quinta-feira, 11 de maio de 2023

terça-feira, 25 de abril de 2023

Um abraço pela metade


Abriu a porta bem devagar com aquela saudade dentro do seu peito, guardada desde quando há dez anos havia partido para voltar no mês seguinte. Abriu a porta bem devagarinho, com aquele desejo guardado no coração. O desejo de fazer-lhe uma surpresa com o seu abraço e com os seus olhos cheios de emoção, e correndo para os seus braços, sem desgrudarem os olhos um do outro, e aquele calor em seu peito, sem precisar de palavras para dizer eu te amo e eu te amo também.

Abriu a porta com aquele suspense retido no coração, uma aflição por não saber se ainda era esperado, e um impacto grudado em suas bruscas recordações: o menino correndo pra lá e pra cá, hora da merenda das três horas da tarde, café com leite, pão com manteiga, fatias de bolo de laranja, qualquer coisa que anunciasse que dali a pouco seria a hora do banho, a tardezinha chegando, e os seus sonhos que rompiam até mesmo a escuridão da noite. Foi bem deste jeito. Pensamentos tumultuados por acontecimentos, e não sabia mais como se controlar frente ao encantamento.

Ficaram ali abraçados sem dizer uma palavra sequer. Apenas aquele suspiro tão fundo e carregado de espanto pelo que parecia nunca mais acontecer. As pernas se batiam umas nas outras, os corações se empurravam pra lá e pra cá, e os rostos quase um queimando o outro.

Ficaram abraçados naquele estado de comoção até que ele percebeu que o abraço que lhe acolhia foi aos poucos, bem aos poucos mesmo, se soltando dele e o coração deixando de pulsar junto do seu. Ele com tanto desejo de se manter acolhido, ao menos por mais um pouco de tempo, mas ela olhou dentro dos seus olhos, com uma dor escondida durante tantos anos, e, numa atitude inesperada, olhou ainda mais fundo, deslizou os seus dedos sobre o seu peito, recuou-se, lentamente, e num gesto brusco o empurrou para trás, desfazendo de uma só vez todo o abraço guardado durante dez anos.

“Desgraçado!” Ela disse, com um olhar melancólico. “Por todos estes anos, você só pensou em você mesmo, e desconheço a sua saudade. Suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo, suas palavras foram sumindo até que sumiram de vez no meio de tudo que foi sendo encontrado lá fora. E eu aqui grudada no telefone, e grudada na sirene, e grudada no correio que nunca mais chegou.”

E ele, sabe-se lá se coitado, entalado com o abraço cortado pela metade, ficou ali parado com os braços entreabertos, enquanto ela se afastava olhando em seus olhos e repetindo as mesmas palavras e outras que ele já nem conseguia definir o que diziam. Ela continuou afastando-se até que as suas costas bateram na mesa, e ela virou-se de costas e arrancou as flores artificiais que havia dentro daquele jarro de vidro transparente e as jogou em seus próprios pés. Logo em seguida, pegou o jarro e, com veemência, o lançou aos pés dele, que permaneceu sem dizer uma única palavra sequer.

A mala bem ali ao seu lado. Uma bagagem desconhecida, quem sabe um presente que demonstrasse que em algum momento ela havia sido tão lembrada naquela terra que, para ela, era terra desgraçada, terra que encantava e roubava sentimentos alheios. Ela olhava para aquela bagagem, pequena demais para quem esteve fora desde uma década atrás, e, enquanto isso, ajoelhou-se, apertou a cabeça entre os seus braços, e deu um grito tão alto que ele achou que fosse grito de doido.

“É grito de doido!” Ele pensou, apavorado pelo risco de ter trazido de lá de fora a loucura para dentro daquela casa. A boca travada, a cabeça novamente cheia de recordações: o café com leite derramado sobre a mesa, a orelha vermelha igual a brasa, ele injustamente levado ao castigo, e aquele choro sem fim.

O grito que ele já imaginava ser grito de doido encheu toda a casa e pulou janela afora. Ele deu um passo à frente, e parou quando ela deu um passo para trás. Foi neste momento que ela olhou bem mais dentro dos olhos dele, levou as mãos até a gola do seu vestido e o rasgou de cima a baixo, expondo toda a sua nudez guardada por tantos anos.

