser, e, mesmo na serenidade da sua travessia sobre o leito, era aquela sensação do inexplicável, a busca do desconhecido, resgatar dentro de um imenso labirinto interior as imagens nunca completas, imagens outras como fotografias rasgadas, a cor desgastada pelo tempo, e palavras que não eram pronunciadas, amassadas como papéis inúteis, vencidos pelo tempo, tudo se evaporando pelo ar, apenas sombras, apenas o evasivo dos seus instantes.

Mais uma vez, repetiu aquela música que lhe doía na imensidão das horas que ficaram tatuadas em sua memória, e tatuada em sua pele, não apenas como uma nódoa, mas como uma eternidade que enchia de silêncios a bagagem arrumada dentro do seu quarto, dentro da sua sala, dentro do seu peito, impregnada nas paredes com tantas flores brotadas na veemente evocação de cobrir as lacunas que ansiavam ser preenchidas. Pouco a pouco a vida tornara assim, e revisitava um tempo, desde o começo: ele parado nos recantos silenciosos, e o olhar nostálgico.

Ouvia os ecos daquelas horas estáticas, os gritos, seus, gritos, gritos, e a sensação de novamente o rio de águas bem profundas, e ele mergulhando na evocação daquilo que mais parecia a utópica realidade de si mesmo. Repetiu a sequência musical, repetiu o filme, repetiu os dias, repetiu as fugas. Repetiu-se. Inquieto, ao final dos mergulhos interiores no fundo das horas impressas no peito, decidiu romper limites. Abriu a porta, percorreu as ruas, aos movimentos da trilha sonora do seu filme preferido, e foi estender o que o historiador Chartier já havia dito, “a pedra, a madeira, o tecido, o pergaminho e o papel forneceram os suportes nos quais podia ser inscrita a memória dos tempos e dos homens”. Sobre a sua pele, fez percorrer o grafite diante do olhar interior eternizando o tempo: lapidou em si mesmo as suas próprias horas, o seu silêncio, a sua bagagem. Tudo ao som da mesma música, a mesma trilha sonora, a mesma Morning Passages.
Os acordes pontuavam cada um dos seus instantes, o olhar revelando a alma, e na imagem imprimida no rio era o seu próprio reflexo no balançar das águas, turvas.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Efêmero ou eternizado...


Ficou ali sentado no mesmo banco de um tempo atrás, quando o jardim ainda espalhava imagens dos últimos dias de inverno. O cheiro de perfume era o mesmo, o que acentuou ainda mais o abraço marcado nas recordações daquele final de tarde, quase todos os bancos expostos como palcos das representações de cada encontro feliz, e nem sempre a felicidade, nada é apenas felicidade, e nada é apenas a melancolia de outras horas, filosofava, em seu fluxo de consciência de cada dia. Contente. Um contentamento que se revelava diante de cada passo que se aproximava, e a mente alimentava o desejo, e o desejo alimentava o imaginário que tudo concretizava, mesmo antes, mesmo depois, mesmo que nunca mais. Não era o amanhã o que mais importava, mas o instante presente, a certeza da existência do desejo possível, e do prazer que nem sempre se repete como antes, evapora-se tantas vezes, mas, muito mais era a certeza do prazer que parece ser eternizado. Ficou ali sentado, contemplando o acenar da mão que de longe anunciava o desejo, efêmero ou eternizado. Olhou novamente ao redor, os bancos, novamente as imagens dos últimos dias de inverno, que ontem, ainda ontem, acabou.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Minutos e segundos se espremendo


Na manhã seguinte percebera que as horas do dia anterior não existiram,
e começou a admitir que nada havia sido:
os presentes embrulhados em papéis elegantes já não estavam espalhados sobre os móveis,
e do intenso prazer que ontem nem palavras existiam para defini-lo, havia restado apenas os rastros.

Foi então rever o tempo.

Minutos e segundos passeando pelas salas e corredores,
tic-tac tic-tac
Extrapolavam-se. Vorazes.
Minutos e segundos se espremendo dentro das horas,
muito mais do que elas, as horas, conseguiam suportar.
Minutos e segundos extrapolando-se,
inquietantes,
dentro das horas que nem existiram.

sábado, 6 de agosto de 2011

Uma travessia mágica


Dentro do barco havia um mar. Um mar inteiro dentro do barco. Águas límpidas e flutuantes no imaginário de sua única tripulante, navegando sem saber ao certo se era realmente o mar ou se ainda era o rio. Bem ao longe, ela avistava uma ponta ao que antes era o infinito. Bem ao longe, ela avistava a terra, sem saber se era a terra firme ou se apenas uma ilha que desaparecia no elevar das águas.

Lentamente, movida pelos calmos movimentos das águas, ela avistou o horizonte dentro de si mesma. Fragmentos e amplitudes do ser, o seu, ela incerta quanto ao desejo de enfim ancorar num porto mais próximo ou se ainda era cedo demais, se muito ainda havia a ser submergido em busca do encontro. Vontade nenhuma de antecipar as horas, antecipar o tempo, receio de novamente se precipitar, se os rastros de nuvens acinzentando na superfície entre o Céu e o suave vento a balançar os seus cabelos, movimentos da vida naquele instante.

