sábado, 30 de novembro de 2013

Desempoeirando


Depois de tanto tempo de coisas acumuladas dentro dela e dos objetos, e sobre eles e detrás deles, ela acordou impulsionada por um surto. Na ausência imediata de algum outro termo, ela chamou aquele instante de Surto. Mas não era. E só ao fim da manhã foi que ela começou a encontrar outros termos que definiram tão bem aquela reação apenas aparentemente súbita.

Havia acordado de uma noite tensa, densa, imensa noite que não acabaria nunca se não fosse o cansaço em seu corpo e em seus pensamentos acelerados um sobre outro, um jogo de empurra-empurra numa busca desenfreada de encontrar os seus lugares, soltos e transfigurados. Foi nesse tumulto que, poucas horas depois, acordou sentindo que algo balançava o seu corpo. Um grito desenfreado e sereno anunciava que era preciso sair daquele lugar, ou nele permanecer, mas que era necessário abrir as janelas, mudar as cortinas, tirar toda poeira que pesava os móveis, apesar de estarem sempre limpos, tão limpos.

Todos os dias presenciava-se aquela limpeza sem igual, mas tudo pesava diante dela, nela, sobre ela, até que, naquele dia, acordou com aquele grito sereno. Assustada, respirou com um alívio qualquer e voltou a fechar os olhos, com um desejo de dormir até que outras horas se passassem. Muitas e muitas horas. Entretanto, sentiu que lhe puxavam o lençol, o cobertor, o travesseiro, e ela quase sem força para reagir. Ela sem vontade alguma, até que outro grito surgiu, mais brando, um grito que lhe foi inconfundivelmente sereno e que lhe murmurou palavras após palavras.

Elas, as palavras, formavam períodos inteiros e reagia sobre ela como qualquer coisa que ela não sabia como explicar que coisa qualquer era aquela, ela tão sem palavras. E o outro grito se foi, quando ela ainda deitada, até que sentou sobre a cama, passou as mãos sobre o rosto, sobre os cabelos, levantou, banhou-se demoradamente sob o chuveiro de água forte, olhou-se no espelho, decidida a reverter aquela aparência cansada, e começou a desempoeirar não mais os móveis sobre a casa.

Passou o restante do dia assim, desempoeirando não os móveis da casa, desempoeirando-se.

Ao final da tarde, sentiu qualquer coisa estranha lhe arranhando, até que ela se apegou novamente aos gritos serenos e às palavras brandas murmuradas ao seu ouvido, e guardadas consigo. Lembrou-se do cansaço que ela já não queria sentir, e prosseguiu, desempoeirando. Ela desconfiava de que algo havia transcendido de vez.

Minutos depois, abriu a porta da casa e saiu, levando consigo o grito sereno.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Empoeirando o Tempo


Ela passou o tempo arrastando os móveis da casa, os móveis arrastados sem nunca terem saído do lugar. Alguns, de um tempo mais recente, mas tão pesados quanto os outros de antes, bem de antes: aqueles móveis de quando as horas de recordações afetivas não eram imprecisas. Nada parecia impreciso, antes. E de repente os quadros nas paredes envelheceram e as suas molduras perderam o seu dourado, empoeirados juntamente com as fotografias que coloriam o tempo. Ela sem querer compreender que nada daquilo que ela sentia podia ser amalgamado em móveis e em coisas de maneira a eternizar o que jamais viria a ser, senão dentro da casa que é ela mesma. Não eram os móveis, nem eram as coisas, e, paradoxalmente, eram eles ocupando os mesmos espaços do que pulsa dentro dela. Ela, acumulando coisas detrás dos bibelôs pretendidos a enfeitar o móvel de portas espelhadas; e coisas tumultuadas dentro do jarro de porcelana sem brilho algum num canto da sala, e debaixo da toalha de linho cobrindo o centro da mesa. Ela, acumulava tudo aquilo dentro dela, empoeirando o tempo.

domingo, 17 de novembro de 2013

Lucidez remexida


Cambaleava na avenida. A loucura cambaleava entranhada numa lucidez que não parecia ser qualquer uma. De quem era a loucura se ela garantia não ser dela? Ela convicta, enquanto uma espuma se acumulava nos cantos de sua boca, efervescente acidez provocada pelo desespero angustiante de se afirmar lúcida; ela, desafiando qualquer ausência de loucura estampada nos transeuntes, todos eles perplexos diante de frases tão bem formuladas da louca, “a louca está atacada no ônibus”, murmuravam alguns deles, enquanto ela, apavorada pela certeza de estar rodeada de olhares insanos, movimentava os braços, brusca e veementemente, segura de si mesma, e das veias alteradas subia aos seus olhos um vermelho enfumaçando palavras.