Ela andou direção a ele, sempre em passos lentos, abaixou-se diante dos seus pés, pegou sobre o chão um dos cacos do jarro, retornou alguns passos, ele atônito, ela controlando todos os olhares, e, de uma só vez, apertou, dentro das suas mãos, aquele caco pontiagudo. Ele, trêmulo, levou as mãos ao rosto, tornando turva a sua visão, enquanto ela foi em direção à porta, ainda aberta, e saiu em passos longos pela rua afora.

Mais cinco anos se passaram. Mas ele, sempre silencioso, nunca deixou de visitá-la naquele quarto cheio de medicamentos, nem de acariciá-la quando ela permitia, e nem de levá-la para passear por aquele jardim tão arborizado, embora o ache tão sombrio.

"O silêncio e a bagagem" - Contos (Nova Edição 2020, Revista)

Capa: Nana Andrade - andrade.nanaf@gmail.com

Apresentação

Este livro – O silêncio e a bagagem - representa um espaço literário que convida o leitor para encontrar sentido e significado em seu próprio silêncio e em sua própria bagagem. Cada história apresenta uma riqueza de personagens e de detalhes do quotidiano, cada uma é única, porém há um fio condutor que parece unir todas as histórias: a voz da bagagem do mundo subjetivo que mundo exterior com seu movimento frenético e incessante tenta calar. I. Luiz Andrade revela a força brutal do mundo concreto que deseja de alguma forma suprimir os anseios mais intensos e relevantes do ser humano. A realidade com seus infinitos e por vezes insignificantes detalhes que insistem em desviar o olhar do próprio sujeito, da sua importante demanda interna para as resoluções práticas do dia a dia. O silêncio, tão marcante em todas as narrativas no livro, revela que o calar é também uma forma de viver e resistir aos inúmeros apelos da vida quotidiana. A bagagem que habita o mundo interior se recusa a aceitar todas as premissas que a realidade exige e o silêncio é momento de soberania do sujeito, esse feixe de emoções quase totalmente subjugado aos acontecimentos da vida.

I.Luiz Andrade trabalha em sua escrita de forma única justamente o quase, aquilo que quase é dito, que quase é feito, que fervilha nos pensamentos dos seus personagens e toca assim a forma de ver e estar no mundo do leitor.

A vida concreta dos personagens, o dia a dia, os afazeres tentam calar a força torrencial do mundo interno. É justamente a sutileza e o mistério que habitam o mundo subjetivo dos personagens que é explorado pelo autor do livro, que percorre com maestria os labirintos interiores que estruturam os sujeitos fictícios que na verdade representam os sujeitos reais que somos todos nós, que também experimentamos diariamente essa luta entre a voz ininterrupta da realidade em contraste com a importante voz interior. É justamente no momento de silencio, de pausa, de um certo vazio, que os personagens percebem que há algo para além do concreto, algo que estrutura e preenche a existência humana. Algo que dá sentido e dignifica a caminhada de cada um com o seu silêncio e a sua bagagem.

I. Luiz Andrade mostra toda a fragilidade que é constituinte do ser humano: o medo, o tédio, o desejo, a tristeza, a competição. As falhas internas são expostas justamente nos momentos de silencio, nas pausas que a vida involuntariamente proporciona deixando as personagens e o ser humano à deriva, mostrando que todas as redes de segurança são construtos artificiais que nos ajudam a lidar com o grande caos que é existir.

Esse livro é um convite para que o leitor conheça melhor todos os recantos da sua subjetividade: aquilo que nos alegra e que nos cala, aquilo que nos fortalece e aquilo que nos amedronta, aquilo que nos faz suspirar e aquilo que nos fazer ter receios.

As belas narrativas proporcionam um mergulho intenso na interioridade humana, mostrando toda a sua potência e todas as suas fragilidades, a promissora possibilidade de completude e a marca da falta, do vazio, daquilo que é impossível nomear e que mora no mais profundo de todo ser humano.

Trata-se da segunda edição de O silêncio e a bagagem. A primeira publicação ocorreu em 2008. Após mais de uma década, o autor decidiu presentear o leitor com uma nova edição, tão instigante como a primeira, pronta para transformar a vida do leitor, pois uma excelente leitura como essa que o livro nos proporciona, torna o nosso mundo mais vasto, mais amplo, as perspetivas do nosso olhar ganham novas cores e nuances. A realidade interna e externa ganham outras e incríveis proporções a partir da leitura das narrativas presentes neste livro.