Numa imagem inesperada, viu que o mar se avançava dento do barco, ela sem receio algum. Sabia, por mais que disfarçasse, sabia que a imagem que sobressaia não era a imagem do real. “O que é real? E o que é imaginário?” indagou-se, sem desejo de respostas. Sem querer desejar, sem querer desviar a sua travessia para o mundo fantástico dentro dela, dentro do barco, dentro do mar, dentro de qualquer que fosse o espaço que sublimasse as horas. Ela assim, sem saber ao certo desde quando, o fim da fantasia misturada na limpidez das águas que lhe permitiam ver o quão serena podem ser as coisas, imaginárias. “As coisas imaginárias são também reais?”. Novamente indagou-se, ao perceber que não era o mar e nem o rio dentro do barco. Era o barco navegando sobre as águas, e ao seu redor um oceano inteiro. Lá no infinito, a terra onde um dia o barco ancoraria. Um dia, num tempo que podia ter sido ontem, ou logo mais.

Sem querer se importar com a imprevisibilidade das horas, prosseguiu em sua viagem mágica, movida pelo poder da imaginação.


domingo, 10 de julho de 2011

Enquanto as horas


Ele permaneceu durante muitos dias naquela mesma posição diante da parede coberta de flores vermelhas. Sentado numa das cadeiras de vime que rodeavam a mesa, ele permanecia ininterrupto, com a mão apoiando o rosto, contemplativo e um sorriso quase indefinido. Rastro de alguma alegria que parecia se misturar com rastros de alguma melancolia, quando os dias, quando as horas, quando as recordações vasculham todos os cantos de um tempo de antes e o tempo presente, reconstruindo imagens e sentimentos como fotografias, algumas quase apagadas, enquanto outras quase em movimentos, enquanto outras, enquanto outras, enquanto outras…

- À espera das horas passarem.

Foi a sua resposta. E, do outro lado, as suas lembranças de Virginia surgiram de imediato, sem surpresa alguma, se, há muito tempo, ela – sim, ela, Wolf - havia se tornado um elo em sua vida. Uma sintonia como se antes tantos diálogos entre ele e ela, naqueles dias de confidencias pelas ruas, os bancos dos jardins, o campo, a alma em reflexões densas e algumas paisagens quase felizes. As décadas tão distantes uma das outras, mas as palavras e as horas, juntas, quase íntimas.

- “Mrs. Dolloway disse que ela mesma iria comprar as flores.”

Ela decidida naquele dia, e ele ouviu a composição de suas palavras como referência ao elo, tão claro o elo, desde as noites e manhãs e noites novamente. A repetição da frase do seu filme preferido, do seu livro junto ao outro livro, os dois, juntos. “Mrs, Dolloway, sempre dando festas para esconder o silêncio”. Pensamentos intercalados, “As Horas”, as horas, as horas… Tudo como mágica, como coincidência. Não, era simplesmente o acaso! As suas palavras confirmaram, sóbrias, pausadas e incisivas, enquanto o seu olhar permanecia confirmando que ele estava lá, e na alma as imagens se misturavam mais, enquanto algumas horas passavam lentamente e outras eram um turbilhão de horas acumuladas, cada uma em busca de qualquer lugar que acomodassem os seus voos desordenados, acomodados alguns.

- Comprei 3 livros de Virgínia, em inglês. Em Notting Hill, por 1.99 cada. To the lighthouse, Mrs. Dalloway, The Waves.

Ele e o prazer nas páginas cheias de palavras que deixavam de ser apenas dela, divididas as palavras, os sentimentos derramados pelas bordas dos livros, ele, o leitor, e, naquele dia, deste o amanhecer: As horas, quase todas. E ele ali, ainda na mesma posição diante da parede cheia de flores que ele mesmo havia comprado para a festa. Ele, uma fotografia intacta.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Felicidade melancólica


Ela, depois de ter submergido num imenso lago, pouco a pouco se afundando com o peso de suas fragilidades, que eram poucas, e depois mais, e outras as fragilidades nas emoções,

ela, depois da fragilidade no corpo e nas emoções, muito mais nas emoções, pouco a pouco sentiu a sensação de uma lama, lamaçal a puxar para o fundo o que ela era e que deixava de ser. Tudo se desfazendo em resíduos de felicidades e de entusiasmos que se misturavam ao cheiro acre de si mesma, e do lamaçal que em suas lembranças era tudo tão indefinido, e em perguntas que não cessavam em Onde e Quando, e nada mais na existência do que ela ainda ousava recordar.

A menina, a outra, e, depois de tudo, a outra novamente. Todas as meninas unidas, para que a efemeridade não fosse tão nítida, e nem tão voraz como as garras de um animal, e nem como as garras dos pensamentos que devoram, e nem. Não era tanto o mais que ela pensava. Não era mais em tudo que ela queria pensar, vasculhar o interior e os dias que se foram, e juntar o pó, a poeira, e ver sobre a mesa ou sobre a cama a imagem das horas onde tudo, tudo.

