segunda-feira, 30 de maio de 2011

O cheiro íntimo de si mesmo


Não viu mais nada, invadido pela cegueira que não chegou abruptamente, mas pouco a pouco, dissimulada a cegueira silenciosa como nuvens esparsas, sutis, de vez em quando as imagens realçadas por uma sutileza quase invisível, até que depois. Mas antes, eram quadros pincelados em coloridos, ainda que as melancólicas horas, as cores expostas nos quadros enfeitando as paredes, não apenas as de fora, mas as paredes palpitantes no interior de si mesmo: balançando os sonhos enfeitados e as dores, elas tão expostas ao perceber que, lado a lado, dos sonhos, havia uma crosta arranhando o que em si era muito mais fragmentos e pedaços outros impotentes. A vida lá fora, fingida a vida lá fora, bailando num som estridente vindo de algum lugar às vezes tão desconhecido, às vezes, e outras já tão íntimas demais. E, portanto, ao abrir a porta… Ao abrir a porta, no meio da noite, nenhum colorido: sentimentos confundindo-se entre o que até podia ser chamado de felicidade, e a certeza outra, muito mais forte a certeza outra, corrosiva,

e no travesseiro o cheiro íntimo de si mesmo.

sábado, 21 de maio de 2011

As horas partiram naquele instante


Todas as horas partiram no mesmo instante em que percebera que não havia flores alguma, as flores que enfeitavam as fotografias coloridas e as que eram belas exatamente por serem em preto e branco, as flores nas fotografias. Em todas elas as cores deslizavam como águas sobre um rio que transbordava suavemente em seu leito, suavemente. O realce tão embelecido das cores nos jardins que enfeitavam a cidade; e na casa, sobre a mesa e nos cantos da sala de visita, o colorido espalhado pelos ramos verdes, bem verdes, os ramos de repente secos e sem colorido algum nos jarros sobre a mesa e nos cantos da sala, muito menos, e, de repente, as avenidas sem os jardins que enfeitavam a cidade nas fotografias por tantas horas diante dos seus olhos demais encantados com o que era, e muito mais com o que seria. Foi quando percebera, de vez, que todas as horas já haviam partido.

As horas partiram, bruscamente, como se nunca fotografia alguma. Tudo, talvez, sempre a fantasia como se fossem lentes de imagens esquizofrênicas, as imagens que enfeitavam a casa com as suas salas bem amplas e os seus corredores imensos, largos, estreitos, outros corredores quase se espremendo entre as salas que quase nem existiam.

“As flores nunca existiram”, pensou. E não conseguiu evitar o súbito pensamento de que a loucura, não, não era loucura, apenas vozes cochichando em seus ouvidos que nunca, nunca houvera flores alguma, nem mesmo nas fotografias. Nem as coloridas e nem as em preto e branco. Todas as horas partiram naquele instante. Então, quase desiludido, decidiu prosseguir pela avenida, sem nunca ter saído nem mesmo do seu quarto naquele dia. Apenas um rio transbordando de vozes, alimentadas todas as vozes como um deleite em álbum de fotografias, uma a uma as fotografias cheias de flores tão reais e tão imaginárias, enfeitando a vida em seus mais íntimos silêncios.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Possíveis contos


Estava agora vasculhando alguns dos diversos inícios de contos que foram deixados para depois… Às vezes, o texto parece que vai fluir por completo mas ele ganha voz e decide parar por ali, até que num outro dia, não se sabe quando, ele retorna. Alguns nunca mais retornam, e ficam pelos cantos, independente, amuados, mas talvez nunca se tornem ruínas.
Selecionei alguns dos contos que estão ainda pela metade, alguns mais recentes, outros nem tanto. São possibilidades, talvez para amanhã, talvez. Escrever é assim. Às vezes, o texto vem em tumultos de imagens e palavras abundantes, e depois o lapidar; outras vezes é o garimpar árduo, muito árduo, ainda que o prazer, o prazer, o gozo que transborda.