Cláudia Souza.

Lisboa, Outono de 2020.

Instagram: claudiafernandopessoa

segunda-feira, 8 de março de 2021

"Fragmentos do diário de Martha B."

Capa: Gustav Klimt, Apple Tree

Publicação: Subterrânea Colectivo


Prefácio: Roberto Nicosia*

In questo squilibrio del dubbio, come per gli orologi sciolti di Dalì, la scrittura di Martha B. diventa liquida e pervasiva, la divagazione apre le porte ad una dialettica i cui termini di confronto sono basati sul principio di negazione della memoria.”

Projetada pela escolha que está para além de uma personalidade monolítica – o gênero diarístico é a melhor sedução da alma por um desejo em constante movimento –, o drama conflituoso de quem quer entender os sinais opacos dos eventos interiores se traduz, por Martha B., em pura capacidade criativa, à qual não é necessário compreender, mas sobretudo conectar-se: “Portanto aqui me desprendo da ordem das palavras e do pensamento, ordem no sentido de sequência”. A sua viagem através da memória é uma mala desfeita sempre no ponto de ser fechada, entretanto, pronta para uma partida futura. Se não único, todavia claro, resulta o argumento principal de quem inicia e se prepara para a leitura deste memorial: o senso de fuga e da labiríntica procura é sempre presente.

No desequilíbrio da dúvida, como pelos relógios dissolvidos de Dalí, a escritura de Martha B. se torna líquida e pervasiva, a divagacão abre as portas a uma dialética cujos términos de confronto são baseados sobre princípios de negacão da memória e da reflexão. Simon, Gael, vó Antonieta, a mãe, o pai, o irmão, Alzira, Catarine, e outros, bem como os objetos recorrentes (a janela do próprio quarto, a árvore etc…), diante da lente de uma análise prolongada por dias e meses, passam a ser figuras e emblemas de uma complexa galáxia narrativa contra cuja voz da protagonista se modula e se fragmenta em regatos e meandros.

Como um vidro despedaçado, a vida, ou melhor, as vidas de Martha não conseguem preencher o abismo dos seus próprios fragmentos. As próprias cartas do diário são uma sucessão de registros clínicos que imprimem a presença inquietante de um estado de melancolia, mas sobretudo o desejo de um mapeamento artesanal do próprio ser – consciente/inconsciente – em continua expansão e, por isto, impossível de se conter, torrencial.

Exatamente na procura das fronteiras, o centro resulta em um vazio (simbolizado na infinitude do deserto ou do silêncio), dentro do qual Martha B. escava os contornos dos fatos e das emoçōes, operando como um escultor cuja tarefa é extrair da matéria o perfil do representado: em tal atividade, nada pode ser desconsiderado, nem mesmo o não ser, que necessita de uma definição para exorcisar o risco do vazio, a negação própria de um diário.

É nesta infatigável tentativa de compreender a si mesma que Martha B. chega a se opor ao otimismo da palavra (repetida, alternada, rima imperfeita, reagrupada em lexemas), o que desempenha um papel fundamental na sintaxe dos pensamentos. Uma sintaxe repensada que, à forma dialética tradicional de tese-antítese-síntese (circular e fechada), opõe-se a um binômio aberto: uma vez introduzido o tema do dia, Martha se abandona a testar as lógicas convencionais sem jamais se interessar com a conclusão. O resultado é um efeito de não-acabado, de absoluta casualidade, de reverberação que lança o leitor em direção a ulteriores reflexões e espaços narrativos.

É exatamente aqui, para mim, que está a essência do livro de I. Luiz Andrade: as faces, os silêncios, os desertos, as angústias, as inquietações, ainda que mil vezes abordadas pela lúcida loucura de Martha, e que não podem nunca serem definidas em casos, porque o caso limita, enquanto Martha B. continua a viver na pulsão da sua procura, e a procura de todos nós que estabelecemos um diálogo com Martha. O sentido daqueles espaços deixados à nossa divagação, entre dias e dias, entre parágrafo e parágrafo, entre palavra e palavra, estendem um corredor que necessita da nossa experiência para completar-se e fechar-se em circuito a duplo fluxo, no qual o dar e ter são diretamente proporcionais à nossa necessidade de ver a profundidade deste vasto espelho emocional e psíquico.