Os passos ficaram lentos, desacelerados pelo peso das substâncias que um dia era assim, e outros dias não. E foi nesse ínterim, diante das paisagens mais sombrias de si mesma, que fugiu das recordações que a diluía tanto, e do presente que a diluía tanto, e viu qualquer coisa que se assemelhava a uma luz, imagem que ela não conseguia explicar, quando lá, quase no fundo daquela escuridão gelatinosa e de um cheiro desagradável, não era aquela náusea o alimento que um dia imaginara, por mais que, por mais, por mais,

Algo se rompeu, o ímpeto. E de repente, não era uma mosca em metamorfose, não era uma barata em metamorfose, não era a serpente, e nem importava se não eram também fadas e príncipes ao seu redor. Depois de ser quase nada, ela começou a sentir o seu coração murmurar qualquer coisa, e sentiu murmurarem qualquer coisa bem próxima aos seus ouvidos, murmúrios enquanto um enjoo, uma náusea, e a esperança de novamente qualquer tom de escuridão que não fosse aquele, a escuridão quando se torna azul, pensou, a escuridão que se torna azul, insistiu. Insistiu e começou a recriar coisas, determinada, enquanto tudo já parecia mais leve.

Ela começou a emergir-se. Moveu as mãos, moveu os braços, moveu o corpo pesado, a cabeça pesada, moveu o entusiasmo repentino, e começou a se libertar daquele buraco, como se cavando de baixo para cima: cavando, cavando forças desconfiadas de onde não sabia o lugar, enquanto pensava na menina, na outra menina, e na outra. Ela cavando, sempre acreditando que o lamaçal não era o seu lugar, o dela, e, ainda que em seus mergulhos na profundidade de seus conflitos, mas, mas…

Tantas vezes as reticências, tantas vezes as interrogações, tantas vezes as imagens das coisas, a fragilidade desenhada na memória.

Horas depois, de dias e meses depois, a música ecoava novamente na sala, movimentos entre as teclas negras e as bem alvas, ela, introspectiva. A música, os acordes melódicos, melancólicos, a felicidade melancólica, mas era uma felicidade, redescoberta: os ponteiros marcando, marcando, marcando.


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Bem longas as horas, enquanto


Entreolharam entre os quadros nas paredes, todas impecáveis em Pinturas Negras. Pouco a pouco um sorriso desconfiado e o olhar breve também tão contemplativo - bem breves, e longos pareciam ser dentro das expectativas silenciosas de cada um. Ao mesmo tempo, os sorrisos de um lado e do outro, tão sutis, quase imperceptíveis, mas, pouco a pouco, era quase sem mais lugar para esconderijos. A boca comprimida e a boca escondendo os dentes caninos, apertando o interior do lábio inferior, na busca de disfarçar, ocultar os sorrisos que eram quase gargalhadas provocadas pelo agradável incômodo do que logo se fez emoção. A emoção leve, ainda sem pretensão alguma, embora na mente e no corpo paisagens antecipando as horas seguintes, instantes possíveis delineados por imagens íntimas, divagando.

Nunca antes alguma palavra, nunca antes. A voz desconhecida e, talvez para sempre, nada além do efêmero de um acaso.

Nas paredes imensas os quadros pareciam outros, embaçados, imagens trocadas num colorido muito mais no interior, não no interior das salas e corredores imensos, não. Não era o efêmero de um acaso, não mais, e nem acaso era,

se os sorrisos compartilhados, se a voz em palavras múltiplas, se a boca, se as horas longas, bem longas as horas,

enquanto Goya impecável nas paredes imensas, ilustrando as agradáveis recordações depois das horas que não foram efêmeras.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

O cheiro íntimo de si mesmo


Não viu mais nada, invadido pela cegueira que não chegou abruptamente, mas pouco a pouco, dissimulada a cegueira silenciosa como nuvens esparsas, sutis, de vez em quando as imagens realçadas por uma sutileza quase invisível, até que depois. Mas antes, eram quadros pincelados em coloridos, ainda que as melancólicas horas, as cores expostas nos quadros enfeitando as paredes, não apenas as de fora, mas as paredes palpitantes no interior de si mesmo: balançando os sonhos enfeitados e as dores, elas tão expostas ao perceber que, lado a lado, dos sonhos, havia uma crosta arranhando o que em si era muito mais fragmentos e pedaços outros impotentes. A vida lá fora, fingida a vida lá fora, bailando num som estridente vindo de algum lugar às vezes tão desconhecido, às vezes, e outras já tão íntimas demais. E, portanto, ao abrir a porta… Ao abrir a porta, no meio da noite, nenhum colorido: sentimentos confundindo-se entre o que até podia ser chamado de felicidade, e a certeza outra, muito mais forte a certeza outra, corrosiva,

e no travesseiro o cheiro íntimo de si mesmo.

sábado, 21 de maio de 2011

As horas partiram naquele instante


Todas as horas partiram no mesmo instante em que percebera que não havia flores alguma, as flores que enfeitavam as fotografias coloridas e as que eram belas exatamente por serem em preto e branco, as flores nas fotografias. Em todas elas as cores deslizavam como águas sobre um rio que transbordava suavemente em seu leito, suavemente. O realce tão embelecido das cores nos jardins que enfeitavam a cidade; e na casa, sobre a mesa e nos cantos da sala de visita, o colorido espalhado pelos ramos verdes, bem verdes, os ramos de repente secos e sem colorido algum nos jarros sobre a mesa e nos cantos da sala, muito menos, e, de repente, as avenidas sem os jardins que enfeitavam a cidade nas fotografias por tantas horas diante dos seus olhos demais encantados com o que era, e muito mais com o que seria. Foi quando percebera, de vez, que todas as horas já haviam partido.

As horas partiram, bruscamente, como se nunca fotografia alguma. Tudo, talvez, sempre a fantasia como se fossem lentes de imagens esquizofrênicas, as imagens que enfeitavam a casa com as suas salas bem amplas e os seus corredores imensos, largos, estreitos, outros corredores quase se espremendo entre as salas que quase nem existiam.

“As flores nunca existiram”, pensou. E não conseguiu evitar o súbito pensamento de que a loucura, não, não era loucura, apenas vozes cochichando em seus ouvidos que nunca, nunca houvera flores alguma, nem mesmo nas fotografias. Nem as coloridas e nem as em preto e branco. Todas as horas partiram naquele instante. Então, quase desiludido, decidiu prosseguir pela avenida, sem nunca ter saído nem mesmo do seu quarto naquele dia. Apenas um rio transbordando de vozes, alimentadas todas as vozes como um deleite em álbum de fotografias, uma a uma as fotografias cheias de flores tão reais e tão imaginárias, enfeitando a vida em seus mais íntimos silêncios.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Possíveis contos


Estava agora vasculhando alguns dos diversos inícios de contos que foram deixados para depois… Às vezes, o texto parece que vai fluir por completo mas ele ganha voz e decide parar por ali, até que num outro dia, não se sabe quando, ele retorna. Alguns nunca mais retornam, e ficam pelos cantos, independente, amuados, mas talvez nunca se tornem ruínas.
Selecionei alguns dos contos que estão ainda pela metade, alguns mais recentes, outros nem tanto. São possibilidades, talvez para amanhã, talvez. Escrever é assim. Às vezes, o texto vem em tumultos de imagens e palavras abundantes, e depois o lapidar; outras vezes é o garimpar árduo, muito árduo, ainda que o prazer, o prazer, o gozo que transborda.


POSSIBILIDADE UM

Aquela menina
- Menina não,
Aquela mulher, mas que ainda tinha em seus gestos algumas das atitudes da menina e, na memória, a saudade da avó que se despedia, enquanto repousava o corpo e os afetos dentro dos seus braços. Num gesto sereno e no vazio dos acenos ela contemplava aquela paisagem imponente, enquanto a avó parecia sentir que a vida era. Um vento suave, e já não era mais vento, mas o repouso no infinito. Aquela mulher, com os sentimentos misturados aos da criança, que era ela mesma, sentou-se na cama de lençol bem alvo e morno, e acariciou aquele rosto também bem morno, assim como morna estava a fronha, a última, e apertou-o, agora em seu colo repousado, as mãos que, em seguida, abriram aquela carta, a última, escrita e guardada para aquele momento.
Temerosa, mas numa saudade sem desespero algum, a menina, a menina não, a mulher,
a neta abriu aquela carta entregue em suas mãos depois de tudo, depois das flores enfeitando a viagem da avó, a carta dizendo tantas coisas, tantas coisas que lhe doíam no coração com uma emoção e uma dor no peito, bem no fundo do coração. Ela lia aquelas palavras de voz envelhecida desde o tempo em que a neta, a neta, a neta ainda nem era corpo, nem era ser, nem era sangue a lhe correr as veias que foram se enfraquecendo, bem fraquinhas e tudo parou lá dentro dela. Para sempre tudo parou dentro dela, da avó enfeitada de flores, tudo parou, entretanto,
continuou lá fora, dentro do coração da neta de carta nas mãos com as palavras que também ficaram eternizadas e tantas imagens pulando de um lado para outro, as palavras saltando de um espaço para outro, lacunas no peito daquela mulher, não, daquela criança diante do espelho, criança ainda depois dos anos e as palavras que nunca deixavam as páginas envelhecerem.
Aquela mulher,
- Mulher não,
Aquela menina, abraçava a avó dentro dos seus braços e dentro das recordações quando em seus vestidos enfeitados andava pela casa agora embalada em malas, caixas, depósitos abarrotados de coisas da avó e que agora são suas: todas as coisas são suas se até o amor era. A xícara de asas esbeltas, talheres e pratos de bolos cortados, a toalha cobrindo a mesa repleta de afetos.