“Abre o caminho, abre.” Ela determinou, enfática e cambaleando ainda mais pelos bruscos movimentos do ônibus. E, com um tom de voz oscilando entre estridente e brando, prosseguiu, com um olhar firme sobre os passageiros ao seu redor:

- Abre o caminho que preciso passar e gritar até eu ver saindo de dentro da minha alma a dor que eu sinto por ser tratada como louca durante tanto tempo. Me chamaram tanto de louca! Me chamaram e ainda me chamam tanto de louca que comecei a ficar zonzinha de tão perdida, sem mais saber quem eu era. Vocês sabem que eu cheguei a ficar com medo de não saber mais quem eu sou? Mas ai eu repito o meu nome o dia inteirinho para eu não esquecer. Eu ficava zonzinha-zonzinha e lutando dentro de mim pra eu não esquecer que eu não era louca coisa nenhuma. Louca? Eu nunca fui louca, nunquinha, mas tanto me chamaram assim que eu me afundei num tonel de cachaça, e fui me afundando ainda mais do que naquele tempo que eu comecei a beber. Eu novinha! E eu bebia e eu dizia que eu não era louca, e eu bebia e até hoje bebo, bebo até a minha garganta ficar amarga que nem fel. É do fel que arranco as minhas palavras agora. Do fel. Ô que coisa ruim! Coisa ruim é arrancar palavras do fel! E não é só palavra não.

Ela elevou as mãos até a cabeça, respirou uma angústia, passou as mãos sobre os seus cabelos crespos e desalinhados, limpou a espuma de um dos cantos da boca, respirou outra angústia e prossegui o seu discurso, louco para alguns e sensível para outros.

- Eu fiquei quase surdinha...

Respirou outra angústia.

- Quase surdinha...

E esfregou uma mão sobre o rosto suado, as veias alteradas pulsando uma ira, um descaso, uma dor remexida e se arrastando pelo tempo, arranhada. Novamente pegou o fio, enquanto novos passageiros avolumavam o ônibus e outros eram obrigados a se aproximarem dela.

- Vocês estão com medo de chegar perto de mim, é? Estão com medo? Me humilha! Me humilha também igual a eles. Olha, eu já fui tão humilhada que muitas vezes já me senti uma migalha. Uma migalha. Uma coisinha desse tamanho assim, ó. Ó, ó, ó.

Ela persistia em seu gesto com os dedos, representando a pequinês que já havia se sentido, insistindo para que a vissem, e o silêncio de todos, alguns se insinuando desatentos, mas quase todos atraídos pela intensidade daquela que, pouco a pouco, não era mais a louca lá do começo.

- E a migalha ficou quase surdinha, quase surdinha de tudo, de tanto ouvir que não prestava pra nada. Eu ouvia tanto isso!
E que o meu destino é ficar zanzando num mundo rodeada de gente doida que nem eu. Que nem eu não, eles é que dizem que eu sou assim. E vou dizer, viu! Vou dizer que o que me dói ainda mais... O que me deixa desesperada ainda mais é que eles acham que eu sou louca mesmo e me enchem de remédio. Como é que eles me enchem de remédio? Eu digo, mas ô gente, ô gente, não diga que eu sou louca, que é coisa de louca...

Uma nova camada de espuma expelia de sua boca, o gosto daquele fel, as suas pernas agora trêmulas e os seus olhos brilhando de lágrimas. E ela, talvez sem nem perceber que lágrimas desciam em seu rosto, contou:

- Se eu estou com dor de cabeça, o remédio que eles me dão é um punhado de comprimido para gente louca, e, se eu não tomo, eles me dão de alguma maneira. Eu não tenho como ficar sem comer nada e nem beber nada naquela casa, porque querendo ou não aquele é o meu lugar. Eles dizem que o meu lugar é num hospício, mas eu lá não chegarei! Eles pensam que eu não sei que de algum jeito aqueles comprimidos descem minha goela adentro, mas eu sei, sei e muito bem, pois, depois, eu caio num sono de não sei quantos dias e quando eu acordo já não sei quem eu sou, até que eles me dizem: “você é louca”.

Ela repetiu “você é louca” já tão alterada e apontando o dedo aleatoriamente para as pessoas ao seu redor, “você é louca” e novamente o dedo sobre elas, “você é louca” e levou as mãos sobre a cabeça, se encaminhou até a escada da porta de saída do ônibus, recostou numa de suas laterais, e murmurou qualquer coisa; e murmurou outra vez qualquer outra coisa. Então, suarenta e acometida por uma sonolência repentina, balbuciou não tão baixinho: “às vezes, a gente não tem outra saída a não ser louca mesmo!”, e começou a resistir ao sono, muito sono, ela cambaleando entre as pernas dos passageiros silenciosos.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

As quatro estações em tão poucos minutos


Olhou o tempo como se fosse uma árvore de folhagem verde,
bem verde a folhagem
e pouco a pouco era uma árvore de inverno
(num lugar onde as estações se definem tão bem).
A árvore. A mesma árvore
percorrendo a primavera e o outono
espremida dentro daquele momento
Breve.

Olhou o tempo como se fosse uma estrada
bem longa a estrada
(e lá no fim ainda se vê a nítida imagem do céu bem próximo da terra
distância inenarrável).

Olhou o tempo e o enfeitou com imagens palpáveis
coisas e cores, o abstrato e o concreto se confundindo.
As sementes germinavam,
Germinavam,
E o tempo se movimentava em folhas, em flores, em frutos.

Depois olhou as horas:
tão poucos minutos
dentro daquele tempo.