Fragmentos do diário de Martha B. é um livro imprescindível para quem procura na escritura uma chave interpretativa do ser e a sua evolução. Não tem nada de superficial neste movimento espiral que envolve a palavra, a frase, a respiração dos parágrafos, o ritmo dos sons, as discrasias, a presença inevitável do corpo e dos sentidos, os sonhos, as lembranças, e os símbolos de uma protagonista que evoca no nome a tradição bíblica da vida ativa. O diário de Martha B. é, portanto, um pretexto para qualquer um de nós que queira penetrar ativamente nos esconderijos de uma alma feminina e no universo psíquico em geral, onde, como no mito platônico da caverna, nutre-se de sombras refletidas para iniciar a própria busca da verdade. Buona lettura.

*Tulane University - New Orleans - EUA

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Disponível nas versões e-book e física. www.amazon.com.br - www.amazon.com - www.amazon.es e demais lojas Amazon.

https://subterraneacolectivo.wixsite.com/apresentacao/i-luiz-andrade

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segunda-feira, 1 de março de 2021

"Quase jardins" - Romance


Capa: Nada Andrade

Revisão: Eneida Moreida de Brito

Edição: Subterrânea Colectivo

Apresentação: Cláudia Souza*

Quase jardins é o romance do premiado escritor I. Luiz Andrade. Redigido entre os muitos jardins de Lisboa, de Esmoriz e da cidade de Porto, o texto conduz o leitor aos labirintos da reflexão. É uma história sobre o silêncio e a solidão. Uma solidão complexa e densa, uma solidão vivida em família.

O romance está construído em torno de quatro personagens principais que, no desenrolar do texto, se transformam em vários outros e por vezes se misturam, como é o caso de José do Lago e de Júlio. As palavras que deslizaram das mãos atentas do escritor buscam e encontram no leitor representações que o habitam: a mãe, o pai, o filho, a filha, a existência, a loucura, a linguagem e as águas… Águas que unem e separam vidas, intimidades, vontades, verdades. Águas que aparecem depois que o sol se põe, quando tudo fica paradoxalmente mais claro, mais nítido. O dia, no romance, traz uma outra lucidez, perigosa, arriscada como toda lucidez, que pode conduzir o ser à loucura e aos seus arredores.

Trata-se de romance polifónico, no sentido bakhtiniano do termo, todas as personagens têm o mesmo brilho, a mesma força. A escrita do texto foi construída de tal forma, que ao caminhar pelos capítulos muitos horizontes se desdobram. Não há um centro único e intocável, há o deslize, há o encanto, há um campo de possibilidades. Se o autor está morto, como afirmaria Barthes, Foucault e tantos outros pensadores, não podemos afirmar. Podemos apenas dizer com alguma certeza que o autor principal do texto é o próprio texto, dialógico e polifónico, como cada um de nós, e por isso o romance é tão envolvente e tão sedutor. O responsável pelo gesto que gerou a escrita foi acima de tudo artista, soube usar com maestria cada palavra, soube articular a linguagem de tal forma que a entrega do leitor é inevitável.

Quase Jardins é um título muito oportuno, pois são muitos os jardins do romance. Existe um jardim infantil, fruto de fortes e distantes lembranças de um adulto. Esse mesmo jardim é o palco de alucinações infantis, de desejos, de sonhos. O outro jardim fica na outra margem do rio, num lugar imaginado ou real? O autor deixa essa questão para o leitor. Um jardim também de alucinações, de medo, de apreensão e de muitos encontros. A grama verde, as árvores, os muitos remédios, o banco…o banco do jardim, um convite à partilha. O vasto jardim do psiquismo humano é amplamente trabalhado no texto.

A escrita, a linguagem, esse grande Outro do romance foi construído de tal forma que o silêncio também é parte fundamental do texto. E através do silêncio, que compõe o texto, o leitor vai se tornando artífice da história, ele também constrói o romance. As palavras que habitam o mundo há tanto tempo, vão à medida que as páginas são viradas, fazendo eco, conduzindo o leitor por belos e complexos jardins. O silêncio ruidoso do texto penetra no psiquismo do leitor trazendo a leitura por caminhos quotidianos e concretos: Júlio, Helena, José e Mariza aparecem na real mesa de jantar, na cabeceira, nas ruas, revelando uma mistura entre o real e a ficção.