POSSIBILIDADE DOIS

A menina atravessou a sala, tímida,
a menina atravessou a sala e sentou-se na cadeira do piano de cor negra que enfeitava o ambiente muito mais do que o seu desejo de estar ali, novamente exposta diante dos convidados dos pais, vaidosos pela filha que seria a pianista da família, vislumbrados: a menina sentada ao piano com um longo vestido vermelho diante dos aplausos na sala em plena reverência, cheia a sala mais famosa da cidade,
Um dia,
eles repetiam,
um dia, ela,
ela, ela, a menina com uma vontade de chorar se sentia completamente surda para não ouvir novamente aquelas palavras dos pais, e dentro do peito a sua vontade guardada em seus segredos.
Atordoada, ela tocou mais uma música, repetida tantas vezes, a música, as músicas, ainda tão pouco para os inúmeros concertos ovacionados pelos pais, encantados pela pianista que nunca a mãe havia conseguido ser e sublimava a sua fantasia num sorriso meio contente e meio áspero, meio feliz e meio insatisfeita com a menina que, bem antes daqueles dias, era ela mesma, ela, ela, a mãe. Agora, a filha na vitrine diante dos convidados enquanto os seus dedos muito mais pareciam adormecidos, ela adormecida, e a música muito mais tornava-se uma angústia dentro do seu coração bem distante dali, o seu desejo bem distante dali, os seus sonhos quase desaparecidos entre as teclas brancas e pretas do piano bem envernizado detrás das imaginárias cortinas de veludo vermelho e adornada pelo dourado que se ausentava da menina cheia de outros segredos que ainda nem sabia ao certo quando, um dia.

sábado, 30 de abril de 2011

Detrás das páginas folheadas


Insistiu que a música teria que ser aquela e procurou por toda a casa a gravação que não estava lá, um dia escondida de si mesmo para nunca mais ouvi-la, desde quando percebera que não fazia sentido algum repetir aquilo que enfeitava os dias agora esquecidos. Os dias com os seus detalhes que naquele outro tempo foram eternos.

Uma sinfonia. Foi tudo o que antecipou sobre a música, numa comoção pela certeza de que algum equívoco havia acontecido. Muito mais havia sido o deslumbramento,
num instante eufórico, frágil, a fragilidade que tornou tudo muito mais do que era e, pouco a pouco, inventava fantasias, quase castelos, e depois apenas tijolos espalhados sobre a terra e as águas do rio imenso cobrindo-os, um a um, até que um dia o rio muito mais forte tragou o que era apenas imaginário. Foi assim que, ora fosco ora brilhante, o verde do lodo escorregadio simbolizou o que foi sem nunca ter sido.

Insistiu que a música teria que ser aquela, não havia outra. Aquela música a embalar o eterno que as horas podem inventar, elas frágeis, e agora devoradas por uma felicidade encontrada detrás de cada página folheada, ainda que apenas uma representação,
o desejo de que tudo se fizesse novo e real. Tudo se fez real, sem precisar de música alguma, se dentro do peito a melodia é visceralmente intensa, acreditou.

Apenas depois, uma sinfonia surgida não se sabe de onde embalou de vez aquela felicidade silenciosa, palavras murmuradas numa suavidade talvez inesquecível. E no olhar, outras palavras pronunciadas, bem nítidas, quase audíveis.
Um olhar embargado contemplava a ilusão, serenamente.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Espelhos embaçados


Já estava lá dentro do pensamento
que num vulto repentino tornara-se ininterrupto.

O pensamento.

Não apenas o pensamento em imagens que pulavam uma a uma,
Saltitantes como bolas de algodão e outras vezes como de cristal,
as bolas saltitantes,
como bronze lapidado sobre a rocha firme, ainda que o vendaval
Ainda que apenas como o algodão,
ainda que
uma coisa e outra, um pensamento em vão.

E o que não era,
Multiplicava-se luminoso dentro dos espelhos ao seu redor,
Pouco a pouco os espelhos embaçados e as imagens se tornando outras.
Agora eram outras as imagens
e as coisas
lá dentro dele.
Tudo novamente como um vulto repentino, ininterrupto
Todas as imagens detrás dos espelhos embaçados.

E ele,
num vulto repentino
aproximou-se bem perto de todos os espelhos:
percorreu as suas mãos sobre eles, lentamente
a sua própria pele,
Ele perplexo,
enquanto as imagens emudeciam-se,
Uma a uma.

sábado, 9 de abril de 2011

e outras vezes o nada


Ficou se perguntando quem foi mesmo que havia acabado de passar por ali naquele exato momento e já não viu mais nada a não ser a imagem guardada em sua memória cheia de baús, quase nada lá dentro de alguns e em outros quase a vida inteira, quase, tantas coisas apenas quase, nada mais e o alívio encontrado em outros baús escancarados de tantas coisas reais, mesmo que, mesmo que, mesmo que

(a respiração profunda e adocicada pelo bálsamo com seu cheiro indecifrável e o enigma das horas revelado pouco a pouco e nunca, e jamais, ainda que)

o “nunca” jamais existe para sempre: tantas vezes o nunca existe para sempre, muitas e muitas coisas nunca existem para sempre, nada, nada existe para sempre, ainda que o néctar mais refinado, ainda que o amor,
não,
não recorremos ao amor agora se soa como pieguice, embora,
- embora o quê?
embora as palavras expliquem os baús guardados, cheios de coisas nunca mais usadas ou sentidas
– Nunca mais usadas ou sentidas?
e o pó, e o pano bem alvo deslizando sobre o pó, e o verniz brilhando outra vez, o verniz brilha outra vez,
Entendeu?!
o verniz brilha, pode brilhar outra vez e, assim, talvez, mostrar que já não havia mais nada no baú,
a não ser a imagem guardada, tantas coisas para sempre guardadas na memória,
para sempre, para sempre, e outras vezes o nada,
nada mais,
além de uma nostalgia revestida de bálsamo em seu cheiro entorpecido.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