POSSIBILIDADE UM

Aquela menina
- Menina não,
Aquela mulher, mas que ainda tinha em seus gestos algumas das atitudes da menina e, na memória, a saudade da avó que se despedia, enquanto repousava o corpo e os afetos dentro dos seus braços. Num gesto sereno e no vazio dos acenos ela contemplava aquela paisagem imponente, enquanto a avó parecia sentir que a vida era. Um vento suave, e já não era mais vento, mas o repouso no infinito. Aquela mulher, com os sentimentos misturados aos da criança, que era ela mesma, sentou-se na cama de lençol bem alvo e morno, e acariciou aquele rosto também bem morno, assim como morna estava a fronha, a última, e apertou-o, agora em seu colo repousado, as mãos que, em seguida, abriram aquela carta, a última, escrita e guardada para aquele momento.
Temerosa, mas numa saudade sem desespero algum, a menina, a menina não, a mulher,
a neta abriu aquela carta entregue em suas mãos depois de tudo, depois das flores enfeitando a viagem da avó, a carta dizendo tantas coisas, tantas coisas que lhe doíam no coração com uma emoção e uma dor no peito, bem no fundo do coração. Ela lia aquelas palavras de voz envelhecida desde o tempo em que a neta, a neta, a neta ainda nem era corpo, nem era ser, nem era sangue a lhe correr as veias que foram se enfraquecendo, bem fraquinhas e tudo parou lá dentro dela. Para sempre tudo parou dentro dela, da avó enfeitada de flores, tudo parou, entretanto,
continuou lá fora, dentro do coração da neta de carta nas mãos com as palavras que também ficaram eternizadas e tantas imagens pulando de um lado para outro, as palavras saltando de um espaço para outro, lacunas no peito daquela mulher, não, daquela criança diante do espelho, criança ainda depois dos anos e as palavras que nunca deixavam as páginas envelhecerem.
Aquela mulher,
- Mulher não,
Aquela menina, abraçava a avó dentro dos seus braços e dentro das recordações quando em seus vestidos enfeitados andava pela casa agora embalada em malas, caixas, depósitos abarrotados de coisas da avó e que agora são suas: todas as coisas são suas se até o amor era. A xícara de asas esbeltas, talheres e pratos de bolos cortados, a toalha cobrindo a mesa repleta de afetos.


POSSIBILIDADE DOIS

A menina atravessou a sala, tímida,
a menina atravessou a sala e sentou-se na cadeira do piano de cor negra que enfeitava o ambiente muito mais do que o seu desejo de estar ali, novamente exposta diante dos convidados dos pais, vaidosos pela filha que seria a pianista da família, vislumbrados: a menina sentada ao piano com um longo vestido vermelho diante dos aplausos na sala em plena reverência, cheia a sala mais famosa da cidade,
Um dia,
eles repetiam,
um dia, ela,
ela, ela, a menina com uma vontade de chorar se sentia completamente surda para não ouvir novamente aquelas palavras dos pais, e dentro do peito a sua vontade guardada em seus segredos.
Atordoada, ela tocou mais uma música, repetida tantas vezes, a música, as músicas, ainda tão pouco para os inúmeros concertos ovacionados pelos pais, encantados pela pianista que nunca a mãe havia conseguido ser e sublimava a sua fantasia num sorriso meio contente e meio áspero, meio feliz e meio insatisfeita com a menina que, bem antes daqueles dias, era ela mesma, ela, ela, a mãe. Agora, a filha na vitrine diante dos convidados enquanto os seus dedos muito mais pareciam adormecidos, ela adormecida, e a música muito mais tornava-se uma angústia dentro do seu coração bem distante dali, o seu desejo bem distante dali, os seus sonhos quase desaparecidos entre as teclas brancas e pretas do piano bem envernizado detrás das imaginárias cortinas de veludo vermelho e adornada pelo dourado que se ausentava da menina cheia de outros segredos que ainda nem sabia ao certo quando, um dia.