"[...] a mala se esvaziando, a mala se esvaziando, veementemente se esvaziando, sem nem mesmo alguma peça de roupa ter sido, pelo menos, dobrada e guardada dentro dela. A mala ainda vazia, completamente vazia, e já se esvaziando, se esvaziando, o fundo, o fundo da mala tão escuro de tamanha profundidade, e totalmente escancarado para o nada. Nada ali dentro da mala que seria tão pequena para o tanto a ser transportado, e o denso cheiro de vazio dentro da sua imensidão."
quinta-feira, 25 de março de 2010
"Antes que os morangos apodreçam" III
Comecei a escrever o Capítulo 4 do romance. Estou na sexta página, e ontem parei ao me deparar com um impasse por causa de uma chave: não me sentia seguro se “aquela” deveria ser ou não a chave de uma certa porta, em um determinado momento. Cada capítulo, embora seja a continuidade dos anteriores num entrelaçar da trama, é também uma etapa independente, a sensação de que uma nova história, que não aquela, vai acontecer. Apenas uma sensação, pois a ´nova história` é determinada pela ´velha história`.
A mudança de espaço ou mesmo a sua permanência faz com que tudo seja novo. Um objeto que cai, um inseto que surge, um pensamento no lugar da realidade, tudo, enfim, transforma o ambiente que inicia um novo capítulo, o ambiente que pode ser a mesma sala de antes, num momento imediato ao anterior.
Como comentei na postagem anterior, depois que conclui o Capítulo 3 fiquei talvez uma semana sem escrever. Intervalo. Uma necessidade de ler um romance, um texto sem vínculo direto com o que venho lendo com um propósito mais específico. A sugestão: F. Dostoiévski, “Cadernos do subterrâneo”, traduzido também como “Memórias do subsolo”, na versão brasileira. Um perfeito exemplo de fluxo de consciência, além da excelência do texto. Eu estou falando de Dostoiévski. Uma leitura que suga o fôlego no melhor sentido da palavra e do prazer. O tempo voou. Nem vi o tempo voando.
“Meus senhores, claro que estou a brincar, e eu próprio sei que ando mal ao brincar assim, que nem tudo pode ser levado na brincadeira. Talvez esteja a brincar rangendo os dentes. Senhores, estou atormentado de questões, resolvam-nas por mim.” (p. 53).
E na sequência densa do texto…
“Passou-me pela cabeça um pensamento lúgubre, percorreu-me o corpo como um arrepio de repulsa, um pouco como que se sente quando se entra numa cave húmida e bafienta.” (p.134).
E o tempo voou. Retornei à minha escrita, e espero que o tempo também voe, e o romance caiba dentro deste tempo.
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Ismar, cada capítulo é mesmo um livro a parte e uma parte do mesmo livro. Cada um com suas cores e seus sabores. Aos poucos sinto o narrador muito próximo de todos os morangos, sentindo o contorno e a profundidade de cada personagem. Acompanhar a construção de um romance tão bem escrito e tão belo é um privilégio indescritível. Mas, ainda assim, um dia, muito em breve, gostaria de realizar um estudo sua obra.
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