sábado, 2 de janeiro de 2010

Pescador de enigmas

Estava tão envolvido no filme, que as lutas para que dele se desvencilhasse se tornaram impotentes diante da força do seu enredo.
Era sexta-feira, ou sábado, era sexta-feira, quando tudo começou. Ele estava deitado exatamente naquela cama e ouvia alguma música, quando, possivelmente, começou a percorrer o caminho da fantasia. O caminho da realidade, segundo ele. Sobre isto, não se sabe ao certo. Vivenciava uma situação entrelaçada por ficção e realidade. Começou, naquele dia, a partir de uma cena aparentemente comum. Hipóteses. De repente, o que parecia pura imaginação passou a agir como se fosse uma realidade, um fato, uma exata situação à sua volta. Foi quando começou a sentir medo, uma infantil vontade de chorar, e o seu peito passou a ter intensos momentos de calafrios.
Tudo já era verdade. Tudo estava diante dele. E ele que dizia ter sempre fugido desta possibilidade! Ele nunca havia se preparado para aquela verdade, diante da qual foi perdendo o controle de acreditar que era apenas fruto da sua imaginação! Pouco a pouco, não sabia mais a diferença entre ficção e realidade. Aquela ficção tão real o fazia sofrer de forma gradativa, passava a interferir em sua vida e o levava a se afastar de todos. Absoluta resistência. Intensificava-se um desejo de estar só, permanecer em seus próprios cantos. Ele, aquelas músicas, o silêncio do quarto com aquele cheiro abafado grudado no ar, e o calafrio que o fazia se prostrar diante de um interior que só ele penetrava.
Quem mais entenderia aquela loucura? Aquela sensação estranha que, no começo, ainda sussurrava em sua mente “é preciso limites.” O medo dos limites, ele dizendo que tinha medo dos limites do pensamento, pois a dor era cruel, e a falta de limites o acolhia. Ele sabia que o medo era mais forte do que ele.
Aquela necessidade de pensar, instigar e remoer tal situação se tornava incontrolável, e ele se entregava, e pensava “antes que alguém chegue, ou o telefone toque, o interfone, alguma voz...” Medo de ser interrompido. Fantasia cruel, “mas não é fantasia o que sinto”. Os enredos e os diálogos lhe criavam sofrimentos. Fantasias que lhe provocavam um vazio corrosivo. E pensava sempre um pouco mais, beirando as margens da imaginação. Aquele controle remoto em suas mãos “repetindo, repetindo, repetindo, como num disco riscado, o velho texto batido” e “cutucando, relembrando, reabrindo”, Maria Rita e Garfunkel, intensos, viscerais, a música tocando, e ele sem nem mais saber o que era verdade e o que era mentira.
De repente, um sorriso se alargou até às gargalhadas. Novamente, um olhar quase indecifrável. Em seu colo, páginas de Artaud diziam que “em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando em sua cabeça, apavoram as pessoas.” Grifou essas palavras com um grafite quase perfurando a folha, e prosseguiu a leitura, compulsivamente.

In: O silêncio e a Bagagem, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário