"[...] a mala se esvaziando, a mala se esvaziando, veementemente se esvaziando, sem nem mesmo alguma peça de roupa ter sido, pelo menos, dobrada e guardada dentro dela. A mala ainda vazia, completamente vazia, e já se esvaziando, se esvaziando, o fundo, o fundo da mala tão escuro de tamanha profundidade, e totalmente escancarado para o nada. Nada ali dentro da mala que seria tão pequena para o tanto a ser transportado, e o denso cheiro de vazio dentro da sua imensidão."
domingo, 10 de julho de 2011
Enquanto as horas
Ele permaneceu durante muitos dias naquela mesma posição diante da parede coberta de flores vermelhas. Sentado numa das cadeiras de vime que rodeavam a mesa, ele permanecia ininterrupto, com a mão apoiando o rosto, contemplativo e um sorriso quase indefinido. Rastro de alguma alegria que parecia se misturar com rastros de alguma melancolia, quando os dias, quando as horas, quando as recordações vasculham todos os cantos de um tempo de antes e o tempo presente, reconstruindo imagens e sentimentos como fotografias, algumas quase apagadas, enquanto outras quase em movimentos, enquanto outras, enquanto outras, enquanto outras…
- À espera das horas passarem.
Foi a sua resposta. E, do outro lado, as suas lembranças de Virginia surgiram de imediato, sem surpresa alguma, se, há muito tempo, ela – sim, ela, Wolf - havia se tornado um elo em sua vida. Uma sintonia como se antes tantos diálogos entre ele e ela, naqueles dias de confidencias pelas ruas, os bancos dos jardins, o campo, a alma em reflexões densas e algumas paisagens quase felizes. As décadas tão distantes uma das outras, mas as palavras e as horas, juntas, quase íntimas.
- “Mrs. Dolloway disse que ela mesma iria comprar as flores.”
Ela decidida naquele dia, e ele ouviu a composição de suas palavras como referência ao elo, tão claro o elo, desde as noites e manhãs e noites novamente. A repetição da frase do seu filme preferido, do seu livro junto ao outro livro, os dois, juntos. “Mrs, Dolloway, sempre dando festas para esconder o silêncio”. Pensamentos intercalados, “As Horas”, as horas, as horas… Tudo como mágica, como coincidência. Não, era simplesmente o acaso! As suas palavras confirmaram, sóbrias, pausadas e incisivas, enquanto o seu olhar permanecia confirmando que ele estava lá, e na alma as imagens se misturavam mais, enquanto algumas horas passavam lentamente e outras eram um turbilhão de horas acumuladas, cada uma em busca de qualquer lugar que acomodassem os seus voos desordenados, acomodados alguns.
- Comprei 3 livros de Virgínia, em inglês. Em Notting Hill, por 1.99 cada. To the lighthouse, Mrs. Dalloway, The Waves.
Ele e o prazer nas páginas cheias de palavras que deixavam de ser apenas dela, divididas as palavras, os sentimentos derramados pelas bordas dos livros, ele, o leitor, e, naquele dia, deste o amanhecer: As horas, quase todas. E ele ali, ainda na mesma posição diante da parede cheia de flores que ele mesmo havia comprado para a festa. Ele, uma fotografia intacta.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPensamentos, reflexões e sintonias se misturando com as horas. Horas que voam, horas que param, horas que não voltam.
ResponderExcluir“Mrs, Dolloway, sempre dando festas para esconder o silêncio”. Silencio escondido , preso a um passado, passado, passado...
Ele foi caminhando naquele corredor imenso, na expectativa de ser chamado e ouvir que era mentira ou uma brincadeira, mas passaram os minutos, as horas e horas, e nada.
“E ele ali, ainda na mesma posição diante da parede cheia de flores que ele mesmo havia comprado para a festa. Ele na fotografia, intacta.” A voz, o desejo do outro de o arrancar daquela parede imovel de flores vermelhas que não cheiram mais.
Bom, Ismar, muito bom o que você escreve. Vou te descobrindo, aos poucos, nas horas...
ResponderExcluirSelma
O que percebo no texto é um diálogo muito intenso dentro de outro diálogo e escrito de maneira a despertar uma vontade de ler mais.
ResponderExcluir"sempre dando festas para esconder o silêncio"...muito boa essa interpretacao pessoal das horas da Virginia...Tens que descobrir a nossa Virginia, aconselho "Seta despedida" (Maria Judite de Carvalho).
ResponderExcluirObrigado pelos comentários! Cada um em seus percursos dentro do texto. Bem diz o P. Ricoeur que a existência da narrativa depende não apenas dos lugares do autor, mas também do olhar do leitor,os seus gestos.
ResponderExcluirLi atentamente aos comentários, como sempre o faço. E quanto a escritora M. J de Carvalho estive agora mesmo lendo um pouco a respeito, curioso para ler um dos seus textos.
Abraço, e retornem sempre.