...mas são como se fossem


A taça de vinho já quase esvaziada... Esvaziando-se a taça de vinho, mas não os pensamentos. Nunca os pensamentos esvaziados sobre a mesa cheia de imagens e pensamentos que recordam as horas. As horas. As horas que preenchem a vida espalhada pelos horizontes tão amplos e tão impregnados de imagens avulsas, soltas, espalhadas sobre a mesa e sobre o interior de si mesmo, latejando, o interior, pulsando, embriagado pelo vinho que não embriaga tanto assim, mas que intensifica as palavras agora se derramando do alto da mesa e se espalhando pelo chão. Ali, uma felicidade de uma hora e outra e uma inquietação de uma hora e outra. Os dias e as horas se misturando sem mais a certeza de quando uma coisa e de quando outra. Tudo se misturando, o equilíbrio do tempo que pende uma hora para lá e outra hora para cá. Às vezes nem são as horas exatamente, mas os minutos. Eles tão imprevisíveis, tudo imprevisível, e do chão umedecido pelo vinho brota novamente um sentimento que se torna mais leve - nem tão leve todos os sentimentos - e se torna mais apaziguado, marcados pela dormência do vinho: a felicidade abastecida quando a última gota do vinho enfeita a borda cristalina da taça que nem é de cristal, mas que parece tanto como tantas coisas são, como se fossem.

quarta-feira, 23 de março de 2011

As horas no relógio de ruído angustiante


Adormeceu diante do incontido desejo de que ao chegar à estação o trem já houvesse passado, e ninguém mais.

Ninguém mais.

Do trem, apenas o barulho do motor se distanciando e levando o tempo que já não podia ser, o tempo que nunca, nunca o tempo completo com todas as horas
cheias de plenas felicidades
aguardadas com as esperanças do que, talvez, nunca aconteceria, a não ser em minutos marcados no relógio de ruído angustiante.

Ninguém mais na estação. Mas uma dor, pungente, uma dor que era muito maior se não fosse o bálsamo, desejo esperançoso de bálsamo e as horas que precisam de silêncio para que na alma tudo tão calmo, mesmo que nunca. Jamais por completo.

Nem mais o ruído inquietante do trem. Nem mesmo.

Era a vontade imensa de que o trem nem tivesse chegado ainda, muito menos partido, parado diante da mais sublime imagem,
cheia de algumas felicidades, aguardadas,
ainda.

terça-feira, 8 de março de 2011

ou apenas uma imagem


Na imagem refletida na água era um caminho longo demais e que se balançava em leves movimentos, o vento brando sobre o lago. Um longo caminho ao mesmo tempo deserto e um som vindo bem de longe enquanto nas árvores reluziam um dourado que brilhava tanto até confundir a nitidez das folhas que se movimentavam e a nitidez das folhas paradas por completo, formosas as folhas mesmo as mais recuadas como se fossem tão sem vigor. A imagem suscitava indagações, ela refletida no espelho sobre as águas diante dos olhos do homem, a veracidade de um quadro pintado e exposto na parede da memória, e nada era naquele instante, mas outro o instante que talvez nunca tenha existido, quando a realidade pode se confundir com a imagem, apenas uma imagem, apenas.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Num ímpeto


1. Uma fileira imensa de coisas para serem escritas e numa outra fileira coisas que não conseguem ser esparramadas sobre as páginas que nada conseguem além de palavras rabiscadas sem sentido algum, não, não sem sentido algum se tudo há um sentido, qualquer que seja, mesmo que esvaziado de nexo a depender de quem o interlocutor.
2. A música lá dentro ressoa uma melodia conhecida e toca a alma no fundo e a música seguinte é tocada aleatoriamente, independente do género, outro momento que toca a alma, a alma, vontade de passar para a música seguinte se a música toca demais a alma e pode virar dor ao invés de prazer, desligo.
3. Os papéis espalhados e guardados repetidas vezes todos os dias, Ricoeur, Bergson, Halbwachs, Nora, Bachelard, Platão, Aristóteles, Freud, Lacan, Torres, Antunes e etc e tal e tal e tal… Tudo às vezes se embaralhando, e a herança grega, e a fenomenologia de Husserl, e …………………………………………. Sair um pouco por ai e deixar os papéis escancarados e outras anotações já riscadas para não ser novamente atracão de reescritas, esta palavra melhor que aquela, esta frase melhor que aquela………………….. Sair um pouco por ai e depois tudo, outra vez, até que um dia, que seja em breve, a última frase depois das expectativas.
4. Comer alguma coisa, novamente, beber alguma coisa, novamente, a escrita sente fome, a minha escrita é às vezes faminta, gulosa, mesmo às vezes quando empanturrada, é uma fome sem espaço, apenas o prazer das palavras úmidas e, quando espremidas as palavras úmidas, o texto parece pular sobre o papel, saltitantes, às vezes, e outras vezes num esforço que cada um é que sabe do seu e do prazer cada um sabe do seu quando no peito bate uma coisa estranha ou tão íntima chamada de gozo.
5. É isso, sentei aqui e, como fuga para dar um tempinho de horas ou de fartos minutos na escrita, na outra, comecei a escrever tais impressões e, talvez, as deixe agora no blog. Entretanto, sem revisão alguma, não quero reler nada disso, deixe lá como está, originalmente.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