O estilo do romance é impecável, a articulação entre todas as palavras, todos os factos, todos os personagens. Uma escrita sobretudo fluida – que, como a água, passeia entre muitos lugares, entre muitos significantes, entre muitos jardins. E as personagens quase dizem tudo, quase são todos protagonistas, quase são todos permeados pela loucura e é neste quase que está toda a beleza da narrativa. O quase dito, o semi-dito, a verdade que nunca é toda, nunca é inteira, somente quase. Mariza é quase uma mulher perfeita, Júlio é quase feliz, José é quase um ótimo pai e Helena é quase autossuficiente. Esse quase traz uma sabedoria e encanta o leitor que é quase escritor, quase intérprete, quase inteiro, quase verdadeiro, quase louco.

Tornar o leitor participante ativo do romance quer dizer que só resta uma certeza: o escritor nunca foi quase. Ele foi inteiro na sua transpiração e na sua inspiração para escrever, pois só diante de uma inteireza maciça havia a possibilidade de construir todos os quase que habitam o romance.

Além das personagens já citadas, encontramos também a figura de uma avó, uma personalidade que tem um importante papel no núcleo familiar. Uma avó construída através de uma fértil imaginação, ela realmente existiu? Quando a personagem da avó ganha força uma pergunta se faz presente: o que é de fato real, e o que é construção de uma mente fantasiosa? Uma mente que é capaz de realizar muitas viagens, quase verdadeiras, quase em segundos, num momento em que a chave roda na fechadura, num momento de distração, num momento inesperado.

Um outro aspecto muito interessante no romance é o olhar. A narrativa do romance é estruturada sobretudo a partir do olhar. Como no parágrafo inicial do primeiro capítulo, no qual um dos personagens, sentado num degrau, contempla “a paisagem nítida das coisas”, “tudo tão indecifrável”. O olhar, a água, a linguagem, forças incontroláveis que permeiam o romance. A água com sua força depurativa e misteriosa. O olhar dos personagens que busca decifrar o indecifrável. E a linguagem essa grande rede sobre a qual estamos estendidos todos e todos os personagens que Quase Jardins invoca.

Depois de iniciada a leitura de Quase Jardins o leitor começa a contar o seu próprio romance. O texto é altamente sedutor e foi elaborado com tal perfeição que o leitor não só se envolve com os personagens, como os personagens se envolvem com o leitor. Ou seja, é um romance que altera a sua visão do mundo e de si. O poder da escrita, da utilização da linguagem é elevada ao máximo grau, de tal forma que se torna impossível não estabelecer um pacto com a narrativa e permitir que ela, na sua fluidez aquática, passeie pelas constelações mais belas e profundas que habitam a psique de cada um de nós.

Júlio, Helena, Mariza, José esperam o toque do leitor, o manusear das páginas. Assim como o louco, que é outra personagem muito rico e bem construído, que entre seus muitos frascos de remédios exala sua intensa lucidez filosófica. Um louco que habita o cerne do conhecer, o centro do inapreensível, o centro do ser humano, tão cheio de nós, feitos durante uma pequena existência.

Quase Jardins é uma obra-prima da literatura, uma obra grandiosa de um autor que traz na sua escrita um dizer único, um estilo ímpar e suscita no seu interlocutor muitas questões. É um romance que suspende o ar, que leva o leitor por recantos do existir, que exalta o grande Outro, a linguagem, lugar-comum, onde todos nós somos mestres e escravos, com a excepção do escritor, que através desta obra riquíssima mostra que em seu tecer com as palavras foi muito mais mestre. As muitas águas do romance precisam de movimento, precisam que o leitor, atento até agora a esse prefácio, inicie a sua viagem, única, reflexiva e instigante.

*Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-doutora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Possui livros, capítulos de livros e artigos publicados no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos.

Disponível nas versões e-book e física, em: www.amazon.com.br, www.amazon.com, www.amazon.es e demais lojas Amazon.

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

"É o inverno, Leon" - Romance

Capa: Nana Andrade
Revisão: Maria Cristina Mota
Edição: Subterrânea Colectivo

Prefácio: Elis Crokidakis*

Em busca do verão.

