sábado, 29 de janeiro de 2011

De repente a avenida


De repente as avenidas se encolhem, quando as imagens se tornam íntimas e o olhar já não é desconhecido, penetrante no desejo de lá e de cá, dois lados quase invisíveis são os receios que quase já não existem e não mais a expectativa guardada para o presente instante, de desde ontem, bem antes de ontem aguardado.
De repente os passeios das avenidas se estreitam e todas as suas casas se resumem em apenas uma, não isolada, se ela cheia de palavras e imagens que povoam salas e quartos e sobre a mesa a fartura serve o seu banquete numa doce harmonia das horas, ainda que uma, apenas, mas sem vazio algum, talvez.
E já não há o de repente, já não há, é agora o prolongar do tempo, flexível, espaço para o relógio determinar as suas horas enquanto a avenida se alonga outra vez: os seus passeios se enfileiram um ao outro e os passos percorrem leves, quase flutuando contemplam os ininterruptos jogos de amarelinha colorindo um chão.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

E depois


E depois, quando as palavras penetrantes ficam como luzes de brilho intenso e nem tão intenso outras vezes, quando, se não for num esforço qualquer pouco se vê ou nada além de um tom amarelado nas paisagens quase imperceptíveis se não fosse o olhar atento aos cantos mais enigmáticos do ser, nem de perto os ecos na boca balbuciando qualquer coisa, resmungos dos dias que nem as horas, nem as sombras, nem as ruas vazias e cheias, vazias e cheias, e a cabeça vazia e cheia, e o peito vazio e cheio, tudo tão vazio e tão cheio depois do instante de quando as horas vão se tornando definitivamente nada, tudo por um instante se tornando definitivamente nada e depois tudo se tornando definitivamente um algo inesperado acelerando o peito que se acalma e depois não, as sensações indecifráveis que se acalmam e depois não, e depois, tudo depois, depois, depois, isso ou aquilo depois, depois, depois, a melancolia depois, a felicidade depois, a melancolia e a felicidade depois, alternando-se, depois.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conto: "Que dia é este, meu Deus?