E se


E se não fossem aquelas as horas de quando tudo, de quando todas as palavras envoltas em coisas que nem deviam e nas que faltaram para que tudo, para que nada além, para que muito mais fossem os sentimentos e outros os caminhos que não os que depois, os que nunca, jamais o entorpecer das horas seguintes embriagadas e sustentadas apenas por um fio, um fio, um fio tão frágil que, se o vento respirar mais forte, nada mais, nada mais, apenas o fio sem o elo mesmo que qualquer o elo a sustentar a fragilidade, quase imperceptível de tão nada.
E se
E se fossem apenas uma utopia, a de que, até em segundos, as horas transitam entre o tempo real e o imaginário, e o tempo mais real que o imaginário, o que é, e no relógio os ponteiros se encontrando e pouco a pouco, distante, outra vez muito mais que apenas as palavras, mas a pausa embrutecida enquanto as interrogações se enfileiram e no rosto e nos olhos e nas pálpebras e onde mais a certeza de quando, a incerteza de quando, e se, e se, outra pausa, outra pausa, e se.
E se dentro das palavras caladas e nas outras palavras o contemplar do que não era, e do que era, e do que seria e do que não seria, e se dentro das horas a inexistência, apenas imagens opacas e todas outonais se confundindo nas estações não apenas do tempo, não apenas, se.

sábado, 29 de janeiro de 2011

De repente a avenida


De repente as avenidas se encolhem, quando as imagens se tornam íntimas e o olhar já não é desconhecido, penetrante no desejo de lá e de cá, dois lados quase invisíveis são os receios que quase já não existem e não mais a expectativa guardada para o presente instante, de desde ontem, bem antes de ontem aguardado.
De repente os passeios das avenidas se estreitam e todas as suas casas se resumem em apenas uma, não isolada, se ela cheia de palavras e imagens que povoam salas e quartos e sobre a mesa a fartura serve o seu banquete numa doce harmonia das horas, ainda que uma, apenas, mas sem vazio algum, talvez.
E já não há o de repente, já não há, é agora o prolongar do tempo, flexível, espaço para o relógio determinar as suas horas enquanto a avenida se alonga outra vez: os seus passeios se enfileiram um ao outro e os passos percorrem leves, quase flutuando contemplam os ininterruptos jogos de amarelinha colorindo um chão.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

E depois


E depois, quando as palavras penetrantes ficam como luzes de brilho intenso e nem tão intenso outras vezes, quando, se não for num esforço qualquer pouco se vê ou nada além de um tom amarelado nas paisagens quase imperceptíveis se não fosse o olhar atento aos cantos mais enigmáticos do ser, nem de perto os ecos na boca balbuciando qualquer coisa, resmungos dos dias que nem as horas, nem as sombras, nem as ruas vazias e cheias, vazias e cheias, e a cabeça vazia e cheia, e o peito vazio e cheio, tudo tão vazio e tão cheio depois do instante de quando as horas vão se tornando definitivamente nada, tudo por um instante se tornando definitivamente nada e depois tudo se tornando definitivamente um algo inesperado acelerando o peito que se acalma e depois não, as sensações indecifráveis que se acalmam e depois não, e depois, tudo depois, depois, depois, isso ou aquilo depois, depois, depois, a melancolia depois, a felicidade depois, a melancolia e a felicidade depois, alternando-se, depois.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conto: "Que dia é este, meu Deus?