Com uma escrita frenética como se fosse um filme de ação, Leon é construído. Um personagem que não vem direto com uma descrição minuciosa de seu universo, ao contrário, ele vem aos poucos, em cada capítulo, sendo inventado. No entanto, há elementos que são presentes em todo o texto, pois em todos os capítulos vemos a angústia de Leon, sua fragmentação, seu devaneio.

Camus, em “O estrangeiro”, coloca-nos diante de um homem que parece não ter sentimentos, para quem tanto faz como tanto fez, ao contrário é Leon, este tem excesso de sentimentos, de sensações, de saberes que o confundem e não o deixam com a mente clara. Nem um nem outro são o ideal. Talvez o caminho do meio nos soasse como algo mais tranquilo, mas como no atual estágio em que se encontra a humanidade isso é cada vez mais difícil. Acordamos e tudo já aconteceu enquanto dormimos, os meios de comunicação que nos aproximam também nos distanciam e a cada momento são maiores os índices de extrema solidão, mesmo que sejamos os mais conectados. Talvez seja isso que I. Luiz Andrade nos queira dizer. E diz por sua forma mais intensa, mais cortante, que por vezes se faz necessário parar de ler para não sucumbir às sensações.

Quem é Leon? Quem é Nara? Quem é Laura? Quem é Lílian? Quem somos todos nós na loucura do viver? Talvez seja essa a grande pergunta do livro. Todavia ela é apressada, não dá trégua ao leitor, que ao ler fica sufocado. A velocidade das palavras em parágrafos curtos e as descrições dos espaços marcados por meios de transporte fazem o leitor sentir que precisa se deslocar, sair da mesmice para não se consumir nas dúvidas, nos desencontros da vida, ao mesmo tempo em que busca o fio de Ariadne no labirinto de Creta. A memória é o grande viés a percorrer a narrativa, ela vai e volta. Leon não entende como isso acontece, mas é assim que se dá. Talvez a memória seja, então, o grande labirinto que, na narrativa, necessita de um condutor para levar o fio.

Mas e o enredo, a história, esta é menos importante que a forma de narrar. Posso ousar dizer que a escrita é também labiríntica e tudo se convergirá a um só enredo? Não creio. Cada leitor fará uma história diferente, na magia da arte tudo pode acontecer. “Viver ultrapassa qualquer entendimento”, diria Clarice Lispector, mas que vida é essa? Leon está em busca de si mesmo e vê em todos as explicações para si mesmo. É o inverno, sempre inverno, diz a mãe, diz Nara, diz Laura. Todo mundo diz, mas Leon não sabe sobre o seu sentir, ou seja, de que ordem são os seus sentimentos, e também não sabe o que sente. Mas sabe que o inverno está dentro dele em certos momentos de sua existência.

A necessidade de entender a si mesmo e aos seus sentimentos truncados fazem ainda de Leon o próprio homem pós-moderno, solto no mundo, fragmentado e sem saber onde ir, aí ele se volta para o berço. No texto, é clara a presença da família, aquela que ele tem certeza que estará sempre ali para acolhê-lo. A mãe, a que mais o entende, a referência maior, o pai, o amor e o respeito, e os demais como um complemento para a identificação do que seria o seu verão. Ou seja, Leon está aí o tempo todo, nas ruas, nas salas de aula, nos transportes, em qualquer lugar. Ele representa, por fim, essa necessidade que todo ser humano tem de se sentir acolhido, amado para poder ser e não apenas existir.

Villefrance de Rouergue, em setembro de 2019.

*Doutora em Ciência da Literatura, com pós-doutorado em Literatura Brasileira. Professora de Literatura e Cinema da FACHA

Livro disponível nas versões física e e-book: www.amazon.com, www.amazon.com.br, e demais lojas Amazon.

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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Palavras (in)visíveis


Capa: Nana Andrade

Desenhos: João Matos


Prefácio, Nuno Ribeiro*

O livro Palavras (In)visíveis de I. Luiz Andrade encontra-se estruturado em torno de dois temas que compõem esta obra poética: a potência plástica da palavra e a capacidade expressiva do silêncio. Com efeito, ao longo do presente livro existem múltiplas instanciações da potencialidade plástica que subjaz à “palavra”. Encontramos um claro exemplo disso no poema “Tempo das Palavras”, em particular nas duas primeiras estrofes deste poema, onde lemos:

Palavras que mudam com o tempo
o sentido
a intenção.
Palavras que um dia tanto foram
que um dia tanto podem
não mais resistir,
inesperadamente.

