quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Zagvel, Tustvel, Androvel

Sempre que tentava dormir sentia um amontoado de monstros em sua cabeça. Monstros atropelando monstros, e monstros docemente se envolvendo com outros monstros. Sempre que tentava dormir, monstros, e o pavor imenso querendo entender como tantos monstros poderiam caber, ao mesmo tempo, dentro da sua cabeça.
Zagvel, Tustvel, Androvel, “Véu, por que tantos nomes com véu?” Perguntava a si mesmo em seu silêncio tumultuado, aterrorizante. E então, ouvia outros nomes mais comuns, e, estes monstros de nomes mais comuns, como se conseguissem ouvir as abafadas e reprimidas palavras dos seus pensamentos, reviravam-se em sua cabeça, ocupando todos os lugares da sua mente.
A pele, crosta, pêlo, couro dos monstros, cor de ferrugem enferrujada e cor de pele de cordeiro, bronze, prata, cores estranhamente combinadas. Um cheiro acre, forte, asfixiava o seu sono profundo. Naquela madrugada, gritaram tanto do lado de dentro dos seus ouvidos, que o ensurdeceu com todos os sons penetrando abafado, bem abafado e quase silencioso pra o lado de dentro.
Todos os barulhos naturais das ruas de repente perderam os seus sons. E foram silenciadas as buzinas dos carros, e silenciados foram os gritos, os histéricos e os outros, e nem os mais estridentes conseguiam transmitir mais alguma ruído; praticamente caladas, as palavras da boca, por mais gesticuladas, articuladas, sempre caladas, agora. A tv sem notícia, o rádio sem música, todas as vozes em completo silêncio, tudo de repente. E ele ali, parado, horas parado junto da janela do quarto, olhando o mar, desde as suas margens até o infinito; as ondas, as ondas do mar sem aquele som que ele tanto gostava de ouvir dali da janela, antes do silêncio angustiante.
Enquanto olhava o mar e as ondas sem som, escureceu. Deixou a janela aberta, fechou um pouco as cortinas, as luzes apagadas, apenas a claridade proporcionada pelos limites da noite. E, ao virar-se para a cama, desejoso de dormir um pouco das horas que nunca mais havia dormido, Zagvel, Tustvel, Androvel, e outros, sem nomes pronunciados, recomeçaram o barulho de sempre. Os mesmos barulhos e outros barulhos; palavras tumultuadas, movimentos, burburinhos, e o pavor novamente se definindo, se entregando, enquanto ele, Zagvel, o mais terrível deles, e os demais, sorriam com gargalhadas inexprimíveis, lá dentro da sua cabeça, que estava sempre prestes a se explodir no silencio da noite.
Neste exato momento, a lua começou a mudar de direção, e a noite escureceu de vez. Um vento movimentando a janela, o desesperador silêncio de todos os ruídos lá fora, e os desesperadores ruídos, barulhos, zunidos, lá dentro. Os seus gritos percorrendo toda a casa, a porta trancada, sim, ele havia trancado a porta, e todos lá fora batendo exageradamente na porta, ele desesperado, e a angústia daquele silêncio de ninguém a socorrê-lo. Zagvel, Tustvel e os outros o atordoavam tanto, que ele nem mais sabia que podia abrir a porta.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

(Sem título)

O amanhã
Chegou hoje às 10:00 da manhã
Um tanto tarde
Para a ansiedade do ontem.
Olhos inchados
Coração tenso
Peito sufocado.

O amanhã chegou
Sem fome, sem sede
Garganta trancada
E um receio de pensar.
Levou as horas
Ficaram apenas os minutos
Minutos
Minutos
Minuto.

Quero voltar ao ontem.

(*Poesia 29 do livro Versus (in)versos, publicado em 1990.)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Inventando interlocutores na estação

mas ela já havia dito que nada daquilo seria o melhor, e que nada seria, e tudo permaneceria na mesma falta de sentido, e pior, como pior ficou. Ela havia dito desde quando ouviu aquelas palavras de uma convicção desperdiçada. E, mesmo quando tudo era ainda uma vaga suposição, ela insinuou que já sabia que nada daquilo daria certo, “não vai dar certo!”, insinuou como se estivesse fazendo referência a outras coisas, outras pessoas, uma verdade alheia. Ela já havia dito, mas de nada adiantou, pois, às vezes, é como se as palavras não se pareçam com nada, não se assemelham a nada, enquanto a outros chegam a provocar um ardor na garganta, um queimor no corpo, uma sensação de guerra sem motivo para batalha.

- A senhora vai descer em que estação?

A pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse, que não interrompa o seu desejo, que não comprometa a sua satisfação. Entende o que eu estou dizendo? É assim: tudo o que pode interromper um sentimento de prazer dói. Disso sabemos. Mas a dor e a angústia do que algumas dessas coisas na verdade são, sabemos! Nem mesmo sabemos se vale a pena, e foi o que aconteceu com ela.

“Próxima estação: Campo Pequeno”

Hoje está ai, e agora quem está sem querer ouvir sou eu, pois não sei o que dizer. Também não vou ficar remoendo na cabeça dos outros aquela chatice de “bem que eu avisei”, pois de nada mais adianta falar do dito e do não dito depois de tudo, depois de seja lá quem for já estiver com o coração e a cabeça sem mais lugar para lamento, e encolhido feito… feito nem sei o que dizer. Você já se sentiu assim em uma situação sem saber mais o que dizer?

- Uma mistura de irritação e de compaixão?

Uma mistura de irritação e de compaixão.

- Com licença, é a minha estação.

Eu estava conversando com uma pessoa que acabou de ficar ai no Campo Pequeno, e eu dizia que a pior coisa é dizer algo para quem não escuta mais do que aquilo que não incomode o seu interesse e nem interrompa […].

“Próxima estação: Entrecampos”

(Era a minha estação. Fiquei pensando a respeito daquela conversa alheia, mas tão nítida. Impossível não ouvir uma conversa alheia se as vozes se anunciam num estado de prazer, ainda que carentes algumas vozes, alheias, e eu ali pensando num texto, um filme, aquela senhora vencendo o seu dia ao lado de estranhos que nem eram estranhos: interlocutores espalhados pelas ruas e avenidas, até que a noite, outros.)

domingo, 3 de outubro de 2010

Os dois jardins

Jardins cheios de flores

Dois jardins:
cheios de flores

De todas as cores as flores dos jardins cheios de flores
amarelas alaranjadas vermelhas brancas azuis
e outras flores de todas as cores.

Dois jardins cheios de cores

Um
cheio de flores de aroma com cheiro de alento quase sem igual o perfume.
O outro
cheio de flores e cheio de cores em todas as flores um cheiro de nada a vida parada um cheiro sem graça.