Ele acordou muito estranho naquela manhã, e levantou-se da cama tomado pelo cheiro de café que era o mesmo cheiro do café de um dia que ele não se recordava que dia era aquele, mas não poderia ser um dia qualquer, pois era um dia que estava mexendo bem lá no fundo do seu peito. Na boca, aquele gosto da infância, aquele sabor de geléia, exatamente aquela geléia quadrada e nas cores amarela e vermelha, e aqueles dias em que ele saia a comprar aquele doce, e a comê-lo sempre com um prazer que nem dava pra explicar. Que dia é este, meu Deus? Perguntou a si mesmo, enquanto suplicava a Deus pra lhe cochichar que dia era aquele que levava aquele gosto de geléia à sua boca e o cheiro de café entrando impetuosamente em suas narinas.
Mãe! Ele chamou de lá de dentro do quarto, e a mãe correndo ao seu encontro. Aquele menino que andou tão doente, e, naquele dia, véspera do seu aniversário, ela queria tanto que ele amanhecesse com saúde para comemorarem juntos! Um bolo enorme, para ser dividido entre todos os seus amigos, disfarçaria muito bem aquela tristeza que o menino sentia nos últimos dias, e que ninguém conseguia descobrir o motivo. Talvez, só mesmo ele soubesse.
A mãe chegou ao quarto e encontrou o menino sentado na cama e com o travesseiro no colo. Ele a olhou com aquele rosto singelo, ela se aproximou dele, abraçou-lhe e perguntou o que você quer, meu filho?! Ele nada respondeu, mas em seus gestos havia uma resposta silenciosa, e, em cada leve movimento, havia as palavras dizendo agora está tudo bem. Então, bem devagar, o menino se apegou ainda mais ao seu travesseiro e se deitou lentamente com ele atracado entre os seus braços. Comovente, apertava o travesseiro entre seus braços, enquanto a mãe fazia mais uma pergunta para si mesma: “o que é que este menino abraça tanto esse travesseiro assim, meu Deus?!” Nada de resposta.
Ela tocava nele, e o seu corpo respondia ao seu carinho. Ela tocava em seus cabelos, e ele chegava a cochilar. Mas, ao tentar arrumar o travesseiro, o seu corpo trazia de lá de dentro dele a resposta dizendo que não, que não era pra ela tocar naquele travesseiro, e ficava suando o suor daquele calor de tudo o que ele estava sentindo.
A mãe foi lá dentro e voltou com aquele doce embrulhado num guardanapo branco, aquele doce de geléia quadrada nas cores vermelha e amarela, e aquele gosto perfeitamente saboreado em sua boca, mesmo adoentado que ele estava na véspera do seu aniversário. Era aquele o gosto que ele estava sentindo, um gosto parecido com vários outros dias da sua vida, um sabor forte em sua língua, e, sem nem mesmo ter aquela geléia em sua boca. Era aquele o gosto que ele tanto sentia: véspera do seu aniversário de oito anos. Um sabor que veio bruscamente daqueles dias da sua infância, e agora se misturava com um cheiro de café, mas, do dia mais significativo do cheiro de café ele não queria se lembrar.
A memória, os esquecimentos e as recordações guardadas em algum lugar. A boca cheia de saliva, e enchia de saliva, e enchia, e ele não conseguia se lembrar do dia do cheiro de café. Ele sozinho em seu quarto, acabando de acordar, e tomado por uma sensação estranha, o gosto na boca, o cheiro, um cheiro guardado ou travado em algum lugar. “Mãe”, ele ouvia aquele eco lá dentro dele e lá dentro da casa, e lá fora da casa, vindo de lá da rua, quando ele brincava de soltar pipa e corria para comprar geléia, e brincava de gude e de bola, e aquele eco que corria entre as árvores e o tempo, e ela, a mãe, dizendo menino, venha tomar banho, e dizia tantas outras coisas, hora de merendar, menino, menino você parece que não sente fome. Era o cheiro de geléia que estava trazendo agora este som do qual ele sentia saudade, e nenhuma geléia pela casa, apenas ele sozinho ali no quarto com aquele sabor e com aquele cheiro de muito longe. O coração batendo forte por naquele dia ter acordado no meio daqueles outros dias que nem mais existiam.
Onde está todo mundo? Ele perguntava lá dentro dele mesmo, mas fazendo de conta que nem estava perguntando nada, pois não queria ficar com perguntas, das quais ele não queria pensar nas respostas. Onde está todo mundo, meu Deus? Minha xícara de chá, onde está, meu Deus? Era uma pergunta atrás da outra, feitas lá dentro de um esconderijo que ele fingia não existir. E perguntou, e perguntou, e revelou as saudades, e revelou com sorriso, e com tristeza, e cada instante ele sentia como as manifestações naturais lhe permitiam sentir.
Ele ali sentado com aquele travesseiro bem alvo e limpinho, trocado no dia anterior, véspera do seu aniversário, e, dentro dele, os anos que se passaram um a um. Ele queria ver todo mundo de novo, “meu Deus!” Mas, naquele dia, nenhum bolo de aniversário na sala, nenhum cheiro de bolo na cozinha, e ele não queria outro bolo, “pra que mais bolo, meu Deus!?”
Ele queria mesmo era brincar de bola, correr pelas ruas com os bolsos cheios de moedas e retornar com as mãos cheinhas de doces de geléia. Queria mesmo era ouvir o eco com o seu nome, “vem tomar banho meu filho, já brincou demais.” Era isto que ele queria, mesmo que entrasse em casa com vontade de brincar até que a tarde se emendasse com a noite.
Desde um tempo atrás soube que não adiantava mais ficar ali na cama imaginando tantas coisas passadas. E novamente se levantou em mais um dia de aniversário, cheirou a fronha branca que guardava o seu travesseiro, quase sacralizado, respirou a dor no peito e no coração, e se retirou do quarto, disfarçando não mais sentir aquele cheiro aromatizado de café. Aquele cheiro que penetrava não apenas o seu olfato, mas, também, o fundo do seu coração.