Palavras que mudam o rumo
de rumo
e deixam fragmentos
- às vezes, felicidades
imagens, lá dentro
um vento.

De acordo com este poema, a palavra é constituída por uma natureza mutável. Conforme nos diz o autor, “as palavras mudam com o tempo”, numa progressiva alteração de “rumo”, isto é, numa constante divisão de sentidos abertos à criação de uma multiplicidade de mundos diversos que são potenciados por essa variedade de sentidos que a palavra pode assumir. É precisamente isso que lemos nos primeiros três versos do poema “A palavra, decisiva”:

A palavra, diversos mundos
penetrante, mistérios tantos
divisora de sentidos.

A palavra constitui-se, desse forma, como algo portador de um carácter ambivalente, isto é, pela capacidade simultânea de um “sim”, possibilitante de uma abertura a uma pluralidade de possibilidades, e de um “não”, inviabilizador dessa mesma proliferação de possibilidades. É, nesse sentido, que devemos ler os três últimos versos do poema “Juras”, que abre o presente livro:

Pela palavra.
O sim.
O não.

O “sim” e “não” que a palavra possibilita correspondem, por conseguinte, à potência plástica que a palavra tem de nos abrir e também ¬fechar o sentido das múltiplas formas de ser que nos são dadas a ver. Acompanhar a potencialidade plástica da palavra significa, dessa forma, ser capaz de encontrar palavras que expliquem as múltiplas variações do ser, as suas múltiplas possibilidades, conforme lemos na exortação presente nos seguintes versos do poema “Atos 5”:

Quem sabe…
encontrar palavras
que expliquem as variações do ser.

No entanto, paralelamente à temática da plasticidade da palavra, o livro Palavras (In)visíveis é constituído por uma evocação recorrente da dimensão expressiva do silêncio. Com efeito, para além da palavra enquanto abertura de uma pluralidade de possibilidades, este livro de I. Luiz Andrade apresenta-nos múltiplas possibilidades expressivas do silêncio. A importância do silêncio na construção poética de Palavras (In)visíveis é precisamente afirmada na segunda quadra do poema “Faces da Poesia”, onde se lê:

Poesia é o silêncio, o olhar, o encontro
palavras girando na memória.
São os impasses da dor, fantasia
as cores do dia, coisas do amor.

Este trecho estabelece uma explícita relação entre a “Poesia” e o “silêncio”, apontando para um carácter fecundo do silêncio enquanto portador de modalidades poéticas expressivas, tema que é evocado no poema “Silêncio (in)fecundo”, onde lemos:

O silêncio das horas indecifráveis
as horas silenciadas pelas perguntas
sem respostas,
perdidas.
Falta de palavras,
elas que definem o vazio
- que não é infecundo.

Toda esta evocação do carácter fecundo do silêncio, enquanto portador de múltiplas potencialidades expressivas, encontra um dos seus pontos culminantes no poema “Presença silenciada”, onde o autor nos diz:

Alguns silêncios são desconhecidos
e tornam-se íntimos
a presença silenciada
sabe-se lá se outros amores
sabe-se lá se amores antigos
sabe-se lá se por nada.

Alguns silêncios são conhecidos
sabe-se lá se um outro Eu
um que precisava existir
e nunca,

sabe-se lá!

Todos os elementos que temos vindo a apresentar permitem-nos compreender de que forma a poética de Palavras (In)visíveis se encontra alicerçada entre a expressividade do silêncio e a força plástica das palavras, ao mesmo tempo que nos possibilitam afirmar que este livro de I. Luiz Andrade se constitui como um importante contributo para Poesia de língua portuguesa.

*Especialista no espólio de Fernando Pessoa e pós-doutorando do IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição –¬ (FSCH, UNL). Autor de edições e estudos sobre a obra de Fernando Pessoa, publicados na Europa, no Brasil e nos Estados Unidos. Coordena, em conjunto com Cláudia Souza, a «Coleção Pessoana» na Apenas Livros. Contacto: nuno.f.ribeiro@sapo.pt

Livro disponível nas versões ebook e física. www.amazon.com.br, www.amazon.com e demais lojas Amazon.