Ele acordou muito estranho naquela manhã, e levantou-se da cama tomado pelo cheiro de café que era o mesmo cheiro do café de um dia que ele não se recordava que dia era aquele, mas não poderia ser um dia qualquer, pois era um dia que estava mexendo bem lá no fundo do seu peito. Na boca, aquele gosto da infância, aquele sabor de geléia, exatamente aquela geléia quadrada e nas cores amarela e vermelha, e aqueles dias em que ele saia a comprar aquele doce, e a comê-lo sempre com um prazer que nem dava pra explicar. Que dia é este, meu Deus? Perguntou a si mesmo, enquanto suplicava a Deus pra lhe cochichar que dia era aquele que levava aquele gosto de geléia à sua boca e o cheiro de café entrando impetuosamente em suas narinas.
Mãe! Ele chamou de lá de dentro do quarto, e a mãe correndo ao seu encontro. Aquele menino que andou tão doente, e, naquele dia, véspera do seu aniversário, ela queria tanto que ele amanhecesse com saúde para comemorarem juntos! Um bolo enorme, para ser dividido entre todos os seus amigos, disfarçaria muito bem aquela tristeza que o menino sentia nos últimos dias, e que ninguém conseguia descobrir o motivo. Talvez, só mesmo ele soubesse.
A mãe chegou ao quarto e encontrou o menino sentado na cama e com o travesseiro no colo. Ele a olhou com aquele rosto singelo, ela se aproximou dele, abraçou-lhe e perguntou o que você quer, meu filho?! Ele nada respondeu, mas em seus gestos havia uma resposta silenciosa, e, em cada leve movimento, havia as palavras dizendo agora está tudo bem. Então, bem devagar, o menino se apegou ainda mais ao seu travesseiro e se deitou lentamente com ele atracado entre os seus braços. Comovente, apertava o travesseiro entre seus braços, enquanto a mãe fazia mais uma pergunta para si mesma: “o que é que este menino abraça tanto esse travesseiro assim, meu Deus?!” Nada de resposta.
Ela tocava nele, e o seu corpo respondia ao seu carinho. Ela tocava em seus cabelos, e ele chegava a cochilar. Mas, ao tentar arrumar o travesseiro, o seu corpo trazia de lá de dentro dele a resposta dizendo que não, que não era pra ela tocar naquele travesseiro, e ficava suando o suor daquele calor de tudo o que ele estava sentindo.
A mãe foi lá dentro e voltou com aquele doce embrulhado num guardanapo branco, aquele doce de geléia quadrada nas cores vermelha e amarela, e aquele gosto perfeitamente saboreado em sua boca, mesmo adoentado que ele estava na véspera do seu aniversário. Era aquele o gosto que ele estava sentindo, um gosto parecido com vários outros dias da sua vida, um sabor forte em sua língua, e, sem nem mesmo ter aquela geléia em sua boca. Era aquele o gosto que ele tanto sentia: véspera do seu aniversário de oito anos. Um sabor que veio bruscamente daqueles dias da sua infância, e agora se misturava com um cheiro de café, mas, do dia mais significativo do cheiro de café ele não queria se lembrar.
A memória, os esquecimentos e as recordações guardadas em algum lugar. A boca cheia de saliva, e enchia de saliva, e enchia, e ele não conseguia se lembrar do dia do cheiro de café. Ele sozinho em seu quarto, acabando de acordar, e tomado por uma sensação estranha, o gosto na boca, o cheiro, um cheiro guardado ou travado em algum lugar. “Mãe”, ele ouvia aquele eco lá dentro dele e lá dentro da casa, e lá fora da casa, vindo de lá da rua, quando ele brincava de soltar pipa e corria para comprar geléia, e brincava de gude e de bola, e aquele eco que corria entre as árvores e o tempo, e ela, a mãe, dizendo menino, venha tomar banho, e dizia tantas outras coisas, hora de merendar, menino, menino você parece que não sente fome. Era o cheiro de geléia que estava trazendo agora este som do qual ele sentia saudade, e nenhuma geléia pela casa, apenas ele sozinho ali no quarto com aquele sabor e com aquele cheiro de muito longe. O coração batendo forte por naquele dia ter acordado no meio daqueles outros dias que nem mais existiam.
Onde está todo mundo? Ele perguntava lá dentro dele mesmo, mas fazendo de conta que nem estava perguntando nada, pois não queria ficar com perguntas, das quais ele não queria pensar nas respostas. Onde está todo mundo, meu Deus? Minha xícara de chá, onde está, meu Deus? Era uma pergunta atrás da outra, feitas lá dentro de um esconderijo que ele fingia não existir. E perguntou, e perguntou, e revelou as saudades, e revelou com sorriso, e com tristeza, e cada instante ele sentia como as manifestações naturais lhe permitiam sentir.
Ele ali sentado com aquele travesseiro bem alvo e limpinho, trocado no dia anterior, véspera do seu aniversário, e, dentro dele, os anos que se passaram um a um. Ele queria ver todo mundo de novo, “meu Deus!” Mas, naquele dia, nenhum bolo de aniversário na sala, nenhum cheiro de bolo na cozinha, e ele não queria outro bolo, “pra que mais bolo, meu Deus!?”
Ele queria mesmo era brincar de bola, correr pelas ruas com os bolsos cheios de moedas e retornar com as mãos cheinhas de doces de geléia. Queria mesmo era ouvir o eco com o seu nome, “vem tomar banho meu filho, já brincou demais.” Era isto que ele queria, mesmo que entrasse em casa com vontade de brincar até que a tarde se emendasse com a noite.
Desde um tempo atrás soube que não adiantava mais ficar ali na cama imaginando tantas coisas passadas. E novamente se levantou em mais um dia de aniversário, cheirou a fronha branca que guardava o seu travesseiro, quase sacralizado, respirou a dor no peito e no coração, e se retirou do quarto, disfarçando não mais sentir aquele cheiro aromatizado de café. Aquele cheiro que penetrava não apenas o seu olfato, mas, também, o fundo do